por
Ingrid Gomes Bassi / Scielo – Sociedade e Lutas Libertarias Humanas
Pintura Salvador Dali 1943, criança geopolítica observa
o nascimento do novo homem
Artigo completo ver em: https://www.scielo.br/j/interc/a/czCmRwpQzrzjhsKfNHgTTPK/
Auto-biografias
Gandhi: a busca por transcendência
Mohandas
Karamchand Gandhi escreveu o livro “Minha vida e minhas experiências com a
verdade” (2014) por volta de 1927, contando com 436 páginas.
Gandhi
descreve, brevemente, na primeira parte, a respeito do seu ambiente familiar,
do sentimento de tristeza de ter se casado ainda na idade infantil, da
dificuldade da família com a morte do pai, dos seus estudos para se formar em
advogado no estrangeiro, da familiaridade com o vegetarianismo, do aprendizado
na Inglaterra e da própria desconfiança ao exercer a profissão de advogado quando
retorna à Índia.
No
segundo momento do livro, Gandhi comenta como foi atuar no seu primeiro
processo jurídico, conta sobre sua viagem à África do Sul a trabalho. Narra as
descobertas do tratamento desumano que vivencia na África com as pessoas de “cor”,
das desigualdades nos navios e no transporte terrestre. Explica que teve seu
encontro com a profissão, a de mediar conflitos. Problematiza a respeito da sua
timidez em atos públicos e ressalta suas habilidades em entender o outro,
inclusive outras religiosidades.
Ao
continuar, na terceira parte, explica brevemente sobra sua estada na Índia.
Depois, ao retornar à África, em Natal, dá andamento político ao Congresso,
formado pela comunidade de indianos e outros colaboradores, tendo como objetivo
promover a liberdade de ação aos indianos no país. Nesse momento, narra sobre
sua necessidade de potencializar a autopurificação, por meio do voto de viver a
brahmacharya, em sânscrito, uma vida celibatária e de disciplina.
Descreve sua participação ativa como membro da enfermagem, no grupo de apoio
para a guerra dos bôeres junto à causa britânica. No retorno da guerra,
articula procedimentos para a reforma sanitária e para a campanha contra a
fome, com colaboração do Congresso. Novamente na Índia, trabalha com advogados
para compreender as novas estruturas do Congresso e Parlamento indiano e volta
a Natal.
Na quarta
parte traz suas experiências em Natal, quando colabora com um grupo de indianos
novamente no setor de enfermagem na “rebelião” zulu, ajudando os feridos zulus.
Aprofundou-se nos ensinamentos e práticas da dieta alimentar baseada em
vegetais. Explica sua aproximação na espiritualidade. Forma com colaboradores
uma comunidade à luz do satyagraha (a firmeza na verdade, na luta por
direitos justos), a ashram (em sânscrito “comunidade”). Estuda e
experimenta tratamentos médicos de hidroterapia e dieta alimentar.
No final
da obra, retorna à Índia e começa a peregrinar no interior do país. Conversa
com comunidades locais sobre as mazelas de vida dos indianos, cria propostas
comunitárias para resolver situações conflituosas, experimenta o saber das
vidas distantes, das aldeias mais humildes e afirma o quanto foi importante sua
“firmeza na verdade”, dos seus sacrifícios humanitários e no seu ideal de
humano. Por fim, colabora na popularização do Congresso indiano nas aldeias,
irrita as autoridades britânicas e vê o indiano se indignar e agir sem medo em
busca da sua liberdade e respeito. Ao finalizar a autobiografia, traz a
história das reivindicações dos tecelões por matéria-prima.
Luther King Jr.: ativismo não violento
O livro “A
autobiografia de Martin Luther King” é uma coletânea do material narrado
por Martin Luther King Júnior, realizada pelo historiador Clayborne Carson, de
2014.
