A partir das eleições de 2006, a disputa pelo título de “melhor governo
da história deste país” foi politicamente decidida a favor de Lula,
contra a administração tucana anterior. Já o debate acadêmico, em sentido contrário, parecia
se encaminhar para entronizar (para o bem ou para o mal, dependendo da
avaliação) o plano real iniciado quando Itamar Franco estava na presidência, foi o marco de um novo período da história
brasileira. O cientista social André Singer, num artigo
publicado em 2009 na revista
Novos Estudos do Cebrap, resolveu
comprar a briga e estabelecer o lulismo como momento inaugural de uma
nova era. Segundo suas análises, o governo Lula construiu um programa
político ao longo de dois mandatos, cuja base social estaria na massa
popular que conquistou, nesse período, substanciais
melhorias em seu padrão de vida. Lula teria realizado uma operação
política de troca de sua base eleitoral e de apoio entre as eleições de
2002 e de 2006. Conforme a tese, ele ampliou a base tradicional na
classe média em favor de um “subproletariado”, caracterizado por um
profundo e disseminado conservadorismo. Foi nesses termos que Singer deu
corpo e densidade à expressão até então vaga do “lulismo”, levando a
discussão a outro patamar.
Em textos mais recentes, Singer deu a esse suposto conservadorismo de
massa profundidade histórica, em registro local e internacional, por
assim dizer. O lado nacional conecta a nova base social de Lula a uma
corrente social subterrânea que o levaria a Getúlio Vargas e à “herança
populista dos anos 1940/1950” e que estaria ligada, no presente, a um
“povo lulista que deseja distribuição de renda sem radicalização
política”, como afirmou em artigo publicado na
Folha de S.Paulo.
Já é suficientemente inquietante a aproximação com um paternalismo
avesso à democracia. Tanto mais que Singer nem mesmo distingue entre o
Getúlio Vargas da ditadura do Estado Novo e o presidente eleito da
década de 50. Mas a complicação fica ainda maior quando aproxima o
lulismo do New Deal dos Estados Unidos da década de 30, como fez em
ensaio publicado na edição de outubro de 2014 na revista piauí. Essa
comparação com um momento passado da história norte-americana pretende,
na verdade, apontar para o futuro – para o Brasil que teria sido
inaugurado pela era Lula e que teria como imagem a formação da nova
classe média dos Estados Unidos depois do período do presidente Franklin
D. Roosevelt.
A comparação com o New Deal parece deslocada por várias razões. A
começar pelo fato de que, nos Estados Unidos, ele se seguiu a nada menos
do que a crise de 1929. Ao contrário de Obama agora, Roosevelt chegou
três anos depois da maior catástrofe econômica da história do
capitalismo em tempos de paz e encontrou o terreno propício – não
obstante a derrota histórica nas eleições legislativas de 1938 – para
alcançar um novo grande acordo social. Sem falar no fato elementar de
que o patamar de desenvolvimento social, econômico e democrático dos
Estados Unidos pré-1929 não tem base de comparação com o Brasil de 2002.
E, tudo somado, um vaivém entre o New Deal, Lula e o Estado Novo nem de
longe pode ser considerado como uma operação inofensiva.
Seja como for, está ausente a referência à democracia e a uma cultura
política democrática – tanto no caso dos Estados Unidos como no caso do
Brasil. Como se a presença ou ausência da tradição e da prática
democráticas não fosse elemento estrutural para pensar qualquer
aproximação ou comparação entre situações sociais e históricas
distintas. De maneira crua, o que se tem na argumentação de Singer é o
suposto de que aumentar a renda da população pobre tem resultados
conservadores. Um pressuposto, aliás, que não é demonstrado. Surge como
um economicismo de novo tipo. Não apenas por ignorar o papel das
instituições e de uma cultura política democrática – fenômenos
“superestruturais”, como se costumava dizer no velho jargão marxista –,
mas por reduzir a política ao reflexo de uma população que compra e
consome.
Com essa redução, desaparece do horizonte também a crítica. Desaparece
todo o universo de obstáculos à efetiva democratização da sociedade que
caracteriza a política do país. Desaparece a imagem de uma sociedade
amputada por uma representação política excludente, como é o caso da
brasileira. Supor conservadorismo sem examinar as condições políticas
concretas do desenvolvimento da democracia naturaliza esse mesmo
conservadorismo.
