“Somos as filhas das bruxas que vocês não
conseguiram matar”, escreveram algumas mulheres nos muros de cidades
brasileiras, durante a primavera feminista. Talvez por isso a passagem da
historiadora feminista italiana Silvia Federici
* no
Brasil em julho/2017, para lançar o livro Calibã e a Bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva, atraiu
em torno de si centenas de jovens, no centro e na periferia do Rio de Janeiro e
São Paulo. Uma semana de celebração para o movimento feminista brasileiro,
que ao mesmo tempo recebia na Bahia a norte-americana Angela Davis no mesmo ano, para um curso
sobre feminismo negro, no Recôncavo Baiano
por Inês Castilho em Outras Palavras e revista IHU
on-line – Sociedade e O
Nascimento do Feminismo
A vinda
ao Brasil de Silvia Federici deve-se
à Fundação
Rosa Luxemburgo, com parceria do Instituto Goethe, em apoio ao coletivo
Sycorax,
responsável pela iniciativa de traduzir o livro, disponível na internet,
juntamente com a editora Elefante (responsável pela edição impressa). O
lançamento no Rio de Janeiro aconteceu no Museu da Maré e no espaço da Cia.
Mystérios e Novidades, na Gamboa; e em São Paulo, no auditório da Galeria
Olido e Centro Cultural Arte em Construção, na Cidade Tiradentes, no
extremo da Zona Leste de São Paulo.
Calibã e a Bruxa na Idade Média, onde Nasceu o
Capitalismo
Difícil
imaginar quantas horas Silvia Federici ficou debruçada
sobre livros e documentos históricos, em arquivos e bibliotecas, até compor o
quadro sobre as circunstâncias históricas específicas em que se desenvolveu a
perseguição às bruxas e as razões pelas quais o surgimento do capitalismo exigiu um ataque
sistemático e brutal contra as mulheres.
“Realizei
uma longa viagem pela história para entender como se deu a sujeição das mulheres na origem do capitalismo,
e para isso fui até a Idade Média, no período de crise
das relações feudais”, conta.
Seus
estudos se dão no contexto das crises demográfica e econômica na Europa dos
séculos 16 e 17 e das políticas da época mercantilista: o cercamento das
terras, a nova divisão sexual do trabalho que confinou as mulheres à esfera
reprodutiva, o tráfico de escravos, a conquista colonial.
“Marx estudou esse período de
uma perspectiva masculina. Ocupou-se somente da esfera produtiva, do trabalho
assalariado, e ignorou toda a esfera reprodutiva da vida e da mão de obra: a
gestação, aleitamento e cuidado com as crianças, a sexualidade, o cuidado com
os velhos e os doentes, o alimento, a limpeza. O mesmo ocorreu com Foucault em sua história da
sexualidade. Uma história de homens”, considera Silvia Federeci.
Ela
mostra como a Inquisição foi um instrumento para disciplinar o corpo das
mulheres, que gestam e disciplinam outros corpos, para o novo sistema de
exploração do trabalho. Estabelece conexões com o período que atravessamos, de
intensificação do capitalismo, recrudescimento da violência e assalto aos bens
comuns – em que são caçadas “bruxas” de diversos tipos, com a criminalização
dos movimentos sociais e o espantoso número de assassinatos e conflitos no
campo. Uma outra volta do parafuso.
É nos
séculos de acumulação original do capital que se produz o fenômeno da caça às
bruxas. Os anos de maior perseguição coincidem com as primeiras teorias
econômicas modernas do mercantilismo e com o início da preocupação com
problemas demográficos. Com a falta de mão de obra causada pela Peste
Negra, que reduziu a população da Europa em 30% a 40% no século 14,
os camponeses passam a ter mais poder para escolher terras, demandar pagamento
e discutir tributos com os senhores. O medo das revoltas populares levou a
nobreza decadente e a burguesia nascente a se aliar para elaborar as leis do
Estado moderno.
“O
capitalismo foi na verdade uma contrarrevolução”, afirma Silvia Federici.
