Como tornar sustentável a produção em pequenas propriedades na Amazônia
Assentamentos de reforma agrária são vistos como novos vilões da devastação, uma fama injusta porque é a falta de alternativas econômicas e assistência técnica que empurra pequenos agricultores para a pecuária e a venda ilegal de terras
por Sérgio Adeodato colaboração para a Folha em Altamira e Santarém (PA) - Sociedade e Natureza na Amazônia (fonte no final do texto)
Argemiro
João César, 59, o Paraná, caminha devagar entre os 3.000 pés de
pimenta-do-reino de seu sítio de 82 hectares (ha) no assentamento de
reforma agrária Moju, o maior do oeste do Pará, a 101 km de Santarém. As
trepadeiras originárias da Índia se apoiam em troncos de jarana
fincados na terra em intervalos de dois metros, mas não são elas que
preenchem de verde o campo de visão, e sim as árvores.
Paraná
vai andando e apontando as espécies nativas eleitas para proteger o
solo da força do sol e da chuva da Amazônia: aqui um açaizeiro, do qual
se aproveita a fruta e também o palmito; ali uma seringueira, da qual se
extrai o látex; mais adiante um cumaru, árvore de madeira nobre –cuja
semente fornece essência para cosméticos– cada vez mais usada para
substituir o ameaçado ipê em assoalhos e deques.
Tamanha
diversidade inclui um pomar de cupuaçu e pés de andiroba, que podem
atingir 30 metros de altura. As árvores complementam o sustento da
família de quatro pessoas, mas a principal fonte de renda obtida com o
sistema agroflorestal de plantio é mesmo a pimenta-do-reino.
Paraná,
a mulher e os dois filhos colhem três toneladas por ano e vendem cada
uma a R$ 25 mil para comerciantes que revendem para exportação. Com a
plantação e as árvores, a família César –uma das 36 que vivem na
comunidade Rainha da Floresta– conseguiu construir uma nova casa de
madeira, bem maior que a antiga.
Em
1970, o lavrador saiu com outras 50 famílias de Cascavel (PR), em
aviões da Força Aérea Brasileira, para o mundo desconhecido da floresta.
O governo militar largava os agricultores pobres na Amazônia para
ocupar o território esparsamente povoado. Após trabalhar para grileiros,
o colono tentou a vida nos garimpos, sem grande sucesso. Até que, antes
da constituição do assentamento, conseguiu um pedaço de terra por ali
com ajuda de um amigo madeireiro, cujo ofício exigia saber das áreas que
começavam a ser ocupadas e derrubadas.
Na
base do machado e do fogo, Paraná colocou abaixo 8 dos 17 ha a que
tinha direito de desmatar para plantar (cada hectare corresponde a 10
mil m²). Em dado momento, porém, desistiu de brigar com a mata: “Se
tirar tudo para colocar pasto, não haverá sombra, não teremos de onde
tirar estaca para cerca e frutas para fazer suco. A quentura será
grande, ficará ruim de viver e produzir, e mais tarde a tristeza será
maior.”
antarém (PA)Lalo de Almeida/Folhapress
antarém (PA)Lalo de Almeida/Folhapress
Vida de sem-freezer
O
sítio participa do projeto Assentamentos Sustentáveis, do Instituto de
Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), que tem por objetivo aplicar
soluções para fortalecer a produção familiar e levá-la ao mercado. A
iniciativa conta com R$ 25 milhões do Fundo Amazônia para investir por
cinco anos na regularização fundiária e na realização do Cadastro
Ambiental Rural de 1.300 propriedades.
O
apoio técnico agrícola, um dos sete eixos do projeto, dá orientação
sobre uso de calcário para corrigir o solo e métodos adequados de
plantio. As 2.700 famílias têm apoio para compra de ferramentas de campo
e outros insumos básicos para aumentar a renda sem destruir a floresta.
Os
técnicos realizam oficinas e orientam a escolha das culturas mais
apropriadas para cada lote. Articulam produtores e instituições públicas
para comercializar os alimentos via Programa Nacional de Alimentação
Escolar (Pnae) e Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura
Familiar (PAA).