A situação é outra quando se olha tanto o período FHC como o período
Lula do ponto de vista mais amplo do processo de redemocratização
iniciado nos anos 80, com o fim da ditadura. Dessa perspectiva, tanto o marco representado pelo
plano real quanto aquele representado pelo governo Lula se apresentam
como momentos de inflexão em uma linha de desenvolvimento que os precede
e, em boa medida, os determina. Ao mesmo tempo, é apenas essa ampliação
do horizonte que permite enxergar a cultura política mais duradoura que
caracteriza a sociedade brasileira, juntamente com sua forma mais
relevante e estrutural de obstrução democrática. A essa cultura política
herdada dos anos 80 dou o nome de “compadrismo”.
É possível ver o desenvolvimento da política do país desde então como
uma sequência de tentativas de lidar com esse fenômeno fundamental, seja
para combatê-lo, seja para neutralizá-lo, seja para dirigi-lo. De
maneiras diferentes, tanto o plano real como o “lulismo” foram
tentativas de controlar o compadrismo de fundo da política brasileira.
Por isso, por mais importantes que pareçam e de fato sejam, são momentos
de inflexão em uma linha de força muito mais duradoura e consistente.
A compadrização não tem a ver apenas com o crescimento ou a eventual
hegemonia de um partido dentro de um governo. Tem a ver com uma lógica. A
título de exemplo, basta pensar que uma figura como Aécio Neves pode
perfeitamente ser pensado nesse registro. Se tiver a oportunidade e as
condições políticas para isso, certamente ele será um símbolo do compadrismo, mesmo que nunca se transfira partidariamente para o PMDB e
continue no PSDB.
O compadrismo significa uma lógica, portanto. Lógica que, sim, se formou
e se consolidou a partir da configuração concreta do PMDB na década de
80, nas condições específicas em que se deu a redemocratização. Mas que
se autonomizou em relação ao partido, mesmo que este continue ainda hoje
a ser o seu fiel depositário na política brasileira, pois se coligou com o PT e mantém apoio no congresso a administração pública petista.
Para entender esse movimento, é preciso voltar três décadas e puxar o
fio da meada desde lá. O que é um exercício bem distante de ser óbvio no
momento atual, em que a euforia da irresistível ascensão do país à
condição de potência mundial deixa ver com dificuldade o fato elementar
de que períodos de crise não foram a exceção, mas a regra, no quarto de
século que vai de 1978 a 2003.
Com a reforma partidária de 1980, o MDB, já então PMDB, ganhou o
importante problema de saber como não se esvaziar, de como manter dentro
da mesma legenda correntes, tendências e mesmo partidos inteiros que
tinham poucas afinidades além da unidade da luta contra a ditadura. Com o
pluripartidarismo, parecia que o sentido do MDB também havia se
esgotado.
Ocorre que não só o MDB guardava um capital político de altíssimo valor.
Dispersar forças naquele momento poderia significar também colocar
inteiramente nas mãos dos militares a transição democrática. Pois a
antiga Arena tinha se tornado o PDS e conseguira manter a maior parte de
seus quadros. Se a oposição se dispersasse naquele momento, o colégio eleitoral de 1985 poderia eleger um nome civil do PDS como presidente da
República, em lugar de Tancredo Neves.
Para conseguir manter dentro de um mesmo partido correntes e tendências
tão heterogêneas, a nova sigla aperfeiçoou um sistema interno de regras
de disputa que já funcionara durante a década de 70 e que, a partir de
1983, precisava também incluir figuras de uma nova ordem de grandeza:
governadores de estado. Esse sistema pode ser descrito de maneira
simples como um sistema de vetos. (Coisa muito diferente – e ainda mais
complicada – seria a de circunscrever a “base social” desse compadrismo,
de tão impressionante longevidade e vitalidade na política nacional,
uma tarefa que não cabe aqui).
É um modo de fazer política que franqueia entrada no partido a quem
assim o deseje. Pretende, no limite, engolir e administrar todos os
interesses e ideias presentes na sociedade. Em segundo lugar, garante a
quem entrar que, caso consiga se organizar como grupo de pressão,
ganhará o direito de vetar qualquer deliberação ou decisão que diga
respeito a seus interesses. Foi assim que o PMDB se organizou a partir
da década de 80. Como se o partido fosse, em si mesmo, um governo de
união nacional.