Se na
Europa pré-capitalista as mulheres tinham acesso às terras e outros bens
comuns, agora são despojadas não só da terra como do trabalho assalariado, e
seus corpos passam a ser vistos como instrumentos para controlar a população e
aumentar a produtividade. Foram criminalizadas as parteiras, que também faziam
os abortos, as benzedeiras e curandeiras com seus conhecimentos de poções e
ervas medicinais, as adivinhas e suas visões espirituais, as hereges, as
mulheres que viviam sós. Tirar das mãos das mulheres o poder sobre seus corpos
abriu caminho para o desenvolvimento de uma medicina baseada em conhecimentos
fora do alcance das classes populares.
Mas não
se transformam camponeses em máquinas de trabalho do dia para a noite, lembra Dario
Semino no artigo Brujas son negocios, uma resenha
da tradução espanhola do livro. A conversão dos camponeses em trabalhadores
assalariados no decorrer desses séculos demandou uma aceleração do tempo – não
mais regido pelo sol e a lua, mas pelas horas e minutos marcados no relógio – e
uma nova concepção do corpo humano, que passa a ser visto como máquina e
submetido ao domínio da mente, numa relação hierárquica. O camponês precisa ser
disciplinado, esquecer suas velhas formas de vida comunal.
“O
capitalismo necessita de hierarquias”, lembrou Silvia mais de uma
vez.
A caça às
bruxas veio impor uma disciplina social, de organização do trabalho e de
construção do papel das mulheres, criando uma
imagem desvalorizada da feminilidade: obediente, silenciosa e casta, submissa
aos homens.
“Houve um
período, em certas partes da Europa, que se introduziu na moda feminina um
instrumento de metal sobre a cabeça das mulheres que cerrava sua boca – o mesmo
que usavam para os escravos.”
Mais de
80% das pessoas executadas por bruxaria entre os séculos 16 e 17 foram mulheres,
a grande maioria pobre. Em Calibã e a Bruxa, Silvia mostra como, na Inglaterra,
a maior parte dos julgamentos aconteceu em Essex, onde a terra havia sido
cercada e privatizada no século 16. No sudoeste da Alemanha, a caça às bruxas
se dá exatamente nas aldeias onde foram massacrados os servos que se rebelaram
na chamada Guerra dos Camponeses.
“A
incompatibilidade da magia com a disciplina do trabalho capitalista e com a
exigência de controle social é uma das razões pelas quais o Estado laçou uma
campanha de terror contra elas. Lendo os processos, vê-se que as acusações eram
de que matavam crianças, copulavam com o demônio, eram inimigas de deus. A
grande maioria contra mulheres pobres, despossuídas pela privatização dos bens
comuns, ou mulheres velhas que viviam com ajuda dos vizinhos. Foi quando a
mendicância passou a ser criminalizada”, diz ela.
Um dos
indicadores de que a caça às bruxas foi ferramenta do capitalismo original é
que a igreja católica não foi a única a ocupar-se com a perseguição. No apogeu
da caça às bruxas, o número de execuções ordenadas pelos tribunais seculares
foi ainda maior que o dos católicos, e as nações protestantes, inimigas do
catolicismo, foram tão cruéis com as mulheres quanto a igreja romana.
“A
Inquisição foi estendida ao Novo Mundo, e no Brasil foram acusados também
homens negros escravos, além das mulheres escravas. Espero que Calibã e a Bruxa
inspire as jovens brasileiras a aprofundar os estudos sobre esse período“,
disse Silvia às plateias que a assistiram.
O Trabalho Feminino e o Marxismo
O último
capítulo do primeiro volume de O Capital foi dedicado ao período
histórico de transição entre feudalismo e capitalismo, lembra Silvia
Federici. Marx
descreve o processo de acumulação primitiva nos vários séculos durante os quais
os camponeses foram violentamente expropriados de suas terras pelos
“cercamentos”, que os obrigaram a converter-se em trabalhadores assalariados para
sobreviver.
“Os
homens perderam as terras mas ganharam servas”, ironiza Silvia. “Marx
explicou a acumulação primitiva do capital limitando-se à analise do mundo do trabalho produtivo,
assalariado. Ignorou toda a esfera de reprodução da vida cotidiana e dos
trabalhadores, do trabalho não remunerado, sem o qual não pode ocorrer a
produção.”
Tinha
início o “patriarcado do salário”, diz.
“O
capitalismo precisa criar hierarquias: o que ganha mais, o que ganha menos, a
que não ganha. O trabalho da mulher não é assalariado e portanto não é
considerado trabalho. Racismo e sexismo são formas intrínsecas ao sistema,
maneiras de dividir para controlar.”
