"Mesmo quem é profundamente crítico a este governo,
como eu, precisa entender que o impeachment não foi só contra o governo; pela
situação e o precedente que cria, ele foi contra todos nós”, diz o filósofo.
O
julgamento do impeachment da presidente Dilma "é político no pior sentido”, e
se ela for cassada, não entrará em curso um novo projeto, porque "não há novo
projeto”, mas "uma política de terra arrasada”, diz Rodrigo Nunes à IHU On-Line.
Na
avaliação dele, "o propósito do novo bloco de governo”, composto "basicamente”
pela "mesma ‘base aliada’ menos o PT, é promover uma restauração conservadora
não apenas contra os avanços da última década, mas contra a própria
possibilidade de novos avanços”.
Apesar
das críticas que já direciona a um eventual governo Michel Temer, Nunes frisa
que o recorrente discurso de uma "ascensão conservadora” no país "simplifica
uma série de movimentos moleculares díspares e os transforma num fenômeno molar
unívoco. (...) Se estes diferentes movimentos não podem ser univocamente ditos
‘conservadores’, isto quer dizer que eles podem ser disputados por forças tanto
regressivas quanto progressivas”, e este "é o desafio”.
Na
entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o filósofo analisa a
crise política a partir da atuação dos movimentos que estão nas ruas e afirma
que desde 2013 dois grupos se potencializaram: o primeiro através da
articulação do Movimento Brasil Livre - MBL e o segundo com interlocutores no
empresariado, nos meios de comunicação e no sistema político.
Enquanto
isso, questiona, "a ‘esquerda’ e os ‘indefinidos’, o que encontraram? Repressão
e desqualificação ao invés de diálogo. A mensagem que o PT mandou foi que não
os representaria, nem mudaria; era pegar ou largar”. E dispara: "O resultado
está aí. Aliás, daria para dizer que 2013 foi o momento em que a oposição
perdeu o medo do PT, porque viu que o partido não controlava mais as ruas, e
perdeu o medo das ruas, porque viu que suas demandas radicais não tinham
interlocutores”.
Na
avaliação dele, o Brasil deve entrar num "período de reorganização do sistema
partidário” que vai depender da força e da capacidade dos movimentos de
manterem os políticos sob controle. Mas por enquanto, afirma, é preciso "fazer
o luto” e "entender que não vamos voltar a 2002, que o pacto lulista não é mais
possível” e que é preciso fazer a crítica dos erros cometidos, "mas sem
antipetismo, que é apenas o simétrico inverso da miopia governista, nem
ressentimento, que é a incapacidade de definir-se para além da negação do que
se critica. É acabar com fantasias do tipo ‘guinada à esquerda’, ‘o Lula
voltou’ etc. É repensar propósitos, práticas organizativas, táticas de luta”.
Rodrigo Guimarães
Nunes é doutor em Filosofia pelo Goldsmiths College, Universidade de Londres, e
professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. É
colaborador de diversas publicações nacionais e internacionais, como Radical
Philosophy, Mute, Le Monde Diplomatique, Serrote, The Guardian e Al Jazeera. Como
organizador e educador popular, participou de diferentes iniciativas ativistas,
como as primeiras edições do Fórum Social Mundial e a campanha Justice for
Cleaners, em Londres. Além disso, foi membro do coletivo editorial Turbulence,
uma revista influente entre os movimentos sociais da Europa e da América do
Norte na segunda metade da década passada.
Confira
a entrevista.
IHU On-Line - Qual
é a sua análise geral sobre o momento político que o país vive? Em artigo
recente você afirma que existe uma "luta pela sobrevivência” no campo político.
Do que se trata?
Rodrigo Nunes - A crise atual
tem várias temporalidades que se condensam. Nas escalas mais curtas, há a crise
do projeto petista e uma disputa interna à classe política.
