Na
entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Ligia
também analisa as relações do sistema privado com os dispositivos estatais de
regulação.
Para ela, precisa ficar claro o que os planos
oferecem. “Interesses empresariais
são legítimos, o que deve ser combatido é a promiscuidade entre público e privado”, avalia. O caminho,
segundo a professora, é fortalecer o SUS.
E, para isso, “encarar o fato de que somos mais de 200 milhões de habitantes, a
maioria de renda baixa e média e não podemos entregar a saúde para
grupos empresariais, que são atraídos aos locais em que se situam segmentos de
maior renda e não pelas condições sanitárias prioritárias”.
por João
Vitor Santos no IHU Unissinos – Sociedade
e Luta Popular por um INSS de Qualidade
Lígia Bahia (Foto: Elpídio
Jr.)
Ligia Bahia
é professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Possui
graduação em Medicina pela UFRJ, mestrado e doutorado em Saúde Pública pela
Fundação Oswaldo Cruz. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em
Políticas de Saúde e Planejamento, principalmente nos seguintes temas: sistemas
de proteção social e saúde, relações entre público e privado no sistema de
saúde brasileiro, mercado de planos e seguros de saúde, financiamento público e
privado, regulamentação dos planos de saúde. Entre suas publicações, destacamos
Planos e seguros de saúde. O que todos
devem saber sobre a assistência médica suplementar no Brasil (São Paulo:
Unesp, 2010) e Saúde, desenvolvimento e
inovação (Rio de Janeiro: Cepesc, 2015).
Confira a entrevista:
IHU On-Line – Quais os
limites da saúde suplementar como forma de garantir acesso a serviços de saúde
de qualidade e de desafogar o Sistema Único de Saúde - SUS?
Ligia Bahia –
Os limites dos planos e seguros de
saúde privados são de três ordens. A primeira é comum a todos os países
e diz respeito à natureza contratual entre entes privados, que combinam entre
si o que é ou não incluído como garantia nos contratos. Essas garantias e
exclusões de cobertura definidas ex ante variam entre países; por
exemplo, nos EUA os planos
asseguram medicamentos e prevenção e tratamento prolongado para problemas de saúde mental e no Brasil não.
O segundo e o terceiro elementos têm
características nacionais. O que estimula ou restringe o fluxo de clientes de planos à rede de serviços do SUS é o tipo de plano.
No Brasil existem planos
“melhores e piores”; os mais abrangentes e muito caros ou exclusivos para
executivos de grandes empresas, cujos clientes devem representar no máximo 5%
dos que têm planos, permitem que os pacientes tenham atendimento para quase
todos os problemas de saúde na rede privada. Ainda assim, esse segmento
populacional recorre ao SUS para
receber medicamentos de alto custo
e realizar transplantes, bem como se beneficia das ações
de vigilância epidemiológica e sanitária.
Não é
fato que qualquer plano resolve problemas de saúde - Ligia Bahia
“Não é fato que qualquer plano resolve
problemas de saúde” - Ligia Bahia
No polo
oposto, situam-se os planos básicos que,
ao restringir acesso e uso de serviços de saúde, terminam por empurrar
deliberadamente (há panfletos de propaganda que incluem hospitais públicos como
se fossem credenciados pelas empresas), ou implicitamente por meio de
solicitação de autorizações demoradas, informações sobre inexistência de vagas
e demora para marcação de atendimentos. Outra limitação das empresas de planos
aqui localizadas é o não investimento em ciência, tecnologia e inovação que são
essenciais para os sistemas de saúde modernos, deixando inteiramente para o SUS as tarefas de pesquisa e
modernização tecnológica e o acusando do oposto. Na aparência, os serviços públicos são ultrapassados e
os privados, inovadores, e essa
inversão perversa funciona como propaganda
anti-SUS.
IHU On-Line – O avanço
dos planos privados de saúde configuram uma ameaça ao SUS? Por quê?