A obra de
464 páginas traz o trajeto de Luther King Jr. como ativista e um dos autores
principais de muitos protestos históricos nos Estados Unidos. Luther King Jr.
protagonizou reivindicações dos negros ocuparem de forma igualitária os
recintos e espaços públicos, além do direito ao voto e outras marchas
expressivas. Na história ocidental, deixou também a possibilidade da prática de
protestar a partir da não violência.
O livro
apresenta 32 capítulos. No início, há a recuperação autobiográfica de sua
infância e da sua herança cultural familiar. Também é descrito o confronto
inicial de Luther King Jr. com a desigualdade social e o sistema
segregacionista. Pontua-se a união com a musicista Coretta e o alinhamento
teórico de protestar à luz da não violência, baseado nas obras de Mahatma Gandhi.
Nesse começo, também contextualiza Luther King Jr. como decidido a ser pastor e
continuar estudando sobre a teologia social. Finaliza esses capítulos com a ida
de Luther King Jr. para Montgomery, para servir na Igreja Batista, da Avenida
Dexter.
A inspiração
dos protestos, com Rosa Parks ousando desrespeitar as leis segregacionistas ao
sentar no assento específico para branco, marca o capítulo oito em diante.
Luther King Jr. expõe sobre a trajetória de Parks até os protestos locais de
enfrentamento coletivo, com os políticos em Montgomery, contra as leis
segregacionistas de assentos nos ônibus. Luther King Jr. protagoniza as
manifestações a favor de Parks e une-se a Associação para o Progresso de
Montgomery, como membro de chefia, na articulação dos protestos.
No
capítulo treze define-se a estratégia formativa do protesto não violento;
ensinado por Gandhi, parte-se da lógica de envergonhar o oponente usando o
protesto da não violência. Os sujeitos à frente dos protestos apresentavam
reivindicações pontuais, também se organizavam coletivamente para saírem às
ruas em número significativo, além de terem colaboração participativa de grupos
formados por brancos. Luther King Jr. descreve a prática da não violência: ao
manifestante cabia receber os xingamentos, abusos, maus-tratos, socos, chutes,
cicatrizes e assassinatos sem retornar violentamente. Portanto, na prática dos
protestos a maioria dos manifestantes conseguiam resistir pacificamente, mas
resistiam, só que faziam uso da não violência como norte de defesa. Para Luther
King Jr. esse cenário demarcava as violências praticadas por policiais,
políticas e governo, e pelos outros grupos claramente segregacionistas.
Do
capítulo catorze para frente, a autobiografia expõe sobre os protestos e as
manifestações contrárias à segregação. Explora Luther King Jr., como mediador e
colaborador entre as instituições religiosas e privadas, para que elas
incentivem as reivindicações, em especial, pagando as fianças de milhares de
ativistas presos no país, por participarem das marchas de protestos. Narra a
formação de movimentos extra cidade e região sul, nos protestos por direitos e
liberdade, tal como a marcha sobre Washington e a campanha de Chicago.
Na
finalização da autobiografia, Luther King Jr. narra seu protagonismo contra a
posição do governo de levar soldados americanos à guerra do Vietnã. Justifica
sobre seu entendimento a respeito da expressão “poder negro”, identificando
inicialmente problemas de característica linguística e política. Finaliza a
obra trazendo imaginações futurísticas, afirmando a existência do momento em
que o negro será incluído, entretanto não se observa nessa projeção.
Mandela: do direito à vida
O livro “Nelson
Mandela, Longa Caminhada até a liberdade” (2012) impresso em 1994, dividido
em onze partes, apresenta 776 páginas. Nelson Rolihlahla Mandela narra a maior
parte da autobiografia no presídio em Ilha Robben, na África do Sul, com a
colaboração dos membros mais antigos do partido Congresso Nacional Africano
(CNA). Entretanto, alguns capítulos posteriores à época do presídio, são
detalhados após a sua eleição e fim do regime do apartheid no país.
No início
da obra, descreve a infância e o ambiente rural que cresceu. Aponta a morte do
pai como o momento desafiador e narra a chance de recomeçar a vida em outras
relações de afeto no Grande Local, com a educação do regente e sua família.