Desde
os anos 90, somente dois partidos souberam dar direção à massa amorfa que é
nossa classe política e criar um consenso social em torno de projetos mais os
menos definidos, o PSDB e o PT. Por conta da impossibilidade de sustentar
economicamente o chamado "pacto lulista”, contudo, o projeto petista já vinha se
esgarçando desde o primeiro mandato de Dilma. O resultado apertado das últimas
eleições, a guinada brusca que se seguiu e a consequente queda de popularidade
do governo tornaram o projeto insustentável também politicamente. Para a base
aliada, o custo de apoiar o governo tornou-se mais alto que o benefício; para o
governo, o custo de manter a coalização tornou-se impraticável. Isto, somado à
ameaça da Lava Jato, instaurou uma luta para livrar-se do PT, se possível
tornando-o bode expiatório. O PT é como um corpo estranho que, por mais que
tenha se adaptado ao hospedeiro, nunca foi inteiramente assimilado, e agora
está sendo eliminado.
Mas
isto não se dá porque tenha surgido um novo projeto para substituí-lo. É
simplesmente uma reação da elite política e empresarial que, num movimento de
autodefesa, busca aproveitar-se da confusão para defenestrar o PT e, o que é
mais grave, garantir que mesmo um "reformismo fraco” como foi o lulismo precise
futuramente começar de um patamar ainda mais baixo que 2003, mais baixo que a
própria Constituição de 88. A ideia parece ser, entre agora e 2018, fazer os
direitos sociais retrocederem quanto seja possível e transformar em lei um
máximo de obstáculos a futuros projetos de transformação social.
É
importante salientar isto: não há um novo projeto, o que há é uma política de
terra arrasada. O propósito do novo bloco de governo – basicamente a mesma
"base aliada” menos o PT – é promover uma restauração conservadora não apenas
contra os avanços da última década, mas contra a própria possibilidade de novos
avanços. A desastrosa Lei Antiterrorismo, inacreditavelmente aprovada por um
governo às vésperas de cair, foi uma dádiva neste sentido, já que cria um
arcabouço legal conveniente à repressão de todo dissenso social.
"Há uma nova geração se formando na política"
Além da terra
arrasada
Mas
há algo mais nesta metáfora da "terra arrasada”, que é, afinal, algo que se
costuma dizer de exércitos em recuo. Aqueles grupos que se fortaleceram ao
longo dos dois mandatos da Dilma – muito, diga-se, com a ajuda dela – e que
saíram vitoriosos com o impeachment, em que sentido pode-se dizer que estão em
recuo?
Aí
entramos numa outra escala temporal. É óbvio que, do ponto de vista da política
representativa, eles estão ganhando. Mas duas chaves essenciais de leitura,
para mim, são o descompasso temporal entre representação e sociedade, e a
necessidade de situar o recrudescimento do conservadorismo no contexto das
transformações sociais recentes.
É
certo que o foco cada vez mais restrito na inclusão pelo consumo foi
despolitizante. Ainda assim, a última década foi um período de expansão de
horizontes para grande parte da população, por conta do aumento do padrão de
consumo, do acesso à universidade, a viagens, a bens culturais, à internet etc.
As expectativas, em termos de qualidade de vida, do papel do Estado, cresceram.
Como também mudaram várias atitudes: o orgulho e protagonismo de negros e
mulheres, a visibilidade LGBTT, a própria fluidez de gênero entre os mais
jovens. Além disso, há uma nova geração se formando na política, como têm
demonstrado os secundaristas de São Paulo, Goiânia e Rio, a grande lufada de ar
fresco neste momento. O Brasil mudou e segue mudando.
Isto
se fez visível em junho de 2013, onde uma série de questões até então
intocadas, como transporte público e violência policial, se tornaram pautas
comuns. Eram estas transformações que se expressavam ali, como se a sociedade
notificasse à classe política: "não somos mais aqueles de antes; a relação
entre nós vai ter de mudar”. Para falar em termos maquiavelianos, ali estava a
Fortuna, a oportunidade para uma repactuação "de baixo para cima” do pacto
lulista. Mas faltou ao PT a virtù para transformar oportunidade em política.