Ligia Bahia –
Porque não é fato que qualquer plano resolve problemas de saúde; a verdade é
que os planos realmente abrangentes, os muito caros, permitem diagnósticos e
tratamentos adequados. Mas, em um país que tem SUS, a comercialização de planos menos que básicos, tal como pleiteiam
determinadas empresas, estabelecem uma pseudoconcorrência com a rede pública que não se efetiva.
Plano de saúde,
como diz o nome, serve para evitar improvisação. É um contrato de pré-pagamento
que assegura aos pacientes duas condições: a certeza de onde ir e, ao chegar em
unidades de saúde, ter atendimento seguro e de qualidade. As operadoras têm
feito de tudo e mais um pouco para vender um plano-improviso. A última
tentativa está registrada em projeto de lei apócrifo. O documento, que prevê a desregulamentação da obrigatoriedade de
coberturas,
explicita uma proposta de cobrar antecipadamente e não garantir assistência.
Plano de
saúde, como diz o nome, serve para evitar improvisação. As operadoras têm feito
de tudo e mais um pouco para vender um plano-improviso - Ligia Bahia
“Plano de saúde, como diz o nome, serve para evitar improvisação. As
operadoras têm feito de tudo e mais um pouco para vender um plano-improviso” -
Ligia Bahia
Ao
contrário da propaganda das operadoras, planos
sem coberturas não desafogam o SUS.
Estão prometendo que dão conta do recado e sugerem transferir mais recursos públicos para as empresas privadas. O SUS fica ainda mais subfinanciado e
ocorrerá (o que já começamos a assistir) redução de coberturas vacinais, surtos
de sarampo e uma rede pública
cada vez mais sucateada, mas que é a responsável pela assistência a casos muito
graves de quem tem e não tem plano.
IHU On-Line – No Brasil, um dos maiores desejos da
população é o acesso a planos privados de saúde. Como compreender essa lógica?
E em que medida ela potencializa o “poder de fogo” das operadoras diante do
Estado?
Ligia Bahia – As pesquisas de opinião indicam três tendências
consistentes e reiteradas: 1) o principal problema é saúde; 2) mais de 80% dos entrevistados são favoráveis ao financiamento público, por meio de
impostos, para o SUS e que a saúde deva ser direito para todos; 3)
o desejo de ter planos de saúde,
que se situa abaixo da vontade de adquirir casa própria. São resultados
contraditórios, portanto admitem interpretações igualmente díspares.
Considero
que indicam o seguinte: a população é a favor do SUS, mas conhece suas deficiências. Essas informações sugerem
fortemente que se a pergunta fosse: ou plano ou SUS?, haveria uma enorme
confusão. Na realidade, o que se deseja é SUS e plano e há clareza que se o SUS fosse efetivo seria melhor
que os planos. Mas é preciso reconhecer que o desejo por planos é uma realidade
e tem sido bem utilizado pelas empresas de planos para obter desde benesses
fiscais até anistia de multas.
“Na realidade, o que se deseja é
SUS e plano e há clareza que se o SUS fosse efetivo seria melhor que os planos” -
Ligia Bahia
IHU On-Line – Até 1998,
os planos de saúde privados não eram regulados no Brasil e, desde a
implementação dessa regulação, as empresas criticam a incidência do Estado
sobre os planos. Como avalia essa regulação hoje? Quais os avanços e os limites
da ANS nessa área?
Ligia Bahia –
As empresas criticam a Agência Nacional
de Saúde Suplementar - ANS seletivamente, ou seja, manifestam
desacordo apenas quando a intervenção estatal ameaça seus lucros. Os
representantes das operadoras posam de liberais antiestatistas, mas querem mais
subsídios, créditos e empréstimos públicos. O setor privado não é contra a ANS, faz questão de intervir na escolha de seus diretores e
políticas regulatórias. A regulação caminhou sempre de lado porque a ANS tem
sido fortemente orientada pelas agendas empresariais e esse processo de captura
permanente a enfraqueceu. Atualmente, a ANS tem um quadro técnico qualificado,
mas está destituída de legitimidade para se afirmar como locus de uma regulação
pautada pelas necessidades de saúde.
