Os milionários do Brasil “têm cerca de 520 bilhões de dólares em
paraísos fiscais e mais 2 trilhões de reais que não produzem nem
pagam impostos”( Ladislau
Dowbor) , a maior parte nas mãos de 206
bilionários que ombreiam, nas suas fortunas, com os maiores bilionários do
mundo, que vegetam “entupidos” de dinheiro. É contra esta forma de capitalismo
que Bernie Sanders se insurge e sobre ela que nos fala, junto com Piketty,
David Harvey, Stiglitz, Jeffrey Sachs e já tantos outros, tentando erguer uma
democracia social renovada como a utopia possível do Século XXI. Será tarde
demais?
por Tarso Genro* no Sul 21 e Diario do Centro do Mundo – Sociedade e Luta Popular Global para Salvar o Planeta
Bernie Sanders. Foto: Jim Watson/AFP/Getty
Penso que
estão equivocados os que de boa fé combatem Bernie Sanders como perigoso
inimigo do sistema capitalista. Pode-se dizer que ele é, na verdade, inimigo do
sistema do capital -tal qual ele está constituído na época da sua
financeirização absoluta- quando o controle dos seus fluxos globais e a
distribuição dos seus recursos para financiar guerras de conquista,
empoderamento sobre fontes de energia e controle político de territórios, estão
sob a tutela das redes financeiras de especulação sem produção e sem
trabalho vivo. Bernie quer é a salvação do capitalismo com democracia política
e menos desigualdade e os seus críticos, em geral, defendem o ressecamento do
regime liberal-democrático, mesmo que ele se encaminhe para o fascismo, com
todas as mazelas, violências e hierarquias sociais que ele representa. O enigma
Bernie simboliza, na política americana, a dúvida recorrente da política
moderna -na sua maturidade ou decadência- sobre se a democracia liberal ainda é
compatível com o sistema do capital, ou não. Quero que seja, mas acho que não
é.
Aqueles
que sustentam que Bernie Sanders representa um “perigo” para a estabilidade
econômica mundial e para a democracia liberal no ocidente, são os mesmos
-jornalistas, políticos, lideranças corporativas, especuladores, agências de
risco, grandes negociantes locais e globais- que concordam que Donald Trump é
sim um sujeito sensato, Bolsonaro é um democrata ainda que meio
folclórico, Piñera é uma promessa incompreendida pelos aposentados famintos e
Macri foi um honesto liberal, azarado pela crise. Bernie Sanders, porém, é considerado
perigoso, radical, “comunista”, o que não só é decorrência de um fanatismo
ideológico da direita truculenta, mas também da ignorância supina -voluntária
ou adquirida- sobre os principais embates ideológicos do presente.
Quais são
estes embates? Eles tratam, atualmente, de como o Estado vai se organizar
dentro do sistema do capital, no próximo ciclo de acumulação rentista, se mais
direcionado para a guerra e o fascismo, ou mais voltado para uma paz negociada,
interna e externamente, aos países centrais. O Brasil representa um fragmento
destes embates, aparentemente irracionais da democracia moderna, onde um
Presidente alucinado chama movimentações para fechar um Congresso no qual ele é
maioria e no qual ele não dispõe de um partido-base, para coordenar suas ações
políticas e de governo: sua força de reserva são as milícias, seu
instrumento de difusão são as redes organizadas fora do território, seu
instrumento de coesão política máxima é a cumplicidade com o reformismo
ultra-liberal, apoiado pela grande mídia.
Bernie
Sanders, na verdade, propõe a recuperação da América através de um capitalismo
idealizado pela Justiça Social. E esta é uma proposta reformista “forte” no
contexto histórico em que vivemos, no qual toda a máquina estatal, todas as
relações de mercado, toda a distribuição de recursos, está orientada,
mantida e financiada, pelo capital financeiro global. Este, mesmo tendo as suas
contradições internas, joga toda a sua energia política e cultural – todos os
seus fluxos comunicacionais- para moldar uma vida comum subordinada ao seu
processo de acumulação. Nela o mercado financeiro impõe regras supra-estatais
para o funcionamento da economia dos estados endividados, busca controlar a
vida política, os fluxos de recursos para fora dos centros de poder mundial,
bem como a difusão da opinião.
