Em 2011, num
alerta sobre os riscos da exploração na foz do Amazonas, uma sonda da Petrobras
foi levada pela correnteza quando tentava achar petróleo a 110 quilômetros do
litoral do Oiapoque. A estatal acabou abandonando o poço
Os cenários da
modelagem, porém, ainda são considerados o maior obstáculo ao licenciamento da
operação, bem como a repercussão nos países vizinhos. Basicamente, não há
confiança nem sobre o caminho que uma mancha de óleo faria, nem se a Petrobras
conseguiria controlá-la na área do bloco 59
Reportagem
esmiúça o plano da Petrobrás para explorar a região equatorial do litoral
brasileiro. Uma licença do Ibama basta para abrir esta “nova fronteira”
petrolífera. Vazamento poderia causar uma catástrofe em toda a região, além do
prejuízo e problemas quanto a sobrevivência dos indígenas na região, além de
graves danos a natureza. Lula e Marina Silva podem barrar iniciativa
perigosíssima...
por Claudia Antunes, no Sumaúma e Outras Palavras – Sociedade
e Vida na Terra em Risco de Sobreviver
Mapa da posição do bloco 59 da Petrobras. Infográfico:
Rodolfo Almeida/SUMAÚMA
A margem
equatorial do litoral brasileiro, que tem esse nome por sua localização na
linha do Equador, é riquíssima em peixes, abriga 80% dos mangues do país e suas
correntes e leitos, especialmente na bacia da foz do rio Amazonas, ainda são
pouco estudados pela ciência. É nesse ambiente de extrema sensibilidade e
incertezas sobre as consequências de um acidente ao serem perfurados poços de
petróleo, que a Petrobras pretende perfurar um poço em busca do óleo cru, no
chamado bloco 59, a 159 quilômetros da região do Oiapoque, no extremo norte da
costa equatorial do Brasil. Por contrapor interesses dentro do próprio governo,
o empreendimento da estatal testa de maneira única a força do compromisso
ambiental do presidente Lula de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e
Mudança do Clima e Ibama.
Os autos do
processo no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama), examinados pelo site sumaúma,
mostram que o licenciamento da operação está perto do ponto de não retorno. A
Petrobras intensificou a pressão no governo Bolsonaro, ignorando um antecedente
seu na foz do Amazonas, onde teve um navio-sonda arrastado ao tentar uma
perfuração, há 11 anos. Uma licença do Ibama basta para que um empreendimento
seja iniciado, mas ao mesmo tempo o instituto do meio ambiente tem poder
limitado, já que examina estritamente o impacto direto de um projeto em sua
área imediata, como se estivesse isolado do meio sócio-ambiental mais amplo.
Com frequência, é necessária uma decisão de política ambiental do governo. É
por isso que o projeto da Petrobras representa um desafio direto para o governo
Lula e ministra do meio ambiente Marina, no momento em que prometem correr para
salvar a floresta amazônica da própria degradação sem volta . Depois de o
presidente se comprometer, desde antes da posse, a cumprir os compromissos que
preveem a substituição dos combustíveis fósseis, para impedir que o aquecimento
do planeta chegue a um nível catastrófico, muito antes do previsto por
cientistas e fóruns sobre o meio ambiente.
Viabilidade
de poços na foz do Amazonas depende de Avaliação Ambiental
Questionados pelo
site sumaúma sobre o projeto de
exploração de petróleo na foz do Amazonas, a Petrobras e o Ministério do Meio
Ambiente enviaram, por meio de suas assessorias de imprensa, respostas que
indicam a configuração de um embate entre os dois lados, em uma narrativa que
envolve comunidades indígenas e tradicionais, empresas estrangeiras, Estado do
Amapá e Governo Federal atual, com a divulgação polêmica na imprensa
conservadora, progressista e popular.
A estatal diz que,
sob a nova gestão do engenheiro Jean Paul Prates, atual presidente da
Petrobrás, indicado por Lula e o PT, não pretende abrir mão de perfurar aquela
área: “A exploração de novas reservas é essencial para a manutenção dos
negócios em petróleo e gás, mesmo num panorama de transição energética, que
naturalmente conduzirá à priorização de fontes de energia limpa. Essas
atividades de exploração e produção são realizadas sob protocolos rigorosos de
responsabilidade social e ambiental, em linha com o Planejamento Estratégico da
companhia e submetido ao controle externo dos órgãos fiscalizadores”, afirma a estatal
petroleira.