No
segundo e terceiro momentos, expõe como fugiu para a capital, Johannesburgo,
com o companheiro, Justice, filho do regente. Descreve também as experiências
de moradia, em cômodos pequenos, até chegar ao assentamento popular de
Alexandra. Conta sobre iniciar na política, participando do CNA, além de
mencionar sobre os trabalhos e experiência em advogar e mediar. Contextualiza a
história do país, identifica o cenário segregado e desumano dos trabalhos,
cotidiano, transporte e a vida de forma geral dos negros.
No
quarto, quinto, sexto e sétimo capítulos define sua vida pela luta por direitos
humanos na África do Sul, esclarece a respeito das escolhas que fez em optar
pelo recurso da não violência, ao realizar a desobediência civil e não
cooperação ao regime do apartheid e, mais à frente na narrativa, pontua
a sabotagem e a luta de guerrilha como propostas assertivas contra o governo
instalado aos sul-africanos. Justifica essas experiências, em parte, pelo
governo decretar Lei Marcial e restringir de forma significativa a
sobrevivência de qualquer partido político que vá contra o Nacionalismo do
regime do apartheid, do presidente Malan. Ainda, no decorrer desses
capítulos fala de cada preparação de defesa, argumentos, declarações, cenários
e julgamentos, visto que se criou uma atmosfera popular de protestos e
manifestações.
No oitavo
momento, expõe a sua vivência no presídio, na Ilha de Robben. Descreve a rotina
como preso político, o trabalho pesado, o quebrar pedras, a comida à base de
milho, a dificuldade de contato com os guardas para as diversas reivindicações.
No nono e
décimo capítulo comenta sobre as ressignificações afetivas que a Ilha lhe
proporcionou. Descreve que, em razão de algumas reivindicações constantes,
conseguiram melhorar dificuldades da prisão. Também pontua que sua atuação como
advogado, mesmo clandestino, contribuiu com vários presos que não teriam
defesa. Expõe a colaboração política do CNA na prisão, explica como se
organizavam, pautavam e decidiam de forma coletiva.
Na parte
final, narra a negociação com o então presidente da África do Sul, Klerk, sobre
o fim do regime do apartheid, e o desmantelamento de várias leis
segregacionistas. Expõe como ocorreu o processo de constituição da assembleia
nacional, eleita por voto popular, para a ocupação de cargos no governo
sul-africano. Descreve a eleição. Fala o discurso que pronunciou, como
presidente da África do Sul e, na última parte, reflete experiências pessoais
sobre bondade, medo, amor e liberdade.
Resultados & Discussão
A partir
da descrição sócio histórica e das definições da AC delimitadas nesta pesquisa,
avança-se para as interpretações e reinterpretações, seguindo a ordem de
apresentação das autobiografias.
Mahatma
Gandhi formou com amigos e colaboradores um espaço de discussão, em razão da
sociedade em Natal – África do Sul – praticar preconceito cultural com os
trabalhadores indianos que vinham para à cidade em contratos informais, que, de
funcionários, os contratantes atribuíam aos indianos características de
servidão, além das agressões e violências físicas. Chamado de Congresso, a
esfera de informação e protesto proporcionava atmosfera reivindicatória tanto
em Natal como para a região, em 1894 (GANDHI, 2014). Nos episódios destas narrativas sobre a
formação do Congresso, visualizam-se as categorias-conceito de direitos à
comunicação e direitos humanos. A comunicação compartilhada (PERUZZO, 2013) no Congresso interviu na desconstrução representada
pelos próprios indianos sobre eles, bem como se ampliou suas construções a
respeito dos direitos ao trabalho, à saúde e acesso a bens como os de
patrimônio histórico e cultural (BOBBIO, 2004; GALLARDO, 2014).
Gandhi traz as reivindicações dos direitos humanos,
do direito à comunicação e do conceito de satyagraha, na amplitude do
direito a ser (FROMM, 1956, 1976, 1977). Para Gandhi, portanto, a luta cidadã, ao passo que é um
direito do indivíduo enquanto formas de ser e agir, também se relaciona a esse
cumprimento do ser, para que as reivindicações cotidianas se desdobrem em
características voltadas à cidadania de fato.