Silvia
relata que, ao contrário do estereótipo histórico, a queda do feudalismo foi um
período de muitas lutas – contra o fausto da Igreja, que detinha poder
político, o poder dos senhores feudais e dos comerciantes – por populações de
artesãos e camponeses despossuídos de suas terras e de seus instrumentos de
trabalho.
Bens Comuns e Trabalho Comunitário
A
historiadora elaborou também uma perspectiva feminista sobre os Comuns,
conceito importante para a luta anticapitalista nesse momento de expansão das
fronteiras do capital sobre os territórios.
Nas
pesquisas sobre o mundo feudal, reencontrou em solo europeu as terras comunais,
águas e florestas de uso comum pelas populações campesinas, e sua des-possessão
progressiva dessas terras pelos cercamentos, obrigando-os a se deslocar.
Silvia
trabalha com a noção primária de Comuns – as terras comunais de que foram sendo
expulsos os camponeses nos séculos iniciais do capitalismo – e continuam a ser
até hoje. Considera essa perspectiva oposta à de filósofos marxistas como Antonio Negri, que, segundo
ela, nos anos 90, elaboraram o conceito de Comum a partir do trabalho coletivo
possibilitado pela tecnologia. Ressalta o fato, sempre silenciado, de que os
minérios que alimentam a indústria da comunicação digital vêm cobrando um alto
preço em vidas humanas e recursos da natureza.
“São
também bens comuns a história e a memória coletiva”, lembra.
Para Federici,
os zapatistas são a maior referência de vida comunal por já experimentarem, há
vinte anos, a forma de vida e trabalho comunitário.
“Uma
geração inteira cresceu dessa maneira. Os zapatistas ainda usam dinheiro porque
não conseguem produzir tudo de que necessitam para viver. Mas se organizam de
forma autônoma, sem qualquer vínculo com o Estado”, lembra ela, que visitou o
território indígena em Chiapas, sul do México.“
Na
entrevista coletiva que concedeu a jovens jornalistas, ativistas e
historiadoras
Robôs, Homens e Espiritualidade
Sobre a
visão de que, no futuro, o trabalho será desempenhado por robôs, Silvia
Federici é taxativa: robôs não são capazes de fazer o trabalho
afetivo envolvido na esfera reprodutiva da vida, como a geração da vida, a
educação das crianças. Aqui, discorda de Angela Davis quando esta diz que
espera ver o trabalho doméstico inteiramente substituído pelas máquinas.
“O que
precisamos é ressignificar esse trabalho, torná-lo comum, derrubar as paredes e
tirar do isolamento as mulheres que o praticam.”
Aos
homens, aconselha tomarem nas mãos a luta contra a violência de gênero que fere
e mata mulheres, perpetrada por seus pares. Chama a atenção para a atual
produção de uma masculinidade mais violenta, com a multiplicação dos empregos na
área de segurança privada.
“É
responsabilidade dos homens educar outros homens”, afirma.
Sobre um
possível papel da espiritualidade na luta ela lembra Standing Rock – ocupação dos nativos norte-americanos Sioux,
em Dakota do Norte (EUA), apoiada por centenas de outras etnias e por
não-índios, para impedir que fosse construído um oleoduto em suas terras
sagradas.
“A
espiritualidade é importante pois nos reconecta com algo maior que nós e traz
esperança, neste mundo em que tantos já não veem futuro. Como os nativos
norte-americanos, é preciso pensar nas sete próximas gerações antes de cada
decisão a ser tomada.”
*Silvia
Federici é uma
historiadora italiana de 75 anos, militante feminista desde 1960 e a partir de
1967 radicada nos Estados Unidos. Professora emérita da Hofstra University, em
Nova York, participou ativamente dos debates internacionais sobre a falta
de remuneração do trabalho doméstico, questão
polêmica no feminismo dos anos 70. Na década de 80, foi por três anos
professora universitária na Nigéria, quando testemunhou a onda de ataques
neoliberais aos bens comuns da população. De volta aos Estados Unidos, deu início
à pesquisa que a acompanhou por quase trinta anos e resultou no livro agora
publicado no Brasil.
http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/570085-mulheres-a-primeira-vitima-do-capitalismo
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