Já o ministério de
Marina Silva, em resposta conjunta com o Ibama, destacou um trecho do último
parecer técnico do instituto sobre o projeto, publicado em 31 de janeiro de
2023, no qual se afirma que “a ausência de avaliação ambiental estratégica,
como a AAAS (sigla de Avaliação Ambiental de Área Sedimentar) e de outros instrumentos de gestão ambiental,
dificulta expressivamente a tomada de decisão a respeito da viabilidade
ambiental da atividade, inserida em uma área de notória sensibilidade sócio-ambiental
e de possível fronteira para a indústria do petróleo”. AAAS, é um instrumento
criado em 2012 que permitiria justamente uma avaliação mais ampla dos biomas e
comunidades de toda a região afetada pelo empreendimento petrolífero.
Petrobrás
tem opção de investir em áreas seguras e não em áreas de elevado risco
ambiental
Caso a Petrobras
perfure o bloco 59, chegando a até estimados 2,8 quilômetros de profundidade,
isso poderá representar a abertura de uma “nova fronteira” petrolífera pela
estatal. A decisão de conceder ou não a licença, que potencialmente abriria uma
enxurrada de autorizações em efeito cascata por empresas estrangeiras, está no
centro do futuro da região, do destino da floresta e também o rumo da própria
Petrobras: se continuará sendo uma companhia concentrada na exploração de
petróleo para ganhos de curto prazo dos acionistas e do Tesouro Federal – o que
um especialista que fez parte da equipe de transição do governo Lula chamou de
“estratégia kamikaze” – ou se usará sua capacidade técnica para virar uma
empresa de energia voltada para os combustíveis verdes, que vão predominar
depois de 2030, como biomassa, hidrogênio verde e parques eólicos implantados
no oceano Atlântico.
Suely Araújo, que
presidiu o Ibama entre junho de 2016 e dezembro de 2018 e hoje é especialista
em políticas públicas do Observatório do Clima, diz que qualquer vazamento de
petróleo na foz do Amazonas causaria uma tragédia. “A Petrobras deveria usar as
áreas que já estão abertas, e não ficar investindo em novas explorações em
áreas ecologicamente frágeis”, afirma. “No governo Bolsonaro, tentaram licitar
perto de Abrolhos, do lado de Fernando de Noronha e no Atol das Rocas, porém o
Ibama não liberou tais prospecções. A foz do Amazonas é uma região não
estudada, ninguém sabe na verdade o que tem ali de bio-diversidade, é única no
mundo com essas características, com a quantidade de sedimentos que vêm do rio.
O que tem lá de verdade? Tem somente indícios, mas não sabemos o que realmente
existe lá.”
Um derrame de óleo na região do bloco 59
colocaria em elevado risco sistemas naturais como os recifes amazônicos e os
manguezais da Guiana Francesa e do Brasil. Foto: Elsa Palito/Greenpeace
Estudos
da Petrobrás efetuados na foz do Amazonas são incompletos
Edmilson dos
Santos Oliveira, do povo Karipuna, é coordenador do Conselho de Caciques dos
Povos Indígenas do Oiapoque, que tem 67 integrantes. Ele, assim como outros
parentes, pescadores, ambientalistas e procuradores que atuam no meio ambiente,
sente angústia e insegurança pelo que pode acontecer com o Oiapoque, uma região
de mangues e campos alagados que abriga três terras indígenas e dois parques
nacionais de proteção ambiental.
“A projeção que
foi feita pela Petrobras não mostra a mancha de óleo vindo para a terra
indígena, só mostra indo para o lado francês. E isso é inacreditável, porque a
gente sabe que, a partir do momento que a maré dobrar, a maré encher, essa
corrente vai vir em direção aos rios e vai entrar. Para nós, a preocupação é
muito grande, porque nossos rios são cheios de várzeas, muitos açaizais de onde
a gente tira o sustento, muitos lagos. Caso aconteça um acidente, a gente vai
perder muita coisa”, diz ele. “Tudo isso é nossa vida. Sem o rio, a gente não
existe.”
Edmilson se refere
a um dos itens mais controvertidos do processo de licenciamento ambiental em
curso no Ibama: os cenários de um eventual derrame de petróleo apresentados
pela Petrobras não preveem sua chegada à costa do Oiapoque. Eles se baseiam na
força da corrente Norte do Brasil, que tende a levar o óleo derramado para o
mar da Guiana Francesa, do Suriname e da Guiana, chegando até a ilhas do Caribe
como Martinica, Trinidad e Tobago e Granada – uma possibilidade muito grave por
si só.
