Seguimos inconformados e esperançosos, juntos com aqueles que aceitam a aventura brasileira de tornar o país aquilo que pode ser por meio da luta política: uma coisa nova, que nunca existiu. Darcy Ribeiro
Ataques cotidianos aos nossos direitos não nos encontram inertes, mas em luta, aprendizados e resistência constante - Matheus Alves . Entre prazeres e derrotas, seguimos em águas turbulentas
Nos
despedimos de 2022 com os versos de ‘Novas Auroras’, da Nação Zumbi:
Feliz
pelo que ainda não veio
E
saudades do que nem foi
Esperando
o melhor dos agoras
Nem temos
o antes e já queremos o depois
Em poucos dias, não apenas mais um ano irá se
findar, mas também chegará ao fim
uma visão de Brasil, ou pelos menos parte dela. E como estamos?
Exaustos!
Também não é para menos: a alta nos preços
dos alimentos fez muitas fontes de nutrientes virarem vilões, itens
básicos como o café, o tomate, a carne, o leite, a cenoura desfilaram entre
inimigos do bolso do brasileiro pobre. Mas o que está por trás dos altos preços
é o modelo de produção de alimentos. Segundo a própria Confederação da
Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), foi o aumento no custo dos agrotóxicos
e rações vindos de fora que pesou. Essa forma de produzir dependente de insumos
estrangeiros, além de nos envenenar, agora nos empobrece. Os combustíveis
também não ficaram para trás e tiveram altas históricas. A explosão dos
preços é resultado da política de Preço de Paridade de Importação (PPI), que
reajusta o valor dos combustíveis no país de acordo com a variação do petróleo
no mercado internacional em dólar; isso traz o encarecimento em toda economia
devido a circulação da mercadoria, e ainda garantiu lucros
extraordinários aos acionistas privados da Petrobras.
O saque dos bens comuns seguiu gerando destruição.
O desmatamento na Amazônia já tinha atingido a pior marca da série
histórica faltando ainda mais de dois meses para acabar o ano, segundo
dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) apurados até 21 de outubro
deste ano. Já o avanço do garimpo e mineração ilegal, além de abrir
estradas e levar máquinas a territórios que deveriam ser protegidos, trazem
também mortes e mazelas aos povos da floresta.
O negacionismo científico trouxe consigo não só o
terraplanismo, mas também legitimou o discurso anti- vacina para além da
Covid-19. Vivemos ameaças sanitárias por conta do baixo nível de vacinação da
população, de acordo com a Fiocruz. E a fome segue se agravando.
Conforme o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, 33,1 milhões de
pessoas não têm garantia se vão comer, isso significa que 58,7% da
população brasileira convive com algum grau de insegurança alimentar
cotidianamente. Diante desse cenário de tamanha vulnerabilidade, o povo teve
que esperar o uso eleitoral do Auxílio Brasil para usufruí-lo.
Os ataques golpistas à democracia e suas
instituições promovidos pelo atual governo não são de hoje, eles só escalaram
durante a corrida eleitoral e não deram trégua após a derrota de Bolsonaro nas
urnas. O questionamento da integridade das urnas eletrônicas foi o mais
expressivo, mas não podemos esquecer todos os demais ataques, como o crime
eleitoral cometido pela deputada Carla Zambeli. A violência crescente
promovida pelo discurso de ódio se reflete não só no campo político, mas também
nos altos índices de feminicídio, como aponta o estudo realizado
pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública: o número de feminicídios
registrados no primeiro semestre deste ano é 10,8% maior em relação ao mesmo
período de 2019.
Já o alto endividamento das famílias, com destaque
para os mais pobres, junto a uma taxa Selic que voltou aos dois dígitos,
será outro desafio do próximo governo. O endividamento bateu o
recorde de 68,4 milhões de pessoas inadimplentes em setembro deste ano,
conforme a Serasa Experian. Já a taxa básica de juros que está na casa dos
13,7% tem uma previsão de cair apenas dois pontos em 2023, devendo ficar em
11,7%, segundo o Relatório Focus. Também houve aumento da população em
situação de rua, segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea). Na última década, a população de rua cresceu 200%. O
empobrecimento e o endividamento da população, duramente afetada pela crise
sanitária, também é reflexo do alto patamar de desemprego e da queda dos
rendimentos da classe trabalhadora.