Direita nas ruas
Claro,
a direita também estava nas ruas – bem como havia, sobretudo, gente indefinida,
vivendo sua primeira experiência política. Mas é aí mesmo que está o problema.
Porque esta "direita”, talvez também menos monolítica quanto se imagina,
tornou-se uma força efetiva apenas na medida em que dois encontros a
potencializaram. O primeiro, com pequenos grupos organizados, com capacidade
estratégica, logística e de convocação, como o Movimento Brasil Livre - MBL; o
segundo, com interlocutores no empresariado, nos meios de comunicação e no
sistema político, que tiveram a virtù para explorar a oportunidade que ela
abria. E aqueles que exigiam mais transformações sociais, o que encontraram?
Repressão e desqualificação ao invés de diálogo. A mensagem que o PT mandou foi
que não os representaria, nem mudaria; era pegar ou largar. O resultado está
aí. Aliás, seria possível dizer que 2013 foi o momento em que a oposição perdeu
o medo do PT, porque viu que o partido não controlava mais as ruas, e perdeu o
medo das ruas, porque viu que suas demandas radicais não tinham interlocutores.
Nesta
escala mais longa, o verdadeiro "golpe” que estamos vivendo não é interno à
classe política, mas da classe política contra a sociedade. A implosão do PT,
antigo interlocutor natural para as tendências sociais progressistas, significa
que elas ficarão algum tempo sem representação política à sua altura, até que
algo novo se consolide. Os agentes da restauração veem aí uma brecha para agir
rápido, obstaculizando tendências que seriam, no médio ou longo prazo, ameaças
a eles e aos interesses que representam. Eles lutam pela sobrevivência no curto
prazo, por espaços de influência e proteção contra a justiça; mas, num arco
temporal mais amplo, sua sobrevivência depende de uma contraofensiva sobre o
futuro.
Mas
isto também tem seu custo, porque o descrédito da classe política já é
altíssimo. Não só por conta da corrupção. A corrupção é só um caso específico
do problema mais amplo: a sensação generalizada de que a esmagadora maioria de
nossos representantes só representam a si mesmos e a seus patrocinadores. O
impeachment, na medida em que se apresenta abertamente como uma guerra entre
elites políticas, e aquilo que tende a vir depois dele, na medida em que
aprofunda um golpe do sistema político contra a sociedade, escancaram isto
ainda mais. As evidências estatísticas e anedóticas são de que a maioria das
pessoas, especialmente as mais pobres, via o impeachment como farsa, um
espetáculo alheio a elas. Elas não se sentem representadas. É notável que os
afetos predominantes nas redes sociais no dia da votação na Câmara não fossem
alegria ou tristeza, mas repulsa e vergonha. A temporalidade deste descolamento
entre sistema político e sociedade é bem mais longa: é a exaustão do sistema
partidário da Nova República, mas também, em última análise, a própria história
de nossa "democracia de baixa intensidade”.
"Uma das coisas politicamente mais potentes que se
pode dizer para as pessoas é: o Brasil é melhor do que este Congresso"
Derrota do PT
Minha
hipótese é que a derrota do PT foi uma faca de dois gumes, que desacreditou o
sistema político junto com o partido, e seu custo pode ser alto para o sistema
como um todo. Segundo pesquisas, 83% da população se diz pouco ou nada
satisfeita com nossa democracia – uma insatisfação que se distribui de maneira
equilibrada entre eleitores de Dilma e Aécio. É óbvio que um sistema político
corrupto e autorreferente depende de um alto grau de cinismo e desencanto para
existir: quanto menos as pessoas esperam, menos você precisa oferecer.
Porém,
e esta seria a segunda hipótese, há um ponto crítico a partir do qual este
cinismo e desencanto podem se transformar em impulso destituinte; e creio que,
desde 2013, temos andado constantemente na vizinhança deste ponto. Considerando
que a tendência é, após uma coqueluche cívica anticorrupção, entrarmos num
período de acordos para abafar investigações e medidas altamente regressivas,
talvez em breve haja oportunidade de testar esta hipótese.
