Existe uma pergunta parada no ar:
o que passará no país quando a população perceber que a economia brasileira
colapsou e que o programa econômico deste governo não tem a menor possibilidade
de recolocar o país na rota do crescimento?
por José Luís Fiori* na Revista ihu Unissinos – Sociedade
e Destruição da Organização Social e Econômica Brasileira
Imagem no site ihu Unissinos
No início
dos anos 90, na véspera de sua dissolução, a União Soviética tinha 293 milhões de habitantes, e possuía um
território de 22.400.000 km, cerca de um sexto das terras emersas de todo o
planeta. Seu PIB já tinha
ultrapassado os dois trilhões de dólares, e a URSS era o segundo país mais rico do mundo, em poder nominal de
compra. Além disso, era a segunda maior
potência militar do sistema internacional, e uma potência energética, o
maior produtor de petróleo bruto do mundo. Possuía tecnologia e indústria
militar e espacial de ponta, e tinha alguns dos cientistas mais bem treinados
em diversas áreas, como a física de altas energias, medicina, matemática,
química e astronomia. E, finalmente, a URSS
era a potência que dividia o poder atômico global com os Estados Unidos. Mesmo assim, foi
derrotada na Guerra Fria, sendo
dissolvida no dia 26 de dezembro de 1991, e depois disto, durante uma década,
foi literalmente destruída.
No
entanto, ainda antes da dissolução soviética, Boris Yeltsin – que viria a ser o primeiro presidente da nova Federação Russa –
já havia convocado um grupo de economistas e financistas, nacionais e
internacionais, liderados pelo jovem ex-comunista Yegor Gaidar, para formular um programa de reformas e políticas
radicais, com o objetivo de instalar na Rússia
uma economia liberal de mercado. Depois disso, a dissolução da URSS já pode ser considerada o
primeiro passo do grande programa ultraliberal de destruição do Estado
soviético e de sua economia de planejamento. Em 1993, Boris Yeltsin ordenou a invasão e a explosão da Casa Branca do parlamento russo, que
ainda se opunha às reformas ultraliberais, levando à morte de 187 pessoas, à
prisão dos líderes da oposição e à imposição de uma nova Constituição que
facilitasse a aprovação das políticas propostas pelo superministro Yegor Gaidar.
Mesmo assim, e apesar das resistências, já em 1992,
Yeltsin ordenou a liberalização do comércio exterior,
dos preços e da moeda. Deu início, ao mesmo tempo, a uma política de
“estabilização macroeconômica” caracterizada por uma rígida austeridade fiscal.
Por outro lado, o superministro Gaidar
– que era considerado um “craque” por seus pares do mundo das finanças –
aumentou as taxas de juros, restringiu o crédito, aumentou os impostos e
cancelou todo tipo de subsídio do governo à indústria e à construção; fez,
ainda, cortes duríssimos no sistema de previdência e de saúde do país.
É fundamental destacar que, como condição prévia, o
novo governo russo se submeteu às determinações dos Estados Unidos e do G7, abandonou qualquer pretensão a “grande
potência” e permitiu a desmontagem e desorganização de suas Forças Armadas,
junto com o sucateamento de seu arsenal atômico.
