por Frei
Betto para blog Ricardo Gondim –
Sociedade e Homo Sapiens Desvairidos
Dentro de mim há um imenso salão colorido por
confetes e serpentinas e, entre tanto ruído, sinto medo. Medo dos fantasmas que
me povoam, dos demônios interiores, dos anjos de asas quebradas. Beiro o abismo
da ilusão e sou tomado por vertigens e, no entanto, não aspirei lança-perfume.
Quero o baile, a fantasia, a loucura insaciada dos
que fazem desfilar em blocos seus desejos irrefreáveis. Arranco do coração uma
por uma das máscaras de minha coleção: a do cínico, do farsante, do pusilânime.
Quero-me nu, completamente nu, na passarela em que me exibirei pelo avesso:
aversões e preconceitos, contradições e mesquinharias. Sairei de barro e sopro,
tal qual Deus me pôs no mundo.
Estou ávido da batucada capaz de eriçar cada célula
de minha pele e, na ponta dos pés, dançarei sobre o aro do pandeiro até que a
cuíca me desperte a consciência. Abrirei a torneira de meu televisor e deixarei
que escorra pelas escadas da casa toda a impotência das mulheres adornadas de
falsa beleza e a prepotência dos homens que não sabem fortalecer a musculatura
da alma.
Cessado o burburinho das ruas, esmaecidas as luzes,
adormecidos os foliões, atravessarei sozinho o sambódromo e recolherei pelo
chão as sombras das tristezas fantasiadas de alegria, das lágrimas contidas no
ritual do riso, das ilusões defraudadas pela realidade. E deixarei ali os
retalhos dessa descomplacência que me atordoa o espírito, na esperança de que a
magia do próximo desfile exiba, em carro alegórico, essa represada voracidade
amorosa.
Não irei atrás do trio elétrico, a menos que ele
cesse o movimento, desligue o motor, emudeça a turba e, num gesto inusitado,
faça do silêncio a matéria-prima da festa. É disto que preciso, avidamente:
desfantasiar a subjetividade, escutar a própria intuição, deixar que esse
cortejo que me habita ganhe as ruas, esvaziando-me de mim mesmo. Há demasiado
entulho em minhas cavernas interiores.
Se por acaso me encontrar com Momo, hei de sugerir
que se aposente. Carnaval já não é a festa da comilança que empanturra o
estômago. São os olhos que, glutões, engolem sôfregos todos os seios e bíceps e
coxas e nádegas e braços e pernas, sedentos de narcísico reconhecimento e
imprimindo ao espírito o fastio irremediável, tão enjoativo quanto à certeza de
que, das cinzas da quarta-feira, a fénix da esbeltez não renasce.
Se a bateria prosseguir ressoando em meus ouvidos,
apelarei a Orfeu que me empreste a sua lira e me permita mergulhar nos mares
subterrâneos de meu inconsciente. Aspiro pelo canto inebriador das musas e
prefiro a agonia solene do órgão e a suavidade feminina da harpa aos sons
desconexos dessa parafernália eletrônica que bem traduz minhas atribulações.
Carnaval é feito de momentos e eu, de tormentos.
Devo fugir para alguma ilha deserta abscôndita no mar revolto de meu plexo
solar ou fingir na avenida que os deuses do Olimpo vieram coroar-me? Ah, quem
dera que eu pudesse trocar de caráter a cada nova roupa, rasgar os mantos
lúgubres que não me protegem do frio, acreditar nessa inversão de papéis que me
conduz à apoteose exatamente quando o show é obrigado a cessar.
Talvez eu entre numa roda de crianças piratas que
roubem meu estorvo e peça à Colombina não mais que um piscar de olhos para
alegrar meu Pierrô. Ao soar do apito, cantarei solo meu samba-enredo em homenagem
ao Arlequim – esse retrato de mim.
Ao amanhecer, quando o exército da faxina adentrar,
serei encontrado estirado no asfalto, cada pedaço espalhado num canto, à espera
de que suas vassouras me juntem os cacos, cicatrizem-me as articulações,
energizem os meus ossos e inflem a minha carne, até que eu consiga o mais
difícil – fantasiar-me de mim mesmo. Ficarei tão leve que, com certeza, voarei
sem asas, embriagado pela euforia que o Carnaval pressente mas não sente.
Sim, eu quero mais, quero um Carnaval que nunca
cesse e seja tão sem limites que faça os mortos dos cemitérios sairem pelas
ruas num infindável cordão, entoando loas à vida, e que o brilho do coração
irradie tanta luz que traga aos meus olhos a cegueira para o transitório. Sejam
ternas e eternas as minhas alegrias, distantes dos melindres fugidios,
entregues às mais puras melodias, às mais inefáveis poesias.
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