Foi uma resposta tipicamente conservadora ao brutal descompasso entre
uma democracia sem instituições e a altíssima participação popular nos
anos 80, especialmente visível no período da Constituinte. Em lugar de
democratizar aceleradamente as suas instituições, a política brasileira,
liderada pelo PMDB, construiu um sistema de filtros, obstáculos e vetos
que procurava represar e atender seletivamente à verdadeira enxurrada
participativa que se viu naqueles tempos, inédita na história do país.
O essencial da cultura política inaugurada pelo PMDB na década de 80 é o
fato de que, desde o declínio da ditadura militar, sua identidade deixa
de se construir por oposição a um inimigo, real ou imaginário, e passa a
ser construída com base em um discurso inteiramente anódino e abstrato,
sem inimigos, cujo sentido mais importante é garantir o sistema de
ingresso universal e de vetos seletivos ou simplesmente o controle do congresso.
Reafirma-se, então, a visão realista de que a democracia não passa do
exercício da capacidade de bloquear o oponente, não de enfrentá-lo
abertamente no espaço público. Pressupõe que maiorias não se formam
positivamente em favor de políticas determinadas, mas sim porque se
mostram capazes de desviar, contornar ou neutralizar vetos. No mais, é
uma cultura política que aceita mecanismos de participação e deliberação
democráticos. Desde que não ameacem seriamente o sistema de vetos ou o domínio congressual.
Mas essa lógica, digamos, inclusiva do compadrismo tem seus limites. A
política simplesmente deixa de funcionar quando a polarização
desaparece. Quando todos estão, por assim dizer, incluídos, quando estão
aptos e organizados para vetar, em algum momento vem a paralisia, uma
tendência inscrita no próprio compadrismo.
Na década de 80, a paralisia política coincidiu com a desorganização
econômica. Produziu uma constituição que contém muitas e diferentes
constituições dentro de si – o que, por razões que não vêm ao caso aqui,
acabou por ser positivo para a sua consolidação. E culminou com uma
inflação inteiramente fora de controle e com a humilhante derrota de
Ulysses Guimarães na eleição presidencial de 1989.
A desorganização econômica tinha nome e sobrenome conhecidos. Chamava-se
inflação, “inflação inercial”. Teve papel central na manutenção do
pacto de desigualdade brasileiro dos anos de
nacional-desenvolvimentismo, entre as décadas de 30 e 80. Nos limites
rígidos de uma economia fechada e, na maior parte do século XX, de
regimes autoritários e/ou coronelistas, a inflação auxiliou na promoção
de desenvolvimento econômico rápido e intenso sem alterar
fundamentalmente os padrões desiguais de distribuição de renda. Um pacto
que pretendia se sustentar na melhoria geral dos padrões de vida. Não
foi por acaso que um dos primeiros atos da ditadura militar de 1964
tenha sido o de institucionalizar a inflação sob a forma da “correção
monetária”.
Em um determinado momento, entretanto, a inflação deixou de ser o
mecanismo mais eficiente para a manutenção do pacto de desigualdade que
caracteriza a história brasileira, revelando divisões e disputas
potencialmente desagregadoras no interior dos próprios estratos sociais
privilegiados da elite brasileira, tanto em poder político, como econômico. Esse foi não apenas o momento em que a inflação se tornou
hiperinflação. A hora histórica coincidiu também com o declínio da
ditadura militar, com a redemocratização e com o esgotamento do modelo
chamado nacional-desenvolvimentista. Foi esse nó social que coube ao compadrismo não desatar.
A coincidência histórica de hiperinflação e redemocratização moldou um
sistema político programado para o quanto possível impedir a formação de
blocos hegemônicos capazes de impor perdas definitivas a terceiras
partes principalmente no congresso nacional. E não é difícil ver que a tarefa de superar simultaneamente a
hiperinflação e o modelo nacional-desenvolvimentista sem regressão
autoritária não é factível em uma configuração política como essa.