E foi assim que o “choque ultraliberal” da equipe econômica de Yeltsin conseguiu avançar de forma
rápida e violenta: basta dizer que em apenas três anos, Gaidar vendeu quase 70% de todas as empresas estatais russas,
atingindo em cheio o setor do petróleo que havia sido uma peça central da
economia socialista russa, e que foi desmembrado, privatizado e
desnacionalizado. Outrossim, as consequências do “choque” foram mais rápidas e violentas do que o próprio choque, e
acabaram levando Yegor Gaidar de
roldão, já em 1994. A inflação disparou e as falências se multiplicaram através
de toda a Rússia, levando a
economia do país a uma profunda depressão. Em apenas oito anos, o investimento
total da economia russa caiu 81%, a produção agrícola despencou 45% e o PIB russo caiu mais de 50% em relação
ao seu nível de 1990, e vários setores da economia russa foram varridos do
mapa. Por sua vez, a quebra generalizada da indústria provocou um grande
aumento do desemprego, e uma queda de 58%, em média, no nível dos salários. As reformas e o corte dos “gastos sociais” devastaram o nível de vida da maior
parte da população; a população pobre do país cresceu de 2% para 39%, e o
coeficiente de Gini saltou de 0,2333 em 1990, para 0,401 em 1999. Uma
destruição e uma queda continuada do PIB que não impediram, entretanto, as
altas taxas de lucro e o enriquecimento de alguns grupos privados, formados por
antigos burocratas soviéticos, que se aliaram com grandes bancos internacionais
e participaram do big business das privatizações – em particular, da indústria
do petróleo e do gás. São os assim chamados “oligarcas russos”,
multimilionários que dominaram o governo de Yeltsin e criaram junto com ele e
seus economistas ultraliberais uma verdadeira “cleptocracia”, que cresceu e enriqueceu a despeito da destruição
do resto da economia e da sociedade russas.
Na verdade, em 1991, a União Soviética foi derrotada, mas seu exército não foi destruído
numa batalha convencional. Assim mesmo, durante toda a década de 90, os EUA, a União Europeia e a OTAN
promoveram ativamente o desmembramento do território do antigo Estado
Soviético, que perdeu cinco milhões de quilômetros quadrados e cerca de 140
milhões de habitantes. Tudo feito com a aquiescência subalterna do governo de Boris Yeltsin e de seus economistas
ultraliberais, em nome de um futuro renascimento da Rússia, que deveria ser parida pela mão invisível dos mercados.
Mas como vimos, este sonho econômico acabou se transformando num grande
fracasso, com um custo social e econômico imenso para a população russa. O
primeiro-ministro Ygor Gaidar
foi desembarcado do governo em 1994, ainda no primeiro mandato de Yeltsin, e o
próprio Boris Yeltsin teve um final melancólico, humilhado internacionalmente
nas Guerras da Chechênia e da Iugoslávia, renunciando à presidência
da Rússia no dia 31 de dezembro
de 1999.
A história posterior da Rússia é mais conhecida e chega até nossos dias, mas talvez deva
ser relembrada, sobretudo para os que apostam, no Brasil, na radicalização das
privatizações e na desmontagem do Estado brasileiro e de seus compromissos com
a soberania nacional e com a proteção social da população. Porque foi o
fracasso do “choque liberal” russo que contribuiu decisivamente para a vitória
eleitoral de Vladimir Putin,
no ano 2000, e para a decisão de seu primeiro governo, entre 2000 e 2004, de
resgatar o velho nacionalismo e retomar o Estado como líder da reconstrução
econômica da Rússia, no século XXI.
Tanto Putin
quanto seu sucessor, Dmitri Medvedev,
e de novo Putin, mantiveram a
opção capitalista dos anos 90, mas recentralizaram o poder do Estado e
reorganizaram sua economia, a partir de suas grandes empresas da indústria do
petróleo e do gás. Mas isto só foi possível porque ao mesmo tempo retomaram o
projeto de potência que havia sido abandonado nos anos 90, com a reorganização
de seu complexo militar-industrial e a reatualização de seu arsenal atômico.
Depois disso, em 2008, na Guerra da Geórgia,
a Rússia deu uma primeira
demonstração de que não aceitaria mais a expansão indiscriminada da OTAN.
Mais à frente, o governo russo incorporou o
território da Crimeia, em
resposta à intervenção
euro-americana na Ucrânia em 2014, para finalmente, em 2015,
fazer sua primeira intervenção militar vitoriosa fora de suas fronteiras, na guerra da Síria. Ou seja, depois do
seu colapso econômico e internacional
dos anos 90, a Rússia conseguiu
retomar seu lugar entre as grandes potências mundiais em apenas 15 anos, dando
um verdadeiro salto tecnológico nos campos militar e eletrônico-informacional.
E hoje, as sanções econômicas impostas à Rússia a partir de 2014 vêm produzindo
efeitos negativos e problemas inevitáveis para a economia russa, mas tudo
indica que já não conseguirão alterar o rumo estratégico que aquele país traçou
para si mesmo, voltado para a reconquista de sua soberania econômica e militar
destruída na década de 90.