O direito a ser, em Gandhi, inclui a racionalidade
da não violência, ou seja, ao indivíduo cabe o direito de representar-se no
mundo de forma a desprezar qualquer forma de violência. Para o filósofo Muller (2007,
p.197), Gandhi, ao trazer exigência ética da não violência, “[...]
consolida a humanidade do homem, como também na experimentação da estratégia de
ação não-violenta, que permite a resolução pacífica dos conflitos”. Provoca,
remetendo às práticas de Gandhi, respostas empíricas do poder humano de
formular por si próprio resoluções das problemáticas essenciais, as quais se
relacionam ao sentido da existência e da própria história (MULLER, 2007, p.198).
A opção pela não violência (MULLER, 2007) do ser em Gandhi liga o indivíduo a outros
direitos relacionados, em especial à ternura e ao amor. O amor conceitua-se
como estado evoluído do conflito sócio histórico da humanidade (FROMM, 1976), representa-se também como uma atividade criadora
e seu papel é ampliar a vida. A ternura conceitua-se como negativa constante da
violência, desde a íntima como a relacionada ao externo. Esse entendimento
coloca a presença do outro como indispensável para a conquista das ações à base
de ternura (RESTREPO, 1998). A partir dessa proposta sobre ternura, o ser
humano desloca sua condição de cidadão desarmado e impotente para fortalecer-se
do não comprometimento do “negócio da morte” (RESTREPO, 1998, p.81).
Reconhecido o direito de ser, ternura e amor, a
cidadania em Gandhi age como plataforma, conecta os direitos, depois os
expressa; assim, corrobora na manifestação da ahimsa, em sânscrito, a
não violência a todos os seres.
A partir do norte da ahimsa, as
categorias-conceito de dialogia (SENNETT, 2012; RESTREPO, 1998), do ser transutilitário (FROMM, 1977) e do ser amor (FROMM, 1956, 1976) são identificadas nas narrativas de Gandhi quando
retorna para o interior da Índia, ao deparar-se com privações locais, em
especial com o detalhamento das condições de abuso e injustiças que
sequencialmente os agricultores de anil, na região de Champaran – ao norte da
Índia –, eram submetidos pelos proprietários das terras que arrendavam. Ao
intermediar a situação, por volta de 1917, Gandhi permanece na localidade por
aproximadamente dois anos, ouvindo mais de 100 camponeses, em conjunto com
autoridades policiais, e identificando que o problema transcendia a produção de
anil e outros impostos abusivos, também envolviam falta de infraestrutura de
saneamento básico, educação, autoestima e perspectiva de vida para as famílias
(GANDHI, 2014).
Como resultado histórico, o sistema abusivo de
produção e arrendamento foi abolido por lei, assim como os impostos ilegais
foram indicados para serem ressarcidos aos camponeses. E assim, o Projeto de
Lei Agrária foi aprovado e com valor social para a região dos camponeses e suas
famílias (GANDHI, 2014).
Para tanto, em Gandhi, o estudo para a cidadania
plena compete ao ser humano buscar-se agir de forma ética consigo, num processo
anterior à própria reivindicação e luta coletiva. No intuito de anteceder e
preparar o processo dialógico com o outro. A não violência em Gandhi permitiu
essa observação, porque não ser violento com o outro é necessário para não ser
violento consigo. O caminho da luta cidadã sob à luz da não violência prospecta
ideologias de percurso histórico diferentes. Nesse sentido, a cidadania inclui
o direito à ternura e o amor, e a mudança paradigmática da não violência.
Para Muller (2007), a ideologia da violência instrumentaliza o
homem. A tônica para uma cultura da não violência seria a reversão desse
processo ideológico de aplaudir e heroicizar a violência. “A questão que se
apresenta hoje ao homem racional é saber se não seria possível inventar uma
outra história experimentando uma outra técnica de ação sem ser a da violência”
(MULLER, 2007, p.244), na procura de apoderar esse homem de sua
humanidade e valor.