Para mostrar isso, basta lembrar que, até 1994, governos estaduais
tinham no Brasil relevantes instrumentos para fazer política econômica,
independentemente do chamado governo central. E que os tímidos ensaios
de abertura econômica da década de 80 – como a abertura para o
investimento, por exemplo – foram feitos na margem e por políticas
específicas de ministérios e órgãos da área econômica.
Dito de outro modo, a resposta conservadora é a do adiamento
permanente de soluções definitivas. Normalmente considerada como o
período do “ajuste estrutural” à nova etapa do capitalismo mundial, a
década de 80 foi, na verdade, a do adiamento do ajuste mediante a
manutenção da hiperinflação e do fechamento da economia. Não é de
estranhar, portanto, que esse adiamento estrutural leve, mais cedo ou
mais tarde, à paralisia.
O que explica também, do lado oposto, que a década tenha se encerrado
com a opção de disputa com o PMDB, com a eleição de Fernando
Collor do extinto partido PR. A paralisia pemedebista trouxe seu oposto para o centro da arena
política: Collor, com uma única opção, queria acabar com a inflação e o
nacional-desenvolvimentismo. No fundo, a oscilação entre os extremos da
paralisia pemedebista e do centralismo alucinado de Collor colocou as
bases para o surgimento da nova versão do pacto de desigualdade
brasileiro representado pelo plano real.
A reorganização que veio com o plano de 1994 não alterou
substancialmente a lógica pemedebista – o que, aliás, não surpreende, se
lembrarmos que o próprio FHC se formou na política partidária dentro do
MDB/PMDB. Mas o novo modelo de gerenciamento político do período Itamar Franco e FHC
deu ao pemedebismo direção e sentido, submetendo essa cultura política a
um sistema bipolar que o conteve em limites administráveis.
Em lugar dos dois extremos – pemedebismo ou Collor – o partido que FHC se elegeu presidente, o PSDB colocou a ponta
seca do compasso em um novo centro político, estabelecendo a partir daí
dois polos no sistema, um liderado pelo PSDB, o outro pelo PT. Além dos
aliados históricos de cada um dos lados, a regra seria construir uma
coalizão de “A a Z” sob a liderança do polo no poder.
Como já deve estar claro a esta altura, controlar a inflação significava
ao mesmo tempo controlar a tendência pemedebista da política
brasileira. É nesse sentido que a aliança PSDB/PFL foi, literalmente, a
outra face da moeda, do real. Controlar a inflação não dependia apenas
de um aprendizado técnico-econômico com os sucessivos fracassos dos
planos anti-inflacionários de 1986 a 1991: Cruzado (I e II), Bresser,
Verão, Collor (1 e 2). Dependia ao mesmo tempo da construção de um bloco
político capaz de superar a crise estrutural de hegemonia da
redemocratização que é chamada aqui de compadrismo. Ou seja, há um
vínculo interno entre a “inflação inercial” e a “política inercial” que
se cristalizou sob a forma de sistema político a partir da década de 80.
Ao se aliar ao PFL e, posteriormente, a quem mais estivesse disponível, o
governo FHC estabeleceu um campo de forças em que ao PT só restariam
duas possibilidades: permanecer indefinidamente na oposição ou fazer um
movimento em direção ao centro político, com uma nova e mais “flexível”
estratégia de alianças.
No caso de um movimento do PT em direção ao centro, a condição
propriamente partidária imposta pelo modelo era uma só: o partido
conseguiria vir a governar o país se, além dos parceiros históricos,
viesse a se aliar ao PMDB. O que efetivamente aconteceu no governo Lula,
ainda que somente depois do cataclismo do “mensalão”, pois naquele momento ficou claro que o PT deveria se coligar ao PMDB para dar continuidade a administração pública federal. “Mensalão”,
aliás, que marca o ponto de chegada e o apogeu da engenharia política do
plano real. Foi quando, pela primeira vez em 25 anos, uma crise
política não afetou a economia.
Mas a história ainda não chegou a 2005. Para chegar ao primeiro mandato
de Lula é preciso ainda lembrar de pelo menos mais uma das mudanças
estruturais decisivas introduzidas pelo plano real e que marcou o ocaso
do poder dos governadores de estado ou seu completo esvaziamento, tradicionais candidatos a gerentes
do condomínio político brasileiro. O primeiro movimento de
neutralização veio com a própria estabilidade da moeda, que teve um
efeito devastador sobre a dívida pública. Sem o permanente adiamento
representado pela inflação, os governadores se viram em dificuldades
orçamentárias intransponíveis e, do outro lado, encontraram no governo
federal um duro negociador na reestruturação das dívidas estaduais.