Hoje, depois do golpe de Estado
de 2015/16, e depois de três anos seguidos da mesma política
econômica neoliberal e ortodoxa, o Brasil está ficando cada
mais parecido com a Rússia dos
anos 90. Quase todos os seus indicadores
econômicos e sociais são declinantes ou catastróficos, em particular no
que diz respeito à queda do consumo
e dos investimentos, e mais
ainda, no caso do aumento do
desemprego, da miséria e da desigualdade social. E quase todas as
previsões sérias do futuro são muito ruins, a despeito da imprensa conservadora
que procura transformar em gemada qualquer filigrana de ovo que encontra à sua
frente, tentando transmitir um falso otimismo para os investidores
estrangeiros. Frente a isto, a equipe econômica do senhor Guedes resolveu transformar a Reforma da
Previdência na tábua de salvação da economia brasileira, para logo
depois inventar um novo Santo Graal, e agora anuncia em todo lugar e a toda
hora, uma privatização radical de todo o estado brasileiro, incluindo toda a
indústria do petróleo e a própria Petrobrás.
Como se fosse um palhaço de circo mambembe do interior, tentando manter a
atenção da plateia entediada com o anúncio da entrada em cena do leão. Mas tudo
indica que sem sucesso, se tomarmos em conta a maior fuga capitais da Bolsa de Valores, em 23 anos, só neste
mês de agosto recém findo. E é aqui exatamente que a história da Rússia pode
nos ajudar a entender o que está passando, e prever o que deverá passar daqui
para frente, tendo em conta as inúmeras semelhanças que existem entre esses
dois países.
Agora bem, o que nos ensina a experiência russa dos anos 90, e
depois?
1. Primeiro, e muito importante: que a destruição da economia, do Estado e da sociedade russa, na década de 90, não foi incompatível com o
enriquecimento privado, sobretudo dos grupos de financistas e ex-burocratas
soviéticos que obtiveram lucros extraordinários com o negócio das privatizações
– e que depois assumiram o controle monopólico das antigas indústrias estatais,
em particular no campo do petróleo e do gás. Ou seja, é perfeitamente possível
conciliar altas taxas de lucro
com estagnação ou recessão econômica, e até com a queda do produto nacional.[1]
2. Segundo: que os grandes lucros privados e os ganhos estatais com as privatizações não levam necessariamente ao
aumento dos investimentos num ambiente macroeconômico caracterizado pela austeridade
fiscal, pela restrição ao crédito e pela queda simultânea do consumo. Pelo
contrário: o que se viu na Rússia
foi uma gigantesca queda dos investimentos e do PIB russo, da ordem de quase 50%.
3. Terceiro, e o mais importante: que depois de dez
anos de destruição liberal,
ficou muito claro na experiência russa
que em países extensos, com grandes populações e economias mais complexas, os “choques ultraliberais” têm um efeito
muito mais violento e desastroso do que nos pequenos países com economias exportadoras.
E esta é uma situação política insustentável no médio prazo, mesmo com
ditaduras muito violentas, como aconteceu com o fracasso econômico da ditadura chilena
do General Augusto Pinochet.
Nota:
[1] Sobre este ponto, vide a excelente
exposição do professor Franklin Serrano, em “Pensando o
Brasil: quem gosta de crescimento é o trabalhador”.
*José Luís Fiori, professor permanente do
Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ,
coordenador do grupo de pesquisa “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e
do Laboratório de “Ética e Poder Global”, pesquisador do Instituto de Estudos
Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep). Publicou, “O Poder Global e a Nova Geopolitica das
Nações”, Editora Boitempo, 2007 e “História, estratégia e desenvolvimento”, Boitempo, em 2014, “A danação da história e a disputa pelo
futuro”, Jornal do Brasil, www.jb.com.br, 6/6/2019
http://www.ihu.unisinos.br/592661-para-pensar-sobre-o-futuro-depois-do-senhor-guedes-e-seu-capitao