Mas a vida é movimento, e como dizia o poeta
Guimarães Rosa, tudo que ela nos exige é coragem. Os ataques cotidianos aos
nossos direitos e a vida não nos encontram inertes, mas em luta, aprendizados e
resistência constante. Nossa exaustão não é de derrota, mas semelhante ao
atleta que coloca todas as suas forças para superar os desafios da prova que vê
à frente. As ruas não foram abandonadas pelos diversos movimentos populares e
organizações políticas, pelo contrário, o ano inteiro eles se mantiveram na
luta em defesa do povo e pedindo justiça, como no caso do jovem congolês
Moise Kabagambe, o ato em defesa da Terra e contra o pacote de destruição,
em Brasília. A mobilização nacional “Bolsonaro nunca mais”, que denunciou
o aumento dos preços dos alimentos, dos combustíveis e da corrupção do governo,
foi um desdobramento das jornadas de luta de 2021. Isso, sem falar das
tradicionais datas de luta e mobilizações, como o 8 de março, o abril vermelho,
o 1º de maio, o dia do estudante em agosto e o Grito dos Excluídos em setembro,
entre outras.
Mais do que ocupar as ruas, as ações de
solidariedade como uma política de garantia de uma vida digna para o povo foram
permanentes, tanto no desenvolvimento e construção das cozinhas solidárias, na
doação de milhares de toneladas de alimentos para famílias em situação de
vulnerabilidade, ações coletivas de combate a fome e marmitaços,
quanto nos debates e formações sobre soberania alimentar e alimentos saudáveis.
Fomos aprendendo e desenvolvendo com os movimentos populares organizados a não
apenas resistir, mas criar novas formas de sociabilidade, em comunhão e
igualdade.
Como uma forma de organização popular, foram
criados os comitês populares, que tinham como tarefa mais imediata a luta pela
vitória dos candidatos e candidatas comprometidos com as mudanças políticas e
sociais e na vitória do Lula à presidência da República. À longo prazo, os
comitês cumprem a tarefa manter de pé a luta e a manutenção dos direitos do
povo, garantindo a posse do novo presidente, resistindo às tentativas de golpe
e defendendo as mudanças necessárias para a população.
A vitória de Lula foi um banho de esperança. Após
um longo processo de perseguição política, midiática, judicial e o
encarceramento injusto por 580 dias, ele foi eleito à presidência pela terceira
vez, com 60,3 milhões de votos, conseguindo unificar as forças populares,
resgatar a confiança de sua base militante e contagiar a sociedade. A luta e
organização dos comitês populares, dos movimentos sociais e dos partidos
políticos ligados à Frente Ampla pela Democracia foram vitoriosas.
O horizonte ainda é de muitos desafios. A equipe de
transição do governo Lula parece ter aberto um armário onde toda a bagunça dos
últimos anos estava sendo escondida. As projeções econômicas para 2023
sinalizam para mais um ano de baixo crescimento e desemprego elevado para o
Brasil, e para o mundo já se fala em uma recessão no horizonte. Sem contar o
desequilíbrio emocional do mercado, que a cada anúncio reage de forma
irracional.
Entre a sensação de um caldo atrás do outro nesse
mar de devastação, depois de muitas braçadas, conseguimos colocar o pé no chão,
tomar um fôlego e continuar a travessia da vida. Entre prazeres e derrotas,
seguimos em águas turbulentas.
Vamos romper o ano trazendo uma bagagem que não vem
apenas do governo anterior, mas também da formação social do Brasil
interrompido. "O povão tá aí, com uma fome que é espantosa. Por que
há fome nesse país?", escreveu Darcy Ribeiro há quase 30 anos. Dia primeiro
de janeiro estaremos juntos na posse do presidente Lula, ao mesmo tempo em que
comemoramos e nos fortalecemos para mais um ano que virá nesse
grande Festival do Futuro, colocando mais uma vez em prática o que este
último período nos ensinou: a solidariedade, a construção coletiva e a união
nos acampamentos temporários ali montados, nas cozinhas comunitárias e
na cultura popular de resistência e criatividade. Seguimos inconformados e esperançosos, juntos com aqueles que aceitam a
aventura brasileira de Darcy Ribeiro de tornar o país aquilo que pode ser por
meio da luta política: uma coisa nova, que nunca existiu.
*André Cardoso é economista e coordenador do
escritório Brasil do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
**Cristiane Ganaka é economista e pesquisadora
do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Edição:
Vivian Virissimo
Publicado
no BdF: 23 de Dezembro de 2022
Fonte: https://www.brasildefato.com.