O segundo movimento foi concomitante. Retirando do âmbito dos estados
praticamente toda e qualquer possibilidade de praticar política fiscal e
monetária – o que era comum no período inflacionário – o governo
federal garantiu o monopólio da irresponsabilidade fiscal, julgada então
necessária para alcançar a estabilização econômica pretendida. A mesma
irresponsabilidade que negou aos estados. Não por acaso, foi o tempo
mais quente da chamada “guerra fiscal”, em que os governadores lançaram
mão dos parcos e únicos recursos que lhes restaram para obter
investimentos em troca de isenções e benefícios tributários e fiscais.
A concentração dos principais instrumentos de política fiscal e
monetária nas mãos do governo federal foi essencial para neutralizar
essa que foi uma das principais fontes de alimentação da política na
década de 80. E seu episódio inaugural e mais marcante ocorreu antes
mesmo da posse de FHC como presidente: a idealização do plano real pelo governo Itamar Franco. Logo após esse importante momento político, veio a intervenção no Banco do Estado
de São Paulo, o Banespa, realizada às vésperas da posse do governador do
estado, até então principal líder do PSDB, Mario Covas.
Depois de perder sua segunda eleição presidencial em 1994, Lula tomou a
decisão de fazer mudanças significativas no PT, reorientando
radicalmente sua estratégia. Tinha chegado à conclusão de que o plano real havia alterado profundamente a lógica da política brasileira, a
começar pelo fato de ter resolvido o principal problema nacional, a
inflação. Foi nesse momento que começou a ser construída tanto uma
maioria partidária disciplinada como uma nova política de alianças
partidárias e eleitorais.
O movimento inaugural nessa direção foi a eleição de José Dirceu para a
presidência do PT. A partir de 1995 – e não sem conflitos com o próprio
Lula, diga-se – Dirceu implementou à risca o plano, isolando ou mesmo
expulsando militantes e grupos políticos inteiros que se opunham à nova
orientação, construindo um sólido bloco de apoio majoritário, e buscando
estabelecer pontes com partidos e figuras políticas até então
consideradas como inimigos. O ápice dessa estratégia se deu na eleição
de 2002 e seu símbolo é a candidatura a vice-presidente na chapa de Lula
do empresário José Alencar, então senador do hoje extinto PL.
Lula ganhou a eleição sem o apoio formal do PMDB. Mas não conseguiu
estabilidade para governar até o momento em que cumpriu o destino que
lhe tinha sido reservado pelo arranjo imposto pelo plano real. Não que
Lula não tenha tentado fugir a essa camisa de força herdada. Ao
contrário, escolheu inicialmente construir novas alianças apenas com a
miríade de pequenos e médios partidos à disposição e fazer acordos
individuais com parlamentares do PMDB, não com o partido como um todo,
ou pelo menos com a porção dele que pudesse ser atraída para a base do
governo.
Nesse momento de seu primeiro mandato, Lula operava ainda como árbitro
do PT e não como presidente da República. O governo estava dividido
essencialmente entre facções do partido que continuavam a se digladiar
por espaço como antes. E Lula continuava a ocupar a posição de “último
recurso” que sempre ocupou nas disputas internas do partido,
interferindo diretamente apenas quando o seu próprio prestígio estava em
causa.
Essa situação fez com que as figuras de José Dirceu e de Antonio Palocci
se sobressaíssem e passassem como que a canalizar todas as disputas
internas ao governo em duas facções concorrentes. Dirceu apoiado no PT,
Palocci como porta-voz de outras forças partidárias dentro do governo e
do mercado financeiro. Por essa época, as negociações políticas eram
extremamente delicadas, já que Lula não autorizava (nem desautorizava,
ao mesmo tempo) ninguém a negociar em seu nome.