O que
mais impressiona nestes indivíduos é a sua insensibilidade em relação à fome,
que se avoluma e a sua omissão “programática” -no terreno da política- em
relação aos desesperados. Sua surdez moral anula -da sua escuta- o clamor dos
idosos, dos jovens humilhados nas sinaleiras da vida suplicando uma ajuda, dos
pobres moradores das zonas turvas da cidade formal. O medo, a súplica e o
horror, não lhes sensibilizam. Sensibiliza-os apenas os pregões das bolsas, o
cheiro do dinheiro, a multiplicação milagrosa das fortunas sem trabalho e a
capacidade empreendedora manipulada na informalidade sem futuro. Bernie Sanders
é a recuperação do sentimento de repulsa moral orientadora das grandes jornadas
americanas contra o racismo, contra o nazismo e contra a guerra do Viet-Nam,
que não pretende instaurar nenhum socialismo, mas afirmar a imagem que os “Pais
Fundadores” da nação americana -correta ou incorretamente- fizeram de si
mesmos.
Jefrey
Sachs, em recente artigo no “Valor” (27.02.20) mostra que num país como os
EEUU, em “que uma em cada cinco famílias americanas tem patrimônio
líquido zero e quase 40 por cento da população tem dificuldades de suprir suas
necessidades básicas”, onde “44 milhões de americanos (…) têm dívidas
estudantis que somam 1,6 trilhão” -mostra Sacchs- que, neste país, a
intimidade entre os Reagan, Trump, Clinton e até mesmo Obama, com Wall Strett,
compõe o que ele chama de “uma grande família feliz”. Bernie Sanders seria nela
um “ponto fora da curva” no domínio de Wall Strett sobre o mundo político,
mesmo que na Europa ele fosse considerado pelas pessoas sérias, apenas um
socialdemocrata típico, daqueles que as salvaram das guerras civis em torno da
ideia dos socialismo revolucionário.
Creio que
a esquerda chegará, por outras razões, à mesma conclusão do sistema do capital
sobre o fato que a socialdemocracia clássica não poderá mais ser pactuada, por
dois motivos fundamentais: ela exigiria (1) uma nova mesa de negociação
democrática, que proporia uma regulação humanista da exploração do trabalho; e
(2) o processo de acumulação mais “seguro” e rentável, não passa mais por
investimentos na produção, mas passa pela sucção financeira dos países
endividados, através da rolagem extorsiva da dívida pública. Aquela
socialdemocracia, que envolvia negociações transparentes entre o proletariado
fabril e a burocracia do serviço público -de um lado- e a burguesia industrial
com os plutocratas do Estado Social, de outro, não tem mais condições de
vingar. Seus “sujeitos” ativos se dissolveram na nuvem do capital financeiro
volatilizado e o seu ideal democrático distributivo -dentro do sistema
capitalista- mudou de forma ou desapareceu. É que nos diz Bernie Sanders!
Qual o
radicalismo de Bernie? Um sistema público de saúde -acessível a todas as
famílias- um sistema de ensino que não endivide os jovens para o resto das suas
vidas, um sistema eleitoral que não seja comprável pelos bilionários, políticas
públicas formuladas com participação cidadã, taxação dos ultra-bilionários (que
continuariam muito ricos) para financiar um novo Estado Social americano, não
muito distante -aliás- da proposta da “Great Society”, adotada pelo Presidente
Johnson em 64\65. Nenhuma expropriação revolucionária, nenhuma redução da vida
política democrática, nenhuma norma de exceção, nenhuma proximidade com o
“modelo venezuelano”, sim proximidades com os modelos do Canadá, da Dinamarca e
-pasmem- com a efetividade dos direitos fundamentais que estão na nossa
Constituição de 88. Seu modelo sócio-econômico historicamente mais
próximo seria, aliás, aquele protagonizado pelas políticas do trabalhismo
inglês de Harold Wilson nos anos 60, com transferências de renda, saúde pública
qualificada e um sistema de proteção social às famílias mais pobres e aos
trabalhadores de rendimentos mais baixo.
Ladislau
Dowbor no seu “Era do Capital Improdutivo” apresentou dados estarrecedores não
desmentidos, que demonstram que os milionários do Brasil “têm cerca de 520
bilhões de dólares em paraísos fiscais e mais 2 trilhões de reais que
não produzem nem pagam impostos”, a maior parte nas mãos de 206 bilionários que
ombreiam, nas suas fortunas, com os maiores bilionários do mundo, que vegetam
“entupidos” de dinheiro. É contra esta forma de capitalismo que Bernie Sanders
se insurge e sobre ela que nos fala, junto com Piketty, David Harvey, Stiglitz,
Jeffrey Sachs e já tantos outros, tentando erguer uma democracia social
renovada como a utopia possível do Século XXI. Será tarde demais?
*Tarso
Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul,
prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro
das Relações Institucionais do Brasil.
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/bernie-sanders-pode-ser-salvacao-do-capitalismo-nao-o-inicio-do-socialismo-por-tarso-genro/