Cenários de dispersão de óleo, segundo a
Petrobras. Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA
Embora reconheçam
as premissas dessa hipótese, pessoas da região como Edmilson e o oceanógrafo
Ricardo Motta Pires, chefe do Parque Nacional do Cabo Orange, que protege o
ecossistema da foz do rio Oiapoque, têm muitas dúvidas, que se baseiam em sua experiência
no terreno. “No Cabo Orange, a amplitude da maré é, em média, de 4 metros e
meio. Tem uma ilha ao sul, Maracá-Jipioca, que também é uma área de proteção
integral, em que a maré chega a 11 metros. No Sudeste, para comparação, é de
cerca de 1 metro. É um terreno de lama mole, que vai acima do joelho. A
vegetação é de siriúba, que respira por milhões de tubinhos que ficam na
superfície. Se uma mancha chegar ao litoral na maré alta, ela vai entrar mais
de 1 quilômetro dentro da costa. Quando assentar, será o fim do mangue. Não tem
como limpar esses tubinhos, como recuperar nada”, diz Ricardo, que comanda o
parque há 20 anos.
Ibama
negou em 2020 nesse mesmo local (bloco 59), licenciamento ambiental a empresa
britânica BP
Por causa dessa e
de outras dúvidas, o licenciamento, iniciado pela companhia britânica BP, que
até 2020 capitaneava a operação do bloco 59, se arrasta há nove anos. A
Petrobras, que assumiu a operação em seguida, embora a BP continue como sócia,
buscou apressar o processo no segundo semestre do ano passado (2022). Num
assunto em que é inevitável trafegar por muitas siglas, neste exato momento o
Ibama – responsável pelo licenciamento de todos os projetos petrolíferos na
costa brasileira – está muito perto de marcar a data da chamada Avaliação
Pré-Operacional (APO) do Plano de Emergência Individual (PEI) apresentado pela
empresa, momento em que ela deve demonstrar sua capacidade de gerenciar
acidentes. Se a simulação passar no teste, a aprovação do PEI será quase
automática, abrindo caminho para a emissão da Licença de Operação.
Recentemente, numa reunião entre os dois lados em 31 de janeiro, a Petrobras
propôs marcar a APO para antes do Carnaval, mas o Ibama disse considerar o
prazo “inviável”, uma vez que a proposta do PEI feita pela companhia ainda não
foi aprovada.
A margem
equatorial é dividida em cinco bacias, começando no Rio Grande do Norte e
chegando à foz do Amazonas. Das cinco, só há exploração de petróleo no litoral
do Rio Grande do Norte. Na foz do Amazonas, perfurações anteriores em águas
mais rasas não encontraram petróleo. Em
2011, num alerta sobre os riscos da exploração na foz do Amazonas, uma sonda da
Petrobras foi levada pela correnteza quando tentava achar petróleo a 110
quilômetros do litoral do Oiapoque. A estatal acabou abandonando o poço.
Bacias da margem equatorial do Brasil.
Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA
Em 2013, apenas
dois anos depois do acidente, nove blocos na bacia da foz do Amazonas foram
concedidos pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Bio-combustíveis
(ANP). Até agora, nenhum obteve a Licença de Operação do Ibama. Em 2018, a
empresa francesa Total se retirou da bacia, onde pleiteava fazer perfurações em
blocos próximos ao bloco 59, depois de fracassar na obtenção da licença do
Ibama, por ter sido incapaz de demonstrar que poderia conter um vazamento de
petróleo numa área em que os ventos são sempre fortes e a corrente Norte é
muito veloz. Na época, a Total estava sob grande pressão de grupos
ambientalistas, além de enfrentar novas diretrizes da União Europeia para a
redução do uso de combustíveis fósseis.
Foi também em 2018
que uma expedição do Greenpeace fez imagens inéditas do que cientistas chamam
de “grande sistema de recifes amazônicos”. A cerca de 200 quilômetros da costa,
a formação foi descrita pela primeira vez em detalhes em 2016. Tem bancos de
esponjas e presença de corais de águas profundas, onde a “pluma do Amazonas”,
como é chamada a área em formato de pena dos sedimentos lançados pelo rio,
permite a chegada de luz. Com tamanho e estrutura que ainda são objeto de
divergências na comunidade científica, esse sistema de recifes é outra grande
preocupação de ambientalistas, que apontam a necessidade de mais estudos sobre
a região.
O
grande sistema de recifes amazônicos. Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA
Ouriços
brancos e rodolitos (algas calcárias) encontrados no sistema de recifes
amazônicos na costa do Amapá. Foto: Greenpeace
“A piscosidade da
área se deve à combinação do estuário amazônico com o grande sistema de recifes
amazônicos. A captura de carbono por esse eco-sistema ainda está no âmbito da
fronteira acadêmica”, diz o biólogo Vinicius Nora, analista de conservação
sênior do WWF-Brasil. “Com esse cenário de inúmeras lacunas do conhecimento, de
inúmeros fatores de importância sócio-ambiental, podemos questionar se é o
lugar para o avanço da fronteira de exploração do petróleo no final de sua era,
como busca a Petrobrás.”