Recapitulando,
condensam-se nesta crise uma disputa entre elites políticas, a exaustão do
projeto lulista, o fim da hegemonia petista sobre a esquerda e o início de um
longo processo de reorganização, a provável reestruturação do sistema
partidário da Nova República, as pressões criadas por uma década de transformações
sociais e um episódio agudo de nossa crônica crise de representação. O
resultado pode ser uma agonia que se arrastará por anos, com governos
antipopulares de baixíssima legitimidade; mas o potencial para um novo início
também está aí. A Fortuna existe. Será preciso ter virtù.
IHU On-Line – Por
que as pessoas não se sentem representadas? Muito tem se falado que a crise de
representação tem gerado uma ascensão conservadora. Você identifica esse
fenômeno?
Rodrigo Nunes - Eu tenho sido
bastante crítico da ideia de "ascensão conservadora”, não por pensar que ela
não corresponda a fenômenos reais em relação à representação, mas porque não
creio que ela recorte estes fenômenos da melhor maneira.
É
evidente que há um elemento conservador forte no Congresso. Mas a ideia de que
o Congresso é um retrato fidedigno da sociedade brasileira é precisamente a
premissa que se deve questionar. Primeiro, porque nossa representação política
reflete a realidade num espelho distorcido por vários fatores: um baixo nível de
politização (especialmente nas eleições legislativas), a falta de coesão
ideológico-partidária, os currais eleitorais, o marketing político, o alto
custo das campanhas, o financiamento privado. Segundo, porque a rejeição
generalizada à classe política é pública e notória. Ninguém se diz satisfeito.
Se
reconhecemos enormes problemas em nosso sistema representativo, não podemos
concluir automaticamente que, se o Congresso é conservador, é porque a
sociedade é conservadora. E o pior erro que se pode cometer em momentos de
crise de representação é pensar a sociedade a partir do sistema político,
porque é justamente a relação entre os dois que está em crise.
Ascensão
conservadora
O
que aparece misturado na ideia de ascensão conservadora são pelo menos três processos
distintos.
O
primeiro é o crescimento do neopentecostalismo entre a população mais pobre
desde a década de 80, que se dá num vácuo anteriormente ocupado pela Teologia
da Libertação, que foi crucial na formação do PT. É um dado real, mas aqui há
um problema também, que é as pessoas associarem conservadorismo e
neopentencostalismo, como se todos os evangélicos fossem conservadores e como
se a dita "bancada da Bíblia” não fosse em grande parte católica.
O
segundo processo é a exploração do conservadorismo social pela oposição durante
os mandatos do PT. Por muitos anos, a vida da maioria das pessoas estava
melhorando, então era impossível convencê-las de que o governo era ruim. O que
sobrou foi o discurso da corrupção e um misto de ortodoxia religiosa e paranoia
da Guerra Fria, da qual a oposição inteira, inclusive a mais "moderna”, se
aproveitou. Este foi um fator crucial em alimentar e visibilizar a extrema
direita, deslocando o centro do debate nesta direção.
O
terceiro processo é a reação às transformações sociais de que falávamos há
pouco, que tensionam relações e atitudes tradicionais. E aqui me parece
importante insistir que a estridência do discurso conservador é proporcional à
sua consciência de que, as condições permanecendo iguais, a flecha do tempo
trabalha contra ele.
O
que temos aí, então? No primeiro caso, o vetor vai da sociedade para a
representação política; a bancada evangélica cresce porque a população
evangélica cresce. No segundo caso, o vetor vai da representação para a
sociedade: é a exploração política deste discurso que produz ressonância
social, o que, por sua vez, retroalimenta esta exploração. Mas aqui cabe mais
falar em radicalização do conservadorismo que em crescimento propriamente dito.
E no terceiro, o que temos justamente não é a representação, mas sua crise. Por
exemplo, o apoio ao casamento gay, como implicitamente reconheceu o STF, é bem
maior na sociedade que no Congresso.