IHU On-Line – Quais são
as propostas das operadoras de planos privados que têm sido postas em discussão
no que diz respeito ao marco legal da saúde suplementar?
Ligia Bahia –
A proposta das operadoras é a desregulamentação
das coberturas, restrição
radical da escolha de prestadores de serviços, não
ressarcimento ao SUS, fim das penalidades impostas pela legislação e
redução do poder de definição de reajustes de preços e fiscalização da ANS. Ambicionam vender mais planos. Planos sem
atendimento a emergências, realização de exames, diagnósticos e tratamentos
para cânceres.
São
mercadorias que denominamos “Melhoral e copo d’água”, pois os clientes pagam
mensalmente e quando precisarem terão que recorrer ao SUS - Ligia Bahia
São mercadorias que denominamos
“Melhoral e copo d’água”, pois os clientes pagam mensalmente e quando
precisarem terão que recorrer ao SUS - Ligia Bahia
São
mercadorias que denominamos “Melhoral e copo d’água”, pois os clientes
pagam mensalmente e quando precisarem terão que recorrer ao SUS. O objetivo é ampliar o mercado
mediante a comercialização de produtos segmentados por oferta assistencial e
localidade e problemas de saúde. A lei atual prevê o atendimento aos problemas
de saúde catalogados no Código Internacional de Doenças - CID. Isso atrapalha quem pretende reduzir cobertura porque os
investidores, especialmente os estrangeiros, exigem estabilidade legal.
Determinados lobbies empresariais
sabem que atrairão mais investimentos se conseguirem reduzir as coberturas e
apregoar que assim ajudam o SUS.
IHU On-Line – O modelo britânico de gestão de saúde
pública é tomado como referência. No que consiste a lógica desse sistema e que
analogias podemos fazer com a concepção do SUS brasileiro?
Ligia Bahia – O Reino Unido
tem um sistema universal de saúde (National
Health System) [1] que se caracteriza por ser público (financiamento,
gestão e prestação de serviços). No Reino Unido, pobres e classes médias,
inclusive alta classe média, são atendidos pelo NHS.
O SUS aprovado pela Constituição de 1988 foi inspirado no
modelo inglês com as devidas adaptações. Entretanto, logo após sua inscrição na
Constituição foi considerado inviável por sucessivos governos. Atualmente, os
ingleses se orgulham de seu sistema público e o Brasil continua às voltas com as pressões do setor privado.
Os
ingleses se orgulham de seu sistema público e o Brasil continua às voltas com
as pressões do setor privado - Ligia Bahia
“Os ingleses se
orgulham de seu sistema público e o Brasil continua às voltas com as pressões
do setor privado” - Ligia Bahia
IHU On-Line – Nos Estados Unidos, a gestão de Barack
Obama trouxe uma alternativa à assistência em saúde. Mas esse sistema não foi
bem aceito e o atual governo tenta desfigurá-lo. Por que o “Obamacare” gerou e
ainda gera tanta polêmica? O que essa experiência norte-americana pode legar à
realidade brasileira?
Ligia Bahia – O Obamacare
foi uma reforma importante e muito controvertida, foi aprovado pelo congresso
com três votos de diferença (houve senadores democratas que votaram contra) e a
maioria da população (53%) se posicionava também contrária ao projeto. As
principais polêmicas se concentraram em torno da ampliação da intervenção estatal na saúde. Os EUA construíram um sistema de saúde orientado pelo mercado e o Obamacare abalou os alicerces da dinâmica de grandes grupos
empresariais.
Apesar
das imensas dificuldades e vaivéns, o Obamacare
logrou uma imensa vitória. O patamar dos debates sobre saúde hoje nos EUA é completamente diferente. Os democratas propõem um sistema de saúde ainda mais público e
os republicanos admitem
preservar garantias de cobertura do Obamacare.
A experiência norte-americana, a despeito das imensas diferenças entre ambos os
países, indica que os sistemas de saúde públicos são mais efetivos. Se um país
de renda alta como os EUA caminha para um sistema público, o Brasil deveria tratar de valorizar e reafirmar o SUS.