Outro exemplo que remete a categoria-conceito da
prática da não violência, é a conciliação entre tecelões e proprietários de
fábricas em Ahmedabad, sobre ajuste salarial e condições de trabalho (GANDHI, 2014). Gandhi propôs organizar ações coletivas de não
cooperação entre os operários, assim como formar a ashram à luz da
prática da não violência (MULLER, 2007), realizando propostas que solidificaram
a irmandade humana em comunidade, num ambiente de cooperação, a partir da
aproximação das diferenças entre as relações sociais existentes. A busca por
esse valor humano nas relações sociais também fez parte da ideia de direitos
humanos nas experiências de luta contra a segregação racial e desigualdade
social na autobiografia de Martin Luther King Jr.
Luther King Jr. apropriou-se da prática da não
violência (MULLER, 2007), categoria-conceito, de Gandhi para a construção
de sua prática cidadã, bem como teve o cuidado em incluir aquele outro, vítima
do sistema de segregação além do negro, ou seja, a população branca.
No contexto histórico dos boicotes de ônibus
segregados, até o momento em que a lei perecesse e não tivesse mais divisão no
transporte, na cidade de Montgomery, no sul dos EUA, transformou-se em “ato
popular de não cooperação” (CARSON; LUTHER KING JR., 2014, p.73-75), os manifestantes iam
para suas atividades cotidianas na caminhada e via carona. Esse protesto durou
381 dias, até 1956, quando a Suprema Corte dos EUA declarou inconstitucionais
as leis segregacionistas nos ônibus. Segundo Luther King Jr. foi essencial esse
movimento ter se organizado a partir da tutela do amor (CARSON; LUTHER KING JR., 2014).
Os ideais vividos de ser amor e transutilitário (FROMM, 1956, 1976, 1977), categorias-conceito, configuraram à Luther King Jr.
lutar pelos direitos da sociedade negra, manifestando-se não violentamente, ou
seja, não cooperando com o sistema discriminatório nos ônibus, depois nas
escolas e demais locais públicos. A configuração posterior do movimento
corroborou na reivindicação por igualdade social e pelo direito ao voto.
Esse processo de luta por direitos em que o outro
se insere numa proposta assertiva para a unidade, promove a dialogia (SENNETT, 2012; RESTREPO, 1998), categoria-conceito, e a alteridade ao
componente da cidadania.
O conceito de alteridade abarca o respeito ao
diferente na prospecção de sua diversidade ser contemplada (ARRUDA, 2002) e dialogia como a troca de saberes e
experiências na busca de uma resolução em comum, acordada e bem-sucedida, a
partir de um diálogo em que impere equidade entre as partes (SENNETT, 2012). Nesse processo, valoriza-se a negociação de
diferenças (ARRUDA, 2002). Um dos maiores entraves para essa negociação
veio da própria cultura ocidental reforçar a ação unilateral do analfabetismo
emocional reduzindo a segundo plano à racionalidade humana o direito e a
alternativa do afeto (RESTREPO, 1998). Ao mesmo tempo proporcionando ao “público”
todos os direitos e legalizações para governar o “íntimo”.
Para Restrepo (1998), deve-se ainda à cultura ocidental o legado de
todas as informações referentes ao íntimo, ao subjetivo, estar distanciado do
movimento das ações políticas cotidianas, minimizando a compreensão por uma
ética cidadã plena, àquela a qual deveria incluir também como se constroem
“intimamente” as relações de poder em sociedade (RESTREPO, 1998, p.10). A partir dessa premissa de subjugar o
valor das questões referentes à esfera do íntimo e enaltecer tutelando ao
“público” o controle, incide a dificuldade das alternativas, como a não
violência e a ternura de problematizarem-se como plataformas culturais de
direito.
A proposta de cidadania em Luther King Jr.
contempla a alteridade na meta de incluir as diferenças e o direito emocional.