Como
disse, este descolamento entre representantes e sociedade pode ser o início de
um tempo terrível, em que a representação praticamente se autonomiza. Mas a
percepção deste descolamento é muito ampla; logo, também existe o potencial
para uma transformação. Neste sentido, o que estamos vendo agora não seria o
nascimento de uma nova maioria social, mas apenas a desagregação do sistema
existente e o esperneio violento de agentes que se sentem ameaçados.
Em
última análise, meu problema com a noção de "ascensão conservadora” é que ela
simplifica uma série de movimentos moleculares díspares e os transforma num
fenômeno molar unívoco. Tomar a radicalização do conservadorismo, um
crescimento (verdadeiro, mas não gigantesco) de seu eleitorado, a desagregação
provocada pelo fim da hegemonia petista sobre a esquerda e o vácuo atual de
representação e projeto, para constituir a partir disso uma "ascensão
conservadora" – o que isto faz é transformar em fato consumado aquilo que,
justamente, está em disputa. Com isso, obscurecem-se os pontos onde é possível
e necessário intervir. Se estes diferentes movimentos não podem ser
univocamente ditos "conservadores”, isto quer dizer que eles podem ser
disputados por forças tanto regressivas quanto progressivas. Este é o desafio.
Neste
momento, uma das coisas politicamente mais potentes que se pode dizer para as
pessoas é: o Brasil é melhor do que este Congresso. Potente, primeiro, porque é
verdade; segundo, porque a maioria das pessoas concordaria; terceiro, porque dá
entrada no tipo de conversa que precisamos começar a ter.
Gramsci
– o primeiro, aliás, a introduzir os termos "molecular” e "molar” na análise
política – falava em pessimismo do intelecto e otimismo da vontade. Isto
significa, por um lado, ler a realidade sem projetar nossos desejos nela. Mas
também, por outro, acreditar que em toda situação, por pior que seja, há algo a
fazer – porque as condições que tornam possível fazê-lo estão de algum modo
dadas, mesmo se apenas molecularmente, e mesmo que os meios para fazê-lo ainda
estejam por ser inventados.
"Penso o futuro próximo mais em termos de luta
defensiva, porque não vejo alternativas satisfatórias no horizonte
imediato"
IHU On-Line – Como
tem avaliado a discussão em torno do impeachment? O que se pode esperar pós-impeachment?
Rodrigo Nunes - Para mim, havia
pelo menos duas boas razões para ser contra o impeachment, uma jurídica, a
outra histórica. A jurídica é que o fato imputado não me parece caracterizar
crime de responsabilidade, que é o motivo de impeachment previsto pela
Constituição. De onde a razão histórica, que é o fato de que este processo não
apenas dá sequência a nosso lamentável histórico de casuísmos, chicanas e
gambiarras institucionais, como cria um precedente muito grave. Na prática,
como vários discursos durante a votação deixaram claro, o impeachment não foi
aplicado como o instituto presidencialista que é, mas como o mecanismo
parlamentarista que não é: o voto de não-confiança. O precedente é, portanto,
que nenhum governo que tenha perdido apoio congressual estará a salvo – o que,
considerando como é o nosso Congresso e como se conquista apoio nele, é
bastante preocupante. Mesmo quem é profundamente crítico a este governo, como
eu, precisa entender que o impeachment não foi só contra o governo; pela
situação e o precedente que cria, ele foi contra todos nós.
O
julgamento é "político” no pior sentido – do que a questão legal é praticamente
irrelevante. É quase certo, portanto, que Dilma será cassada. Neste contexto,
as palavras de ordem de eleições gerais e constituinte exclusiva para a reforma
política parecem ganhar sentido.
IHU On-Line – Na
sua avaliação, eleições gerais ou uma constituinte exclusiva seriam a melhor
saída para a crise?
Rodrigo Nunes - Tenho ouvido
vários argumentos a respeito; aqui estão os que me parecem mais relevantes.