Diferenças entre os assentamentos comuns e os sustentáveis
Os
empecilhos para fazer a coisa certa, no entanto, são vários. Há
entraves burocráticos na emissão dos documentos necessários para acesso
aos programas do governo e ao manejo de espécies não madeireiras, como
frutos e resinas. “Isso poderia aumentar a renda e reduzir a tentação da
coisa ilegal”, explica Paraná.
Sem
energia elétrica, açaí, cupuaçu e outros produtos perecíveis estragam
por falta de um freezer. Em local isolado, o transporte da produção sai
caro. O posto de saúde mais próximo fica a 60 km de distância. “A saída é
o remédio caseiro, como o óleo de copaíba, bom contra ferimentos e
várias doenças”, resigna-se o colono.
Na
cozinha, as panelas de Isabel Machado, 41, mulher de Paraná, brilham
como troféus. “Vi muito desmatamento quando cheguei ao Pará para
trabalhar duro na roça dos outros”, conta ela à beira fogão a lenha.
O
arroz e o feijão vieram da cidade, não da lavoura. A exceção está na
farinha de mandioca, garantia de segurança alimentar nos tempos de vacas
magras. O alimento é produzido no galpão ao fundo da casa, onde
mulheres hábeis no facão se dedicam a descascar as raízes.
Comando precário
A
realidade do lugar é diferente da vivida pela maioria das 450 mil
famílias nos 3.450 assentamentos da Amazônia, responsáveis por 29,8% do
desmatamento em 2014, uma fatia que está crescendo. Segundo o Inpe,
foram 1.494 km², território igual ao do município de São Paulo.
O
aumento pode ser uma decorrência da menor devastação nas grandes
propriedades, devido ao aperto na fiscalização. Desde 2010, a redução da
derrubada de árvores em assentamentos foi ligeiramente menor (23,7%) do
que na Amazônia como um todo (26,1%).
“A
tática do comando-e-controle [fiscalização e repressão] é ineficiente
para pequenos produtores”, afirma Osvaldo Stella, diretor de mudanças
climáticas no Ipam. Não faz muito sentido colocar a Força Nacional atrás
dos camponeses. O mais urgente, diz, é tornar viável o uso da terra com
a criação de alternativas produtivas, apostando no convívio com a
conservação. “É preciso um novo modelo de agricultura familiar na
Amazônia para não haver uma catástrofe social e ambiental.”
O
ciclo destrutivo começa quando o colono chega para ocupar um pedaço de
terra na esperança de que a área seja transformada pelo governo em
assentamento. Para comprovar a ocupação, o posseiro desmata parte do
lote e vende a madeira. O problema é que, não raro, a ocupação é feita
por grileiros com o único intuito de retirar a floresta e vender a área,
para depois desmatar outra, e assim por diante –especulação imobiliária
em escala amazônica.
Em muitos
casos o desmatamento ocorre porque pequenos lavradores querem tocar a
vida na roça, plantando ou criando gado, mas não têm tecnologia para se
sustentar sem exaurir a terra e a floresta ao redor. Com o solo
degradado, os lotes são abandonados ou se tornam alvo fácil para quem
chega com dinheiro a fim de comprá-los na bacia das almas.
Aumenta
a concentração de terras na mão de poucos, exatamente o que a reforma
agrária se propõe a combater. Famílias são expulsas para as cidades ou
migram para outras regiões com planos de ocupar outro assentamento e
reiniciar o ciclo do desmate. As que permanecem em local difícil de
produzir acabam destruindo a mata além do limite legal de 20% e se
envolvendo com atividades clandestinas.
“Já peguei na espingarda para enfrentar madeireiros. Arrisquei a vida, mas o roubo de madeira existe até hoje”, conta Paraná.
Muitas
vezes a retirada tem a permissão dos assentados, em troca de
participação no negócio. Uma árvore é vendida por apenas R$ 50 –ou até
menos, se o comprador oferecer dinheiro vivo na hora. Quando processada
na serraria, a madeira da mesma tora pode valer milhares de reais,
dependendo da espécie.
Produção artesanal de farinha de mandioca na casa do agricultor Argemiro João César no assentamento Moju, em Santarém (PA)Lalo de Almeida/Folhapress