Foi essa instabilidade estrutural que o levou a recusar, em 2004, o
acordo com o PMDB construído durante meses por José Dirceu. Entre outras
coisas, porque isso significaria também, nesse contexto, dar poder
demais a Dirceu na disputa interna. O resultado foi o abismo do
“mensalão” que existiu tanto no PSDB quanto no PT, mas provocou prejuízos imprevisíveis no petismo. E a consequente aliança formal com o PMDB, em 2005, praticamente a solução para evitar riscos de impechiment, momento
em que Lula finalmente assumiu a Presidência da República e o papel de
articulador político de seu próprio governo.
E, quando parecia que o cenário traçado em 1994 estava sendo seguido à
risca, Lula deu o troco. Em lugar de apenas se limitar a trazer o PMDB e
o estritamente necessário para a sustentação política do governo,
passou a ampliar sistematicamente o centro político estabelecido a
partir do plano real e a tornar quase impossível a vida de um
oposicionista. Com taxas de aprovação popular jamais vistas, Lula
investiu contra a lógica da polarização PT/PSDB que organizava todo o sistema.
Manteve-a apenas nos limites do necessário para alcançar os efeitos
eleitorais pretendidos. Mas, de fato, roubou o chão do polo liderado
pelo PSDB.
Lula esteve em condições de ampliar de tal maneira o centro político que
a polarização praticamente desapareceu. Deu à oposição a alternativa de
aderir ou de se encantoar na extrema-direita. Ou seja, não lhe deu
alternativa. Ou lhe deu uma alternativa ainda mais estreita do que
aquela que lhe tinha sido imposta pelo grupo de FHC.
Esse movimento solapou de tal maneira as bases do sistema político do plano real que é difícil imaginar como elas poderiam ser hoje
recompostas. O acordo selado em torno do centro político se tornou de
tal maneira amplo que toda e qualquer polarização parece artificial.
Artificialismo, entretanto, que tem sua utilidade eleitoral, sem dúvida.
E que explica também por que a eleição de 2010 ficou entre o chocho e o
abstruso, sem nada de realmente relevante entre as duas coisas.
Em uma sociedade que – por muito boas razões, diga-se – não acredita em
consensos, o primordial é tentar garantir não ser atropelado por um dos
propalados “consensos” do momento. Como por toda a América Latina, as
eleições da última década significaram a ascensão de pobres e remediados
à condição de representados políticos.
O que talvez seja específico do caso brasileiro é a maneira como ocorre a
“inclusão”. Também no caso da representação do que André Singer chamou
de subproletariado, setento mostrar aqui que é o mesmo mecanismo
característico da cultura política brasileira que se encontra em ação: o
de igualar “estar incluído” com “ter poder de veto”.
Lula representa quem nunca teve verdadeiramente representação, não
porque simbolize um conservadorismo que seria próprio aos excluídos
políticos, mas porque é o fiador de que não haverá retrocesso nesse
avanço democrático à brasileira. Ao contrário da ladainha conservadora,
ser representado não é apenas ser objeto de políticas públicas; é
igualmente acreditar que não será atropelado por mais um dos muitos
“consensos” que o país produz de quando em quando.
É por tudo isso que penso que André Singer tem razão em dizer, no ensaio de piauí,
que “durante um tempo longo o norte da sociedade será dado pelo anseio
histórico de reduzir a pobreza e a desigualdade no Brasil”. Como me
parece ter razão ao acrescentar em seguida: “Em que grau e velocidade, a
luta de classes dirá.” Ocorre que a determinação do “grau e velocidade”
depende também de análises políticas concretas, que sejam capazes de
mostrar as tendências do sistema. Depende de uma análise política capaz
de vincular esse movimento à própria lógica da democracia brasileira,
com os potenciais e os obstáculos ao seu aprofundamento. Do contrário, a
posição do lulismo como pretenso momento inaugural de uma era perde o
gume analítico e seu eventual poder explicativo.
O que se tenta mostrar aqui é que há uma tendência à paralisia no sistema
político brasileiro cuja lógica chamo de compadrista, cujas raízes devem
ser buscadas na década de 80, no início da redemocratização brasileira.
Se tenta mostrar também que essa tendência intrínseca impõe dificuldades
estruturais à produção de polarizações consistentes e duradouras. E que o
momento atual é de enfraquecimento da polarização, um momento em que a
paralisia pode suplantar uma vez mais o sistema bipolar instituído pela
lógica política do plano real.