Se um
país de renda alta como os EUA caminha para um sistema público, o Brasil
deveria tratar de valorizar e reafirmar o SUS - Ligia Bahia
“Se um país de renda alta como os EUA
caminha para um sistema público, o Brasil deveria tratar de valorizar e
reafirmar o SUS” - Ligia Bahia
IHU On-Line – O SUS já tem mais de 30 anos [2].
Nesse período, quais os mais significativos avanços, impasses, retrocessos e
adaptações na compreensão da articulação do SUS com o setor privado?
Ligia Bahia – Os principais avanços são a compreensão sobre a
diferença entre público e estatal.
O SUS é público, significa que
sua rede pode ser constituída por serviços de qualquer natureza desde que
atenda a todos. Os retrocessos gravitam em torno da fragilidade do SUS para se afirmar como uma rede de serviços de
qualidade. Ao longo de trinta anos, os serviços públicos não conseguiram se
tornar exemplos de limpeza, bom atendimento, atendimento personalizado. Há uma
diferença notória entre a conservação de prédios, procedimentos de recepção,
tempos de espera entre os serviços
públicos e privados. Nesse período se cristalizou um impasse: os
serviços privados, subsidiados com recursos públicos, se recusam ao atendimento
universal e os públicos subfinanciados atendem todos de modo insatisfatório.
Interesses
empresariais são legítimos, o que deve ser combatido é a promiscuidade entre
público e privado - Ligia Bahia
“Interesses empresariais são legítimos,
o que deve ser combatido é a promiscuidade entre público e privado” -
Ligia Bahia
IHU On-Line – Quais os desafios para evitar que
lógicas mercantilistas ditem as regras na gestão de saúde pública e para
fortalecer o SUS, inclusive dando um melhor aporte nas suas formas de
financiamento?
Ligia Bahia – Interesses
empresariais são legítimos, o que deve ser combatido é a promiscuidade entre
público e privado. Os empresários
da saúde estão querendo posar de reformadores do sistema de saúde e esse
lugar não lhes pertence. Vender mais planos de saúde não é sinônimo de solução
para um país como o Brasil, que está às voltas com imensos problemas de saúde.
Para
fortalecer o SUS é necessário
encarar o fato de que somos mais de 200 milhões de habitantes, a maioria de
renda baixa e média e não podemos entregar a saúde para grupos empresariais,
que são atraídos aos locais em que se situam segmentos de maior renda e não
pelas condições sanitárias prioritárias. O financiamento e a gestão do SUS precisam ser revistos. O SUS
requer um volume de recursos muito superior ao atual, que poderiam ser obtidos
com o fim dos subsídios públicos ao setor privado. A modernização da gestão,
incluindo fim das influências político-partidárias para a nomeação de cargos
técnicos, avaliação, prestação de contas e transparência, é tarefa inadiável.
Notas:
[1] Serviço Nacional de Saúde (em inglês:
National Health Service - NHS): é o nome habitualmente utilizado para
referir-se aos quatro sistemas públicos de saúde do Reino Unido coletiva ou
individualmente, embora atualmente, em geral, seja apenas ao serviço de saúde
da Inglaterra que é corretamente chamado de Serviço Nacional de Saúde sem
qualquer outra qualificação. Três serviços (Inglaterra e País de Gales, Escócia
e Irlanda do Norte), foram criados por legislações separadas e começaram a
funcionar em 5 de julho de 1948; anteriormente a essa data, serviços públicos
de saúde mais limitados eram operados por autoridades locais e por outros
organismos. (Nota da IHU On-Line)
[2] Em
2018, quando o SUS completava 30 anos, a revista IHU On-Line publicou a edição intitulada Sistema público e universal de saúde – Aos 30 anos, o desafio de combater
o desmonte do SUS. Acesse aqui. (Nota da IHU On-Line)
http://www.ihu.unisinos.br/592634-os-riscos-dos-planos-de-saude-que-so-oferecem-melhoral-e-copo-d-agua-entrevista-especial-com-ligia-bahia
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