Mesmo
Aécio Neves, na corrida presidencial de 2014, falava em qualificação dos
serviços públicos e expansão do Bolsa Família. Por que ninguém fez campanha em
2014 falando em medidas de austeridade, privatizações, contenção de gastos
sociais e ataque aos direitos dos trabalhadores? Porque ninguém se elegeria com
um programa destes. Michel Temer está sendo colocado na presidência para
executar um programa que apenas dois tipos de governo poderiam executar: um que
tivesse o apoio incondicional da esquerda e dos movimentos sociais (e pudesse,
portanto, aplicá-lo sem contestação), ou um governo eleito indiretamente. Dilma
talvez já não fosse o primeiro; Temer será o segundo. Aquilo que tendia a ser
feito mais devagar em um, vão tentar fazer como Blitzkrieg no outro.
Uma
campanha por eleições gerais – que joga com a memória da demanda por eleições
diretas – serve, primeiro, para chamar atenção para este ponto: não se elegeu
este programa, e a classe política não pode implementá-lo à revelia da vontade
expressa nas urnas. Ela tem a obrigação, portanto, de consultar novamente a
população. Com isto, a demanda por eleições gerais serve também para colocar em
questão a legitimidade de quaisquer medidas que venham a ser implementadas.
Elas podem até passar, já que nossa classe política convive bem com a falta de
legitimidade. Mas ficará a memória de que foram feitas sob contestação, o que
as mantém abertas para disputas futuras.
Por
último, a palavra de ordem de eleições gerais tem mais condições de unificar a
oposição ao governo Temer que a defesa do mandato de Dilma. Primeiro, porque se
a cassação é praticamente certa, não há ganho em se organizar em torno de uma
causa perdida, que se desmobilizará logo em seguida. Uma vitória seria, em todo
caso, uma vitória de Pirro, que só levaria de volta ao mesmo impasse de antes.
Segundo, porque não se confunde com uma defesa do governo ou do PT, que muito
menos gente está disposta a fazer; ela já era, aliás, a demanda de alguns setores,
inclusive petistas. Terceiro, porque retira a questão do terreno jurídico e
parlamentar, onde a crise de representação joga contra nós, e a situa no campo
político da correlação de forças entre sociedade e representantes. E se é para
entrar neste campo com força máxima, é preciso escolher a palavra de ordem
capaz de gerar mais consenso. E aí entra o dado talvez mais relevante: segundo
pesquisas, a esta altura 62% da população já prefere novas eleições.
Além
disso, as pesquisas indicavam que o descrédito das instituições e a percepção
de uma crise de representação também era forte nas manifestações
pró-impeachment. Agora que os convocantes destas manifestações, como o MBL,
estarão negociando com um governo de políticos tradicionais obrigados a
acomodar a corrupção em seu meio, o desacordo que já se observava entre
convocantes e base tende a se acentuar. A rejeição à corrupção e à política
tradicional nestes setores tende a ficar órfã. Isto pode ser canalizado numa
campanha por eleições gerais, embora esteja claro que estes setores
dificilmente se somariam a algo que lhes parecesse apenas uma campanha do PT.
"Estou discutindo eleições gerais como
possibilidade de mobilização social, não como alternativa"
Bandeiras trocando
de mãos
Na
verdade, há a possibilidade de vermos as bandeiras trocarem de mãos. O
sentimento anticorrupção e o espírito destituinte, o que se vayan todos, podem
voltar para a esquerda; a oposição, por sua vez, passará a falar em "golpe”. É
isto, aliás, que o vice-presidente Temer já disse sobre a proposta de eleições
gerais. Mas não é: estamos falando de pressão popular para que o Congresso
aprove uma emenda constitucional encurtando os atuais mandatos e chamando
eleições, bem como uma constituinte exclusiva para a reforma política. De todo
modo, já estamos numa situação de excepcionalidade que foi criada pelo
impeachment, então agora a discussão saiu do campo da lei para a política, ou
seja, a correlação de forças. Exigir eleições gerais não é golpe; no máximo, é
contragolpe.
IHU On-Line - Mas a
demanda por eleições gerais teria condições de passar? E quais seriam as
alternativas numa eventual nova eleição?