Esse posicionamento sobre a cidadania é ativo e reconhece nas ações políticas o
valor humano da ética do coletivo.
As características de ser ativo fizeram Mandela
preferir viver, mesmo no ambiente hostil e torturante da Ilha de Robben (MANDELA, 2012). Na prisão reivindicavam óculos, calças
compridas, alimentos iguais, luz para estudo, advertiam sobre injustiças, não
importando a dimensão delas. Além disso “[...] lutávamos contra a injustiça
para preservar a nossa humanidade” (MANDELA, 2012, p.498).
Em conversas com guardas e outros funcionários do
presídio, Mandela descreve o aprendizado no dialogar a partir das referências
deles sobre presos políticos. “Ele teria acreditado que éramos terroristas e
comunistas que desejam atirar os homens brancos no mar” (MANDELA, 2012, p.514). À medida do desenrolar das conversas,
Mandela explicava a ideia não racialista do movimento, da política do CNA, da intenção
de direitos iguais e, para alguns, o argumento Nacionalista não fazia mais
sentido. A ideia central de Mandela era “desarticular os preconceitos” dos
guardas e funcionários (MANDELA, 2012, p.558).
Mandela não abdicou de seus direitos fugindo do
conflito necessário, pelo contrário foi via conflito, entre os policiais e
autoridades na prisão da Ilha, e posteriormente, com o governo, estabelecendo a
possibilidade de um contato entre as partes, com o objetivo de gerar equidade
entre eles, no intuito de conceder seus respectivos direitos. Por isso a
necessidade do ser ativo à adversidade do outro, mesmo diferente e distante (MULLER, 2007).
A perspectiva da alteridade no desenvolvimento da
política pós-apartheid por Nelson Mandela contribuiu para a base
democrática no país condizer com a aproximação dialógica (SENNETT, 2012; RESTREPO, 1998), categoria-conceito. O processo de luta e
reivindicação cidadã, por direitos humanos (categoria-conceito), sociais,
civis, políticos, direito à comunicação (categoria-conceito), direito à
liberdade de ação foi subsidiado pela insistência no diálogo entre partes
antagônicas, a partir de conflitos por vezes construtivos. Contudo, a busca por
essa cidadania caracterizou-se pela liberdade à vida, pela saudação à vida.
Numa atmosfera marcadamente violenta, em que o
extermínio era a saída política do governo, Mandela cooperou emancipando o
valor da vida no trato de suas negociações permanentes, agindo de forma ativa
com o interlocutor: ora o governo, ora os grupos étnicos, ora as milícias, ora
seu próprio partido, recuperando o valor central do direito à vida (FROMM, 1956, 1976, 1977).
O significado do homem esperançoso reivindicador à
vida não contabilizada pela violência no país, permite credenciar à cidadania a
integridade do humano. Para Fromm (1977), o homem esperançoso é ativo e consegue, das
realidades, somar alternativa para diferenciar a humanidade dessas condições.
Das condições existentes a dialogia e a alteridade pautaram a luta por direitos
humanos em Mandela.
Considerações
finais
Na trajetória dos ativistas verifica-se apologia à
vida criativa, promovendo justiça pelos pares, por meio da luta cidadã,
reivindicando direitos humanos e convivência humana tanto ao prezar alteridade
aos seus iguais como aos diferentes, na difícil, porém possível, missão de desafiar
ideologias as quais se transformaram em estados orgânicos.
As estruturas orgânicas desenvolvem inclusive a
identidade de direitos humanos desvinculada da sua função primeira de igualdade
e pró-ação ao ser humano. Para o pesquisador da área Gallardo (2014, p.26), vive-se um protótipo artificial de
direitos humanos, pois no imaginário social vigora a ideia de “[...]
transformar os inimigos em seres que, por sua maldade, não preenchem o conceito
de humanidade”. Esse processo sistematicamente organizado de forma ideológica,
moral e política justifica guerras e disputas violentas por apresentarem seres
humanos perdedores do pódio da vida.