Planos
futuros da Petrobrás na foz do Amazonas
No segundo
semestre de 2022, quando apresentou seu plano estratégico para o período de
2023 a 2027, a Petrobras previu gastar na margem equatorial metade dos 6
bilhões de dólares (cerca de 30 bilhões de reais) destinados à descoberta de
jazidas petrolíferas. A ideia exposta no plano era perfurar 16 poços na área,
um número alto se comparado aos 24 previstos para a região já produtora do
pré-sal.
O que motivou a cobiça
pelo litoral norte do Brasil foi o caso da Guiana, país de 800 mil habitantes
vizinho à Venezuela, onde grandes jazidas foram descobertas no mar pela
americana ExxonMobil a partir de 2015. No Suriname, também foram encontradas
reservas, mas não na escala guianense, e o início da exploração de petróleo no
mar foi adiado para 2027. Já na Guiana Francesa houve uma sequência de
perfurações fracassadas, e a Total suspendeu sua operação em 2019. O plano de
des-carbonização da França baniu a exploração de combustíveis fósseis a partir
de 2040 – o país já usa amplamente a energia nuclear, que tem suas próprias
controvérsias.
Acidentes
da Petrobrás na exploração de poços petrolíferos
À parte os
cálculos financeiros e logísticos, a Petrobras costuma alegar que tem expertise
na prevenção de desastres. Só que, quando se trata de petróleo, um único
acidente traz consequências duradouras e causa a intoxicação de peixes, aves e
plantas. Para citar apenas um exemplo, no ano 2000 o vazamento de 1,3 milhão de
litros de um duto da Refinaria Duque de Caxias se espalhou por 40 quilômetros
quadrados e contaminou todo o mangue do fundo da Baía de Guanabara. Apesar do
mutirão para recuperar a área, quase 20 anos depois ainda havia depósitos de
óleo na lama.
Restos de foguete encontrados no Parque
Nacional do Cabo Orange, na região do Oiapoque: indício de que corrente poderia
trazer mancha de óleo para o Brasil. Foto: divulgação/ICMBio
Licença
ambiental do Ibama a Petrobrás tem muita pressão de petrolíferas estrangeiras
No início de
novembro de 2022, a Petrobras se mexeu para remover o que tem sido o principal
obstáculo à obtenção da Licença de Operação do bloco 59: a previsão de cenários
de dispersão do petróleo em caso de acidente. A “modelagem”, como esse estudo
feito em computador que embasa o Plano de Emergência Individual é chamado no
jargão técnico, foi entregue em 2015 ao Ibama ainda pela empresa britânica BP.
A modelagem da BP
foi questionada pelo Ibama. Em vários documentos, o instituto afirma que, para
traçar cenários mais precisos, seria necessário construir uma “base
hidrodinâmica” que representasse melhor a dinâmica costeira da região,
incluindo a possibilidade de que outras correntes que não a Norte carregassem
resíduos de óleo para a costa do Amapá. Essa base até hoje não foi concluída.
Em março do ano
passado, 28 organizações ambientais e indígenas entregaram uma representação às
Procuradorias da República no Pará e no Amapá em que pediam a ação do
Ministério Público em vários pontos do processo de licenciamento. No documento,
elas mencionaram um trabalho de pesquisadores do Instituto de Estudos Costeiros
da Universidade Federal do Pará (UFPA) que aponta cinco fragilidades na
modelagem de 2015.
Entre outros
pontos, o estudo afirma que a projeção usou cartas náuticas “defasadas” e que
não detalhou as áreas não relevantes para a navegação. Diz ainda que não levou
em consideração a complexidade da costa local, “que possui reentrâncias,
estuários e manguezais com larguras que variam de 100 metros até poucos
quilômetros”. E também que, nesse tipo de sistema, as correntes da maré que vão
em direção à costa são mais eficientes para “empurrar” materiais do mar para o
continente do que as correntes que vão da terra para o mar para levar materiais
no sentido oposto.
O estudo da UFPA
encontra eco na experiência de Ricardo Motta Pires, chefe do Parque Nacional do
Cabo Orange. Ele conta que, em abril de 2014, sua equipe foi avisada de que
haviam sido encontrados “restos de um avião” no mangue. Depois de uma busca de
cinco horas apoiada por bombeiros, foram achados vários pedaços de um foguete
que, mais tarde se confirmou, tinha sido lançado no mês anterior do Centro
Espacial de Kourou, na Guiana Francesa, de onde é enviada ao espaço grande
parte dos satélites europeus. Nesse tipo de lançamento, partes do veículo que
leva o satélite para a órbita da Terra vão se soltando pelo caminho.