No caso da reviravolta política de Lula examinada aqui, por exemplo, o
alargamento do centro político e o enfraquecimento da polarização
tiveram por consequência trazer para o primeiro plano justamente o compadrismo, até então subordinado e subterrâneo. E essa novidade é um
elemento determinante do “grau e velocidade” em que poderão se dar ou
não as transformações no país.
O marco do novo surto pode ser representado pela resistência
de José Sarney na presidência do senado, apesar de uma saraivada de
denúncias, em 2009. O apoio decisivo de Lula à permanência de Sarney na
presidência do senado selou a aliança com o PMDB para a eleição
presidencial de 2010 e, ao mesmo tempo, marcou a volta da
disputa pela hegemonia da gramática política brasileira do compadrismo. Ao contrário de
casos anteriores, que resultaram em renúncia ou cassação de mandatos, a
permanência de Sarney mostrou que o centro político ganhou tal
amplitude e poderio, que pode em grande medida ignorar protestos
sistemáticos e generalizados da sociedade, como a ocorrida em julho de 2014.
Uma contraprova do caráter determinante dessa cultura política de fundo está em que, desde o primeiro mandato, Lula caminhou
justamente por onde não encontrou vetos: nos aumentos reais do salário
mínimo, na ampliação dos programas sociais, nas reformas microeconômicas
do crédito. Mas isso estava ainda longe da política desenvolvimentista
do segundo mandato, que induziu a criação de oligopólios nacionais com
pretensões de internacionalização.
Na nova política, os grupos escolhidos pelo governo como vencedores
tinham todas as razões para comemorar, assim como os demais tinham
motivo de sobra para se recolherem, evitando possíveis represálias. Além
disso, o crescimento econômico expressivo e praticamente contínuo
tornou os reais perdedores apenas residuais. Seja por que razão for, o
fato é que a nova orientação desenvolvimentista não encontrou
resistência social e política relevantes. E, coincidência ou não, esse
desenvolvimentismo movido a subsídios, desonerações e subvenções só
deslanchou com a entrada definitiva do PMDB no governo, depois do
“mensalão” pedessista e petebista.
Tão ou mais importante que isso, a chegada do PMDB ao governo Lula
trouxe ainda um elemento novo ao modelo de liderança bipolar herdado da
engenharia política imposta por FHC. Lula criou onde e como pôde
políticas sociais compensatórias. Só que repartiu de maneira desigual os
seus dividendos políticos.
O PT ficou com a formulação, com o controle dos projetos e com o crédito
de paternidade (ou maternidade, como se queira em Dilma). E o PMDB recebeu a
maior parte da execução das políticas – justamente a parte que contempla
o poder local e abastece a política miúda. O programa luz para todos,
não por acaso criado por Dilma Rousseff quando ministra das Minas e
Energia, pode ser visto como caso exemplar dessa lógica lulista de
repartição de dividendos políticos.
É justamente essa lógica de repartição de dividendos políticos que está
ameaçada de agora em diante. E não apenas porque a própria repartição
terá de ser negociada. O sucesso do plano real e a popularidade de Lula
conseguiram ainda contrabalançar, conter e direcionar em alguma medida o compadrismo. Mas são eventos passados e irrepetíveis.
Quanto mais se radicalizou a polarização entre PT e PSDB, tanto mais o compadrismo se impôs. Não se trata de dizer sem mais que a polarização é
falsa e que não há diferenças entre os dois polos. Mas, quanto mais essa política negativa avança, mais a polarização é amplificada artificialmente,
servindo à manutenção de uma lógica política profunda que não é nem
petista nem tucana.
Durante dezesseis anos, o sucesso do plano real e os altíssimos índices
de aprovação do governo Lula permitiram manter sob certo controle a
tendência do sistema de compadrização. Parece que não mais. A possível
oposição se encontra hoje entrincheirada justamente em governos
estaduais, o lugar político menos propício para enfrentar as coalizões
de “A a Z” que caracterizam os governos desde FHC. Além disso, um congresso ainda mais fragmentado serve de caldo de cultura política
ideal para a expansão do compadrismo.
