As massas
de antigos pobres e novos empobrecidos do país sofrem cada vez mais com as
práticas aprimoradas da violência na gestão da pobreza
por Marcio
Pochmann* na Rede Brasil Atual –
Sociedade e Luta Popular por Igualdade Social e Econômica
Foto © Gibran Mendes/Porerm.net
Sociedade
brasileira ainda insistem em políticas de exclusão social, se preciso, de forma
criminosa
Foi somente com o ingresso na sociedade urbana e
industrial, a partir da década de 1930, que a incrustada e generalizada violência praticada em suas múltiplas
dimensões sobre a pobreza herdada do antigo e longevo mundo agrário
começou a se defrontar com a perspectiva da civilidade.
Para um país constituído pela centralidade do
castigo das picotas (pelourinhos) no tratamento dos
pobres descartáveis (negros que lutavam pela libertação,
homossexuais, criminosos em geral) presente nas fazendas escravistas e,
posteriormente, nas vilas e cidades, o distanciamento da punição e a
publicização do poder não se mostrou tarefa simples na modernidade.
Isso porque o exercício da violência mais vil e
brutalizada introduzida pelo sentido da colonização lusitana havia se tornado,
com o passar dos tempos, na simbologia do poder público e do respeito à ordem
dos grandes proprietários da terra e corporações religiosas e militares.
Com todo o bloqueio recorrente da aristocracia
rural às proposições civilizatórias trazidas pelos movimentos emancipatórios de
abolicionistas na década de 1880 e tenentistas nos anos de 1930, a solução
encontrada foi a legitimação de uma espécie de cidadania regulada a incluir
seletivamente parte dos pobres urbanos pelo trabalho.
Sem tocar na questão da terra, restou incorporar,
lenta e gradualmente, os pobres residentes apenas nas cidades pela forma
organizada da Consolidação das Leis do Trabalho (1943). A sua introdução no
regime autoritário do Estado Novo (1937-1945) indicou o quanto a disputa
eleitoral travada no reino do voto de cabresto protagonizado pelos
proprietários rurais mantinha ainda presente a brutalidade da violência na
gestão da pobreza.
Tanto assim que na breve democracia definida por
populista entre os anos de 1945 e 1964, a sua interrupção foi justificada pela
negação do patronado agrário aos avanços democráticos possibilitados pela
perspectiva de inclusão social dos pobres do campo no Estatuto de Trabalhador
Rural e nas reformas de base do começo dos anos de 1960, a partir do governo de
João Goulart (1961-1964).
De certa forma, o impedimento equivalente ao
governo democrático da presidenta Dilma – meio século depois – também não deixa
de expressar a reação negativa de ricos e poderosos ao processo de inclusão
social crescente das massas empobrecidas no orçamento do governo federal.
Tanto assim que a tese recorrente do “caos fiscal
imposto a ferro e fogo pelos porta-vozes midiáticos do dinheiro” somente
encontra como solução nas deformas que visam bloquear as portas do acesso aos
pobres nos recursos públicos (legislação do teto dos gastos públicos, da
flexibilização das leis do trabalho, da destruição da previdência pública, da
tributária que não ataca privilegiados e ricos e outras).
Essa mesma parcela, aliás constituída atualmente
por cerca de 40 mil proprietários rurais que respondem por cerca de metade das
terras agriculturáveis do país, “elegeram” no certame de 2018, mais da metade
dos parlamentares federais (deputados e senadores) que tratam de
“democraticamente” destruir o código de civilidade implementado a duras penas
durante a vigência da sociedade urbana e industrial entre as década de 1930 e
1980.
Com a desindustrialização precoce em curso desde a
inserção passiva e subordinada do Brasil à globalização conduzida pelo
receituário neoliberal na “Era dos Fernandos” (1990-92, Collor, e 1995-2002,
Cardoso), a estrutura da sociedade industrial tendeu a sua própria dissolução e
fracionamentos generalizados.
No seu lugar passou a ascender antecipadamente a
sociedade de serviços que sem base organizativa e representativa, termina sendo
submetida ao resgate das práticas da violência, cada vez mais aprimoradas desde
a época das antigas picotas.
Para um país que já detém a terceira maior
população carcerária do mundo e responde por 14% da totalidade das mortes
violentas do planeta, a emergência de governos dos brutalizados e insensíveis à
civilidade não parece mais amedrontar instituições e defensores de um mínimo
padrão de justiça pública.
Assim, as massas de antigos pobres e novos
empobrecidos herdados das sociedades tanto agrária como industrial sofrem, cada
vez mais, o acréscimo da reprodução do descarte emergente no interior da
sociedade dos serviços. Para todas elas, contudo, ampliam-se as práticas
pretéritas aprimoradas da violência na gestão da pobreza brasileira.
*Mario
Pochman- Professor do Instituto de Economia e pesquisador
do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade
Estadual de Campinas.
https://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/2019/09/aprimoramento-da-violencia-na-gestao-da-pobreza/