Segundo o próprio
Ibama, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que
administra o parque, consultou parceiros na Guiana Francesa que estimaram que
os destroços do foguete haviam caído em uma área situada 350 quilômetros a
leste do bloco 59, numa distância muito maior da costa do Oiapoque. “Se a gente
supõe que essa parte caiu ali e chegou ao parque, é porque existe alguma
corrente que traz para a costa. Normalmente era pra ir para Guiana e Suriname,
boiando, só que deve existir alguma corrente que se forma e desforma, aparece
só de vez em quando. Essa é a grande interrogação diante do que eles [da
Petrobras] apresentam”, diz Ricardo.
Ele afirma que, em
seu período à frente do parque, também já encontrou um barco da competição de
remo entre Dacar, capital do Senegal, e Caiena, capital da Guiana Francesa,
cujo ocupante passou mal e foi resgatado de helicóptero. Achou ainda boias de
deriva lançadas no Maranhão para estudos científicos.
Apesar das
dúvidas, os documentos do processo de licenciamento mostram que o Ibama
concordou em não esperar pela construção da “base hidrodinâmica” para continuar
com o processo de licenciamento. Numa reunião virtual em 15 de setembro de 2022,
o representante da Petrobras já dava por acertado que não seria exigida a
elaboração de uma modelagem totalmente nova para a eventual dispersão de óleo
vazado do bloco 59. Prometeu, em vez disso, entregar um estudo complementar com
informações mais atualizadas sobre aquela área marítima, antecipando que não
haveria “grandes alterações” em relação ao documento apresentado pela britânica
BP em 2015.
De fato, o estudo
que a Petrobras chamou de “complementação da modelagem”, apresentado finalmente
em 7 de novembro, afirma que “não houve alterações significativas” na análise
dos riscos ambientais. O documento reitera que não haveria a chegada de óleo
derramado à costa brasileira, embora admita que ele poderia alcançar o litoral de
países vizinhos depois de 10 dias caso não houvesse uma ação rápida de
contenção. “A Petrobras informa que os novos resultados da modelagem
ratificaram o comportamento indicado no estudo anterior, ou seja, confirmaram a
tendência de que a dispersão de um eventual derrame de óleo seguiria um fluxo
para Noroeste (NO), influenciado pela corrente Norte do Brasil,
consequentemente se afastando da costa brasileira, e fluiria em direção a águas
internacionais, com tempos de toque em costa de países vizinhos ao Brasil
superiores a 10 dias”, diz o documento, concluindo que as hipóteses do PEI, o
Plano de Emergência Individual, “permanecem adequadas e não necessitam de
ajustes técnicos”.
A “complementação
da modelagem” recebeu, no dia 31 de janeiro de 2023, um parecer técnico do
Ibama que cita inclusive o caso do foguete no Parque do Cabo Orange e levanta
dúvidas a serem esclarecidas pela Petrobras. Diz, porém, que elas não são
“neste momento impeditivo para a aprovação do novo estudo”. O parecer já se
refere até ao processo de licenciamento de outros blocos, como o 57, vizinho ao
59, afirmando que eles deverão aguardar as atualizações de modelagem sugeridas
pelo instituto, “principalmente por se tratar de uma área extremamente
sensível, pouco conhecida e com grandes desafios de logística, tanto para
situações de emergência como para as atividades rotineiras”. No futuro próximo,
diz a análise do Ibama, a “base hidrodinâmica” para a margem equatorial estará
pronta, “permitindo abrir caminho para mais melhorias”.
Suely Araújo lembra
que, em 2018, o projeto da empresa francesa Total não recebeu licença porque,
entre outros motivos, a empresa não conseguiu provar que impediria a chegada de
óleo ao mar da Guiana Francesa. “Em menos de 6 horas, pelo que dizia o
processo, o petróleo já estava fora das águas brasileiras. Você estaria
liberando uma área que vai ter interface com outro país. Imagina na hora que
vazar, como seria?”, questiona. No caso do bloco 59, a Petrobras calcula em 10
horas a chegada de óleo ao mar do território francês e diz que foram feitas
reuniões no ano passado com representantes das duas Guianas e do Suriname.
Ainda que a estatal não tenha relatado os acordos feitos nesses encontros, o
Ibama considerou que a exigência de “comunicação com outros países” foi
atendida.