A ironia e a tragédia da história estão em que o compadrismo encontrou
na “blindagem” da economia contra “interferências políticas” o elemento
que lhe faltava para voltar a disputar a hegemonia política, para sair
de sua posição de relativa subordinação de mais de quinze anos para um
novo protagonismo. Note-se, aliás, que o fiel depositário, o partido que lhe deu origem, procurou mesmo se mostrar
fiador dessa “blindagem”, filiando quadros tão importantes e
incongruentes entre si como Henrique Meirelles e Delfim Netto. O
resultado regressivo desse processo é visível a olho nu: uma política
que tende a se descolar da sociedade, uma política que tende a se fechar
sobre si mesma. E que, no limite, pode levar à paralisia.
Tornado aliado em sentido enfático nas eleições de 2010, o PMDB vai
levar a disputa entre situação e oposição para dentro do governo. É por
isso também que o tamanho nominal da bancada parlamentar que apoia o
governo tem menos importância do que as matérias específicas em pauta,
do que o estado da disputa interna ao governo. Ou seja, a mais
importante disputa política será entre o PMDB e o compadrismo, de um
lado, e o PT e seus possíveis aliados, de outro.
Não será uma briga bonita de ver. As fábricas de dossiês vão se
multiplicar como nunca. Já durante a eleição de 2010, a ministra-chefe
da Casa Civil, Erenice Guerra, foi a primeira baixa, o prenúncio do que
virá. Sua queda dá uma pálida ideia de como serão os embates futuros.
A primeira das duas batalhas decisivas será uma vez mais a eleição
municipal – a mesma, aliás, que esteve na origem do “mensalão”, é
importante lembrar. Depois de 2012, a segunda batalha acontecerá na data
limite para parlamentares trocarem de partido sem penalidades, na
segunda metade de 2013. Enquanto isso, o PMDB fará de tudo para colocar
sob sua órbita de influência o maior número possível de parlamentares de
outros partidos.
A primeira escaramuça – que de maneira alguma será decisiva – acontecerá
na eleição para a presidência da câmara e do senado, no início de 2011.
Sendo que a figura de José Sarney é aqui emblemática: o atual
presidente do Senado e candidato à recondução ao cargo foi justamente o
presidente no auge do compadrismo da década de 80. Sabe muito bem o que
significa estar nas mãos de um congresso que funciona segundo essa
lógica.
Não é nem um pouco fácil imaginar o lugar que poderá ter a oposição
durante o governo Dilma. Há quem confie em supostas leis da política e
ache que é assim mesmo, que a oposição vai se reorganizar e acabar
aparecendo. Mas não são muitos esses otimistas científicos.
Mas, mesmo reorganizado PSDB com Aécio na presidência, a oposição pode, no máximo,
servir de massa de manobra na disputa entre PT e PMDB. E manter a
esperança de que o compadrismo afinal vença e venha a produzir a
paralisia que lhe é própria. Isso seria capaz de dar novo fôlego à
oposição, talvez em aliança com o próprio PMDB. Mas também esse não é um
cenário alentador para a democracia brasileira. Porque, no fundo, o
jogo político não vai se dar entre situação e oposição, mas entre a
crise de um sistema organizado em polos e a compadrização.
Seja como for, se não é possível prever os resultados de uma regressão
política do compadrismo, é pelo menos possível dizer que, no médio e
longo prazo, sua efetiva ocorrência exigirá uma reorganização de grandes
proporções. Porque o sistema político não sobrevive sem polarização. E a
polarização dos últimos quinze anos não tem mais densidade suficiente
para organizar e estruturar o sistema.
Um sistema em estado de não polarização é o elemento do compadrismo. E,
se um cenário regressivo não se deixa ver hoje em toda a sua possível
amplitude e gravidade, pelo menos suas marcas mais gerais são bem
visíveis: um tempo de bonança, desigualdade e pequena política. Ou até
que uma nova polarização se produza para superar uma vez mais a
paralisia compadrista com o surgimento de uma nova e inimaginada polarização.
Agradecimento
Maria Cristina Fernandes não tem nenhuma responsabilidade pelo que
escrevi acima, mas sem suas sugestões e críticas o texto simplesmente
não seria o que é.
Revista Piauí - Edição 51 > _ensaio > Dezembro de 2010
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-51/ensaio/o-fim-da-polarizacao