O pesquisador em direitos humanos propõe como saída
um trabalho político integrativo entre as maiorias sociais, com a finalidade de
diagnosticarem e revalorizarem os direitos. Indica esse processo como
sobrevivência humana, do que se entende como humanidade, depende hoje, do
fortalecimento desse processo cultural acerca dos direitos humanos.
Explica como as sociedades estão significativamente
diluídas em muitas minorias, o desafio é ressemantizar flexibilizando as
particularidades das demandas libertadoras para as maiorias (GALLARDO, 2014). Num movimento de articulação para produzir
uma nova cultura de direitos humanos, ressaltando: “[...] sensibilidade de
reconhecimento, acompanhamento e solidariedade humana. De uma cultura que
aposte no risco de assumir o diferente que se empenha em crescer de maneira
libertadora, como referência de aprendizagem e humanidade” (GALLARDO, 2014, p.109).
A construção dessa perspectiva de cultura de
direitos humanos reflete a uma possibilidade de experiência civilizadora, a
qual casa com o cerne de cidadania proposto por Gandhi, Luther King Jr. e
Mandela (GALLARDO, 2014).
Um fator importante nessa articulação de uma
cultura por direitos humanos é a problematização dialógica entre as
singularidades dos grupos sociais representados, para desenvolverem suas demandas
de forma construtiva (MULLER, 2007).
No posicionamento da qualidade da informação e
expressão do comunicar, Peruzzo (2009, 2013) inclui a atividade comunicativa,
propriamente do direito à comunicação, como parte dos direitos humanos.
Fundamenta a importância da comunicação como prática propositiva para emancipar
o ser, dando-o possibilidades de conhecer mais profundamente seus próprios
direitos em sociedade. “[...] A comunicação pode contribuir nos processos de
conhecimento, organização e ação com vistas a assegurar o cumprimento de todos
os direitos humanos” (PERUZZO, 2013, p.169).
O direito à comunicação foi utilizado por Gandhi na
esfera do Congresso na África do Sul e, posteriormente, na Índia; assim como em
toda possibilidade de defesa pública, como também foi incorporado à Mandela
como ferramenta de discurso político e educação antiapartheid nos
ambientes de julgamento e manifestações. Luther King Jr. oportunizou dos
espaços religiosos, das marchas, passeatas, entrevistas, declarações e outros o
direito à comunicação vigorar como plataforma de reivindicação sobre a prática
da não violência e a visão dessegregacionista.
As narrativas analisadas evidenciam a importância
histórica em negociar a partir das habilidades da dialogia, da alteridade e do
modo ser amor. As travessias dos autobiografados a partir dos compartilhamentos
de cidadania e das características de ação à dialogias, reestruturaram direitos
humanos mais próximos de seus valores humanos, promovendo a vida em coletivo,
no desafio permanente por justiça nas relações sociais.
Ao caminhar para as finalizações, verificaram-se
que as experiências e saberes nas autobiografias agregaram conceitos à
cidadania, contribuindo a respeito da emancipação do indivíduo, bem como do
indivíduo na dinâmica com o coletivo. No movimento das sociedades cada vez mais
complexas e diversificadas, pensar em cidadania na ótica dos ativistas é
proporcionar luz às formulações sobre dialogia, alteridade, não violência, ser
ativo, esperançoso, terno e amoroso, para além das conceituações, é encontrar
nessas referências acertos à vida prática e apta à negociação.
O presente artigo
apresenta os resultados simplificados do pós-doutorado em Processos
Comunicacionais ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, na
Universidade Metodista de São Paulo, sob supervisão da pesquisadora Cicilia M.
Krohling Peruzzo.
O “ser” entre
aspas relaciona-se à ideia de Fromm (1957) do ser humano apenas desenvolver o estado de ser
amor quando caracterizado ao olhar do modo ser, diferente da visão do modo ter.
Na teoria, Fromm (1957) explica o modo ter como aquele limitador das
esferas dos sentidos mais amplos e construtivos do ser amor.
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Publicaçao: abril 2019