Licença
ambiental gera muitas expectativas nas comunidades do Amapá
A elaboração do
plano estratégico da Petrobras para este ano e os próximos coincidiu com a
intensificação da presença da estatal na cidade de Oiapoque. Na reunião de 15
de setembro de 2022, a empresa apresentou um cronograma no qual esperava obter
a Licença de Operação até novembro/2022. Em dezembro, enviou um navio-sonda à
região, o ODN II, e chegou a anunciar à imprensa que a simulação de uma
situação de emergência, a APO, seria realizada ainda naquele mês. Na época,
Rafael Chaves, diretor de relações institucionais da Petrobras, declarou ao Diário
do Amapá: “O diálogo com o Ibama é excelente. O próprio Ministério do Meio
Ambiente também, todo mundo entende a importância disso para a região em termos
de geração de emprego, geração de renda, mais investimentos”.
O protocolo do
Ibama para o licenciamento, no que se refere à comunicação das companhias
pleiteantes, diz que elas devem evitar gerar expectativas na população do lugar
dos possíveis empreendimentos. Mas declarações como a de Chaves – que
provavelmente deixará a diretoria com a nova gestão da estatal – explicam por
que expectativas irrealistas brotam na região. Entre outubro e novembro de
2022, a empresa realizou “reuniões informativas” em 18 municípios do Amapá e do
Pará. Duas delas foram mais amplas, uma no Oiapoque, onde planeja instalar a
base aérea do projeto, e a outra em Belém, onde ficaria a base naval. Nas
audiências, houve perguntas recorrentes sobre empregos, formação de pessoal
local e pagamento de royalties.
Nessas reuniões,
das quais participaram funcionários do Ibama, os porta-vozes da Petrobras foram
mais contidos. Disseram que apenas na fase de produção, se for encontrado
petróleo, será possível falar em royalties e capacitação de pessoal. Mas,
acrescentaram, a reforma do aeródromo local, que começou a ser feita pela estatal,
“ficará de legado” para o Oiapoque já nessa fase. O pequeno aeroporto, aliás,
já provocou um impasse: o aterro sanitário da cidade está na rota das aeronaves
que levariam a tripulação para o bloco 59, e a ideia original era removê-lo. Só
que o local escolhido ficaria em frente a uma aldeia e próximo a igarapés, os
“berçários de peixes”. A questão ainda não foi decidida.
“Para quem está na
cidade, a chegada da Petrobrás cria uma expectativa muito grande, falam que vai
trazer riqueza, melhoria, emprego. Tem muita gente se mobilizando, empresários
se mobilizando”, conta o cacique Edmilson. “A gente fica malvisto e mal falado
também, ‘porque o povo indígena é contra o progresso’. Mas a gente tenta de
alguma forma esclarecer que o povo indígena não é contra o progresso. O que a
gente quer é achar uma maneira de não correr risco em caso de acidente.”
Em relação às
expectativas no Oiapoque, o mais recente relatório técnico do Ibama sobre o
processo, de 31 de janeiro de 2023, faz considerações atípicas, interpretadas
como um pedido de socorro à direção do Ministério do Meio Ambiente. O texto
lamenta que as normas do processo de licenciamento ambiental não incluam
avaliações obrigatórias da adequação de uma cadeia de produção do petróleo à
região do empreendimento. O licenciamento “não é capaz de avaliar as
transformações sócio-ambientais provocadas pelo desenvolvimento do conjunto de
empreendimentos. Não é capaz de prever se o petróleo é uma adequada vocação
econômica para a região, compatível com as demais vocações. Não é capaz,
portanto, de responder a uma pergunta fundamental: determinada região tem
aptidão para o desenvolvimento da exploração e produção de petróleo,
considerando toda a cadeia envolvida? Em quais condições?”, diz o parecer.
Comunidades
indígenas tem problemas com construção da estrada BR-156
Dos 28 mil
habitantes de Oiapoque, cerca de 8 mil pertencem aos povos Karipuna, Palikur,
Galibi Kali´nã e Galibi-Marworno. As três terras indígenas – Uaçá, Juminã e
Galibi – correspondem a 23% do território do município. Muitas das 53 aldeias
tiveram que mudar de lugar por causa da construção da BR-156, que liga Macapá a
Oiapoque, uma distância de quase 600 quilômetros. Quatro grandes rios ditam a
vida na região: além do Oiapoque, o Uaçá, o Urucauá e o Curipi. Em 2017, foi
inaugurada uma ponte sobre o Oiapoque que liga o município à Guiana Francesa.