Rodrigo Nunes - Note-se que
estou discutindo eleições gerais como possibilidade de mobilização social, não
como alternativa. Na pior das hipóteses, uma campanha massiva não conseguiria
provocar eleições gerais, mas poria o governo Temer na defensiva e escancararia
o problema da representação. Ou haveria eleições gerais e o resultado seria
ruim, mas pelo menos seria escolhido pela população.
Na
verdade, penso o futuro próximo mais em termos de luta defensiva, porque não
vejo alternativas satisfatórias no horizonte imediato. Nem poderia ser
diferente: se há uma crise de representação, é porque precisamos urgentemente
de uma reforma do sistema político e de uma renovação de seus quadros. Isto não
se resolverá de uma hora para outra.
Mais
que isso. Se nenhuma alternativa disponível parece boa, não é somente porque
faltam qualidades intrínsecas aos partidos e políticos existentes. É,
sobretudo, porque falta força da sociedade organizada relativamente a eles. Há
quem fale hoje, por analogia com o Podemos espanhol, em "partido-movimento”. Só
que para termos um partido-movimento no Brasil, faltam hoje duas condições essenciais:
ter um movimento, e que ele seja suficientemente forte para manter os partidos
sob controle. O próprio PT foi, um dia, um partido-movimento, mas o controle de
sua base sobre as lideranças hoje praticamente inexiste. É preciso voltar a ter
bases fortes para mudar este quadro.
Por
outro lado, justamente porque os tempos que vêm aí são de luta defensiva,
parece-me que não se pode abrir mão nem da construção de narrativas mais
amplas, nem da dimensão representativa por completo. É preciso retornar à organização
desde baixo, mas sem deixar de pensar para além da pluralidade de intervenções
locais e sem deixar de cultivar interlocutores de confiança no sistema
político.
Eleições gerais e
representação
Em
relação ao primeiro ponto, diria que uma campanha por eleições gerais pode ser
uma plataforma para começar a formar um novo sujeito coletivo, um projeto
pós-PT. Por mais que o momento seja de fragmentação, não penso que se deva
deixar de tentar constituir consenso em torno de algumas palavras de ordem mais
amplas. Por exemplo: que a crise seja paga pelos de cima (não ao ajuste fiscal
regressivo, não à perda de direitos, por medidas redistributivas, como a
taxação progressiva e o imposto sobre grandes fortunas); constituinte exclusiva
para a reforma política (e um debate para pensar qual reforma se deseja);
apuração e punição, sem seletividade, de toda corrupção; por um Brasil onde
caibam muitos Brasis (pela igualdade de direitos, pelo respeito aos territórios
indígenas, contra o racismo, o sexismo, a homofobia etc.). Consenso não apenas
na esquerda, digo, mas na sociedade em geral. Acredito que estas mensagens
podem ter bem mais ressonância do que se imagina, caso se saiba comunicá-las.
Quanto
ao segundo ponto, da relação com a representação, vamos entrar num período de
transição. O PT envelheceu, se desvirtuou, se exauriu; o declínio de sua
hegemonia como interlocutor político das pressões sociais só tende a crescer.
Isto é ruim, por um lado, porque durante um tempo elas ficarão politicamente
sub-representadas. Mas é bom, por outro, porque oferece a oportunidade de
repensar o modo como esta relação deve se dar.
Força social
Se
a questão central é a força dos movimentos relativamente aos partidos, a
capacidade dos primeiros de manter os segundos sob controle, fica claro porque
a relação monogâmica com o PT tornou-se deletéria. Nos EUA se descreve a lógica
dos democratas centristas, como os Clinton, como ‘they have nowhere to go’:
eles se deslocam continuamente à direita porque calculam que a base social do
partido não tem outra opção senão votar neles. Que frase descreveria melhor a
relação que os mandatos de Dilma tiveram com a base histórica do PT, para nem
falar dos indígenas ou de junho de 2013?
