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9.26.2025

Brasil: Os Ricos Roubaram a Democracia

Democracia moderna: blindagem, anistia e o assalto ao princípio democrático

Não sei o que as próximas noites nos reservam nas decisões da Câmara Federal Brasileira, mas os deputados federais desta legislatura parecem ter um apego especial pela “ausência de luz”

Fonte na internet:  ‘depositphotos’. Dois deputados em uma moto: blindagem, anistia e o assalto ao princípio democrático

por Gustavo Livio no GGN – Sociedade e Estímulos a Continuidade da Vida na Terra

Na calada da noite do dia 16 de setembro de 2025, a Câmara dos Deputados aprovou a chamada PEC da Blindagem, que condiciona a abertura de processo criminal contra um parlamentar à autorização de sua casa legislativa. Se um deputado federal porventura assaltar alguém em cima de uma moto ou desviar bilhões em esquemas de orçamento secreto (e essa é apenas uma hipótese), só poderá ser processado criminalmente se houver autorização de seus colegas da Câmara dos Deputados no Brasil. 

E na calada da noite do dia seguinte (17 de setembro), a Câmara dos Deputados empilhou mais uma atrocidade: aprovou urgência para a votação de um projeto de lei de anistia para os condenados pela tentativa de golpe de estado ocorrida em 08 de janeiro de 2023.

Não sei o que as próximas noites nos reservam, mas os deputados federais desta legislatura parecem ter um apego especial pela ‘ausência de luz’, para ser bem sutil em minha crítica. Os horários das votações e os orçamentos secretos que o digam. Mas se a fotofobia é uma epidemia generalizada que se instaurou nas casas legislativas brasileiras (nos níveis federal, estadual e municipal), tratemos de lançar luz sobre alguns pontos.

Em primeiro lugar, as duas propostas são flagrantemente inconstitucionais.

A PEC da blindagem atenta contra a divisão de poderes e impõe barreiras desarrazoadas, que na prática garantem a impunidade de parlamentares. E para quem duvida disso, trago à luz um fato histórico. Quero lembrar aos des-memoriados que este mesmo regime de blindagem já esteve em vigor no Brasil entre 1998 e 2001, período em que a abertura de processo criminal contra parlamentares também dependia da aprovação das respectivas casas (Câmara e Senado). Como era esperado, o corporativismo parlamentar impediu a tramitação de quase todos os processos criminais que o Ministério Público tentava mover contra os congressistas. Nesse noturno período, foram 253 pedidos de abertura de processo criminal embarreirados e apenas em uma oportunidade a autorização foi concedida. O placar é esse mesmo: 253 a 1. Reparem que o número é bastante expressivo. 254 processos criminais contra parlamentares em 4 anos. A média é de aproximadamente 60 casos de impunidade por ano. E ainda querem fazer crer que a lei penal é para todos.

A solitária exceção foi a autorização concedida no caso do deputado federal Jabes Rabelo (PTB-RO), acusado de receptação por comprar um veículo roubado. Nos outros 253 casos, a autorização foi rejeitada pela complacência dos colegas de legislatura. Destaco apenas alguns exemplos, como o caso do ex-deputado federal Hildebrando Pascoal, acusado de liderar um grupo de extermínio no Acre e que teve o pedido de abertura de processo criminal engavetado. Outro caso famoso foi o do então deputado federal Nobel Moura, acusado de tentativa de homicídio contra um caminhoneiro. Para fechar a lista exemplificativa, no ano 2000, o STF pediu autorização para processar criminalmente o senador Luiz Estevão por desvio de verba pública na construção do prédio do TRT em São Paulo. Em todos esses casos, o regime de blindagem garantiu a impunidade dos parlamentares.

A anistia por crimes que atentam contra a democracia também é flagrantemente in-constitucional. A fundamentação é um tanto óbvia: o Estado de direito e a democracia são princípios fundamentais de organização do Estado brasileiro e qualquer a-tentado contra estes pilares não pode passar em branco. O laboratório da história brasileira exige que não devemos repetir a receita da impunidade dos bárbaros crimes cometidos durante a ditadura empresarial-militar de 1964-85. Não repitamos o erro. A anistia para atentados contra a democracia é uma escatologia jurídica e o STF tem precedentes neste sentido.

As duas propostas provavelmente não serão aprovadas. Não porque são in-constitucionais, isso não é problema nenhum para a maioria dos parlamentares. Elas não devem ser aprovadas porque a repercussão na mídia e nas redes sociais foi muito negativa. A repercussão é um holofote que ilumina tudo aquilo que os deputados querem que permaneça nas sombras. Atrai a atenção da mídia, do Ministério Público e do Judiciário e cria um sentimento de desgaste que prejudica a renovação da legislatura. E esse é o ponto que gostaria de me aprofundar no que toca às chamadas “crises da democracia”.

A crise democrática global ou a crise das democracias

Que as instituições da democracia burguesa (feita para os ricos) não representam de fato os interesses do povo, isso é um tanto óbvio para qualquer um que dedique vinte minutos para ler as manchetes dos jornais. O ponto não-óbvio é a inter-relação entre o modo de produção capitalista (a base econômica da sociedade) e as instituições político-estatais que lhe suportam. O capitalismo, tal como o Rei Midas (mitologia grega), transforma em mercadoria tudo o que toca. Com isso, a superestrutura que lhe suporta (dentre elas, as instituições do Estado) também passa a ser regida pela lógica da concorrência mercantil. É o princípio da concorrência, não o do bem comum ou do interesse público. Esta forma de administração publica que rege o sistema político nos países de democracia formal-burguesa, pois é este o princípio que regula a Economia e estrutura a sociedade. Como resultado, formou-se um “mercado eleitoral” que disputa a atenção dos eleitores em troca de voto. Este mercado desvirtua os canais reais de representação e impõe a institucionalidade política para o resto da população.

Essa é, inclusive, uma questão histórica. A ontologia genética das democracias modernas (primeiramente implantada na Grécia aristotiliana) demonstra que elas não foram implementadas para instituir governos populares, longe disso. Na verdade, o objetivo era delimitar o poder político à classe ascendente, à classe de proprietários. Sobre os EUA, basta ler os Federalistas para identificar que a representação política foi idealizada porque os “pais fundadores gregos” acreditavam que os interesses da nação estariam mais bem