Territórios potencialmente impactados pelo
projeto de exploração. Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA
O cacique Edmilson
mora no quilômetro 50 da BR-156 – sua aldeia foi uma das realocadas na
construção da estrada. São 75 pessoas que vivem em casas de alvenaria, mas só
têm eletricidade à noite, quando podem se comunicar pelo WhatsApp. O lugar é
banhado por um braço do rio Curipi: há muito peixe, mas não se pesca nem se
caça para comércio. “A gente janta aquele peixe do almoço ou pega mais”, conta
Aniceia Forte, mulher de Edmilson. Se alguém mata uma paca, uma cotia ou uma
anta, divide a carne com outras famílias. Só a roça pode ter o excedente
vendido, e a atividade comercial mais comum é a produção de farinha. “A gente
dorme à noite bem tranquilo mesmo, deixa a casa aberta de dia”, diz ela.
Por isso há
preocupação com a chegada de gente de fora, não só funcionários da Petrobras,
mas “outros que vêm se aventurando, para tentar uma vida melhor”, como diz
Edmilson. Ao serem frustradas, as expectativas podem levar ao crime, como
costuma acontecer em grandes empreendimentos. Eleita há dois anos, a primeira e
única indígena dos 11 vereadores de Oiapoque, Lília Ramos Oliveira, a Lília
Karipuna, conta que os indígenas se organizam em “mutirões de limpeza” das
reservas para vigiar a pesca ilegal e a retirada de madeira. Lília, do partido
Republicanos, diz que no ano passado, quando houve indícios de uma invasão de
garimpeiros que tentavam aliciar pessoas das aldeias, as comunidades ativaram
com sucesso a Polícia Federal e a Funai.
Indústria petrolífera representa
uma ameaça ao meio ambiente e ao modo de vida de populações tradicionais do
Oiapoque, no Amapá. Foto: Victor Moriyama/Greenpeace
Na
licença ambiental, falta consultar comunidades locais previstas na Convenção
169 da OIT
A representação
feita em março de 2022 pelas entidades ambientais e indígenas resultou numa
“recomendação conjunta” enviada em setembro ao Ibama e à Petrobras por
procuradores federais no Pará e no Amapá. No documento, três procuradores
pediram a suspensão da Avaliação Pré-Operacional e também da Licença de
Operação no bloco 59 enquanto não fosse apresentada uma nova modelagem de
dispersão do óleo.
Os procuradores
mencionaram também a necessidade de que seja feita “consulta prévia, livre,
informada e com boa-fé aos povos indígenas e comunidades tradicionais
interessadas”, na qual devem ser observados “os protocolos de consulta e
consentimento elaborados pelas próprias comunidades impactadas”. Em 2019, os
quatro povos do Oiapoque lançaram um protocolo para essas consultas, previstas
na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada pelo
Brasil e incorporada à legislação nacional desde 2003.
Em sua resposta à
recomendação, a Petrobras minimizou os impactos da primeira fase do empreendimento,
dizendo que tudo que pretende é furar um poço para ver se encontra petróleo e
avaliar se vale a pena explorá-lo, um processo que pode durar mais de uma
década. Caso essa decisão seja tomada, disse a estatal, será necessário obter
novas licenças de produção. É sabido, porém, que, uma vez concedida a licença
para a prospecção, será muito difícil barrar a exploração.
Na resposta, a
Petrobras afirmou também que não se previu a possibilidade de chegada de
petróleo à costa brasileira porque as modelagens não fazem “simulações
reversas”, isto é, não traçam cenários de ação com base em hipóteses não
previstas pelas próprias modelagens. A respeito da consulta prévia, a Petrobras
argumentou que ela era “uma etapa já superada”, uma vez que em 2016, quando a
BP estava à frente do projeto, foram realizadas reuniões com as comunidades
indígenas e quilombolas do Amapá e do Pará. “Algumas audiências públicas com a
comunidade local não caracterizam consulta prévia, que é feita com cada
comunidade específica”, alerta a procuradora Gabriela Tavares Câmara, uma das
signatárias da recomendação do Ministério Público.
Embora prevista na
legislação brasileira, a consulta prévia não é considerada um requisito para o
licenciamento ambiental feito pelo Ibama. Para o Conselho de Caciques dos Povos
Indígenas do Oiapoque, porém, é uma questão de direito e de honra. “Em qualquer
empreendimento que passe ou seja desenvolvido próximo à terra indígena, a gente
exige a consulta”, afirma o cacique Edmilson, que tratou do assunto numa reunião
em 25 de janeiro de 2023, na sede da Funai em Macapá, com a ministra dos Povos
Indígenas, Sonia Guajajara. “Eles alegam que agora é só um teste para ver se
encontram, mas a gente se preocupa porque depois do teste não faz a consulta,
toca pra frente e esquece”, acrescenta ele. O impasse será discutido em uma
reunião marcada para 14 de fevereiro de 2023 entre os representantes indígenas
e a Petrobras, depois que um encontro previsto para 6 de dezembro de 2022, teve
que ser adiado por causa de um surto de covid-19 na Terra Indígena Uaçá.