Os
próximos tempos serão, acredito, de "promiscuidade virtuosa” entre movimentos e
partidos. Ninguém comprará mais um pacote fechado; as negociações acontecerão
pontualmente, tratando o representante como uma parte num contrato com os
representados, não alguém a quem se deve gratidão. A monogamia acabou. E isto passará
pela construção de novos quadros tanto dentro dos movimentos quanto dentro do
sistema representativo, num processo que tende a se mover da escala mais local
para a mais geral. Os primeiros sinais disto já devem aparecer nas próximas
eleições municipais. Sou bastante simpático à ideia de um novo municipalismo de
grupos como o Cidade que Queremos, de Belo Horizonte.
É
quase certo que entraremos num período de reorganização do sistema partidário
brasileiro. Já para a esquerda, este processo é inevitável: a reorganização
deve ser profunda e tende a ser longa. É justamente por isso que não se deve
desesperar: buscar atalhos só faz retardar o processo. Se a caminhada é longa,
mas necessária, o melhor a fazer é começar de uma vez. Ao mesmo tempo, não se deve
ter medo de experimentar – onde "experimentar” não quer dizer "fazer qualquer
coisa”, mas "trabalhar com hipóteses”: desenvolvê-las, testá-las, corrigi-las,
refiná-las. Porque estes processos nunca são lineares, e aquilo que hoje pode
parecer levar uma eternidade, amanhã pode dar um salto inesperado. É fazer o
luto daquilo que se perdeu e seguir trabalhando.
"Os próximos tempos serão de "promiscuidade
virtuosa” entre movimentos e partidos"
IHU On-Line – Será
possível conciliar o luto e a organização?
Rodrigo Nunes - É absolutamente
essencial fazer o luto do projeto petista para seguir em frente. Neste sentido
também o impeachment é ruim, porque retarda este processo. Para sobreviver em
meio a uma crise econômica e política, o governo Dilma teria de continuar
fazendo concessões cada vez maiores; o ônus de uma série de medidas impopulares
cairia exclusivamente em seus ombros. Agora, o PT não apenas aparece como
vítima de uma injustiça ou ilegalidade, como poderá opor-se a tudo aquilo que
provavelmente faria, caso continuasse no poder.
"Fazer
o luto” é entender que não vamos voltar a 2002, que o pacto lulista não é mais
possível. É pensar daqui para frente, com as condições e forças que há. É fazer
a crítica dos erros cometidos, mas sem antipetismo, que é apenas o simétrico
inverso da miopia governista, nem ressentimento, que é a incapacidade de
definir-se para além da negação do que se critica. É acabar com fantasias do
tipo "guinada à esquerda”, "o Lula voltou” etc. É repensar propósitos, práticas
organizativas, táticas de luta, sem deixar de aprender com o que se fez, mas
sem apegar-se a identidades passadas.
É,
em geral, não ter medo de abandonar o passado, nem permitir que os traumas nos
impeçam de instituir um futuro. É construir a própria força para desenvolver
outro tipo de relação, soberana, com os representantes. Ninguém melhor que as
periferias brasileiras, que vivem o desencanto desde sempre, para dar a
definição desta condição: é "nós por nós”, pensando sempre em como fazer para
ampliar este "nós”.
"Luto”,
para Freud, não é o contrário de "alegria”, mas de "melancolia”. E o que é a
melancolia? É a incapacidade de abrir mão do objeto perdido; é preferir padecer
a abandonar aquilo que se amou.
Talvez
a grande metáfora do luto na cultura brasileira seja uma imagem da final da
Copa de 1958. O Brasil sofre um gol logo no início; Didi vai buscar a bola,
bota-a debaixo do braço, caminha com toda calma para o centro do campo, joga-a
no chão e recomeça a partida. Luto é isto.
Já
o colapso emocional da seleção brasileira após o primeiro gol da Alemanha no 7
a 1 – aquilo é melancolia. E se não sairmos da melancolia e voltarmos a
organizar, o que vem por aí tende a ser um 7 a 1 ainda pior.
Vai
ter luto e luta, ou não vai ter nada.
http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=88834