Imagem
do navio-sonda ODN II, enviado pela Petrobras à região do Oiapoque para
perfurar um poço em busca de petróleo. Foto: reprodução/Facebook (Ocyan)
Faltam
várias etapas para que a licença ambiental do Ibama à Petrobrás seja aprovada
Depois da
apresentação da “complementação da modelagem”, o passo seguinte da Petrobras,
em 8 de dezembro de 2022, foi informar a incorporação de quatro navios fretados
– C-Warrior, C-Viking, MS Virgie e Corcovado – na estrutura de resposta a
acidentes. Uma quinta embarcação, a Mr. Sidney, já havia sido vistoriada pelo
Ibama no Rio de Janeiro e considerada apta em 6 de dezembro 2022: 11 dias
antes, ela havia sido reprovada numa primeira simulação de exercícios de
contenção de óleo.
Os quatro novos
navios foram vistoriados em meados de dezembro/2022 nos arredores de Belém. No
dia 24 de janeiro de 2022, o Ibama entregou os relatórios das vistorias nos
navios e na “base avançada de emergência” em Belém: todos foram considerados
aptos para o Plano de Emergência Individual, mas a agência recomendou maior
treinamento das tripulações, assim como a incorporação de equipamentos
sobressalentes, pedindo que as pendências fossem sanadas “antes da eventual
realização da Avaliação Pré-Operacional”. Ainda em janeiro, agências de
noticiário econômico informaram que a estatal estaria gastando uma fortuna por
dia, estimada em 5 milhões de reais, com o equipamento mobilizado na região: o
navio-sonda, três helicópteros e os cinco navios do plano de emergência.
Nos últimos dias,
a Petrobras tem informado à imprensa que a principal pendência para a emissão
da Licença de Operação pelo Ibama é o licenciamento do Centro de Reabilitação
de Despetrolização da Fauna, sediado em Belém, que deve ser feito pela
Secretaria de Meio Ambiente do Pará – estado governado por Helder Barbalho
(MDB), que preside o Consórcio Amazônia Legal e procura se projetar como
ambientalmente responsável, buscando obter financiamento para combater o
desmatamento e produzir energias verdes no estado. O centro seria inicialmente
construído em parceria com a Universidade Federal Rural da Amazônia, mas a
parceria não vingou e foi contratada uma empresa privada, a Mineral. A
secretaria paraense informou que o pedido de licenciamento foi protocolado em
20 de outubro de 2022 e que a partir daí tem até seis meses para analisá-lo. Em
19 de janeiro de 2023, pediu à Petrobras informações complementares. O Ibama
marcou uma vistoria ao centro em 14 de fevereiro de 2023.
Os
cenários da modelagem, porém, ainda são considerados o maior obstáculo ao
licenciamento da operação, bem como a repercussão nos países vizinhos.
Basicamente, não há confiança nem sobre o caminho que uma mancha de óleo faria
nem se a Petrobras conseguiria controlá-la na área do bloco 59.
Em meio a qualquer decisão, existe a transição de governo: nos próximos dias,
tomam posse o novo presidente do Ibama, o biólogo e deputado federal Rodrigo
Agostinho (PSB), e em seguida o diretor de licenciamento que ele e a ministra
Marina Silva nomearem. Dificilmente, acredita-se, um diretor interino tomará
uma decisão tão delicada.
“Eu não sei se
sobreviveria mais de um mês no Ibama dando não a tudo quanto é licença na foz
do Amazonas, mas eu acho que seria minha tendência”, diz Suely Araújo,
ex-presidente do órgão. “É uma região difícil, complicada, sensível
ecologicamente, o que gera de renda para o local não justifica o impacto causado.
É quase uma maldição porque depois acaba a exploração e volta tudo a ser como
era. Você cria uma dependência que uma hora vai acabar, e a perspectiva é
acabar logo. O Brasil quer ser o último grande vendedor de petróleo do mundo,
quer ficar com a bucha na mão, quer ficar com o mico na mão?”
Publicado
no Outras Palavras : 07/02/2023
Fonte: https://outraspalavras.net/?s=ibama+petrobr%C3%A1s+&cpts%5B%5D=post&cpts%5B%5D=outrasmidias&cpts%5B%5D=blog&cpts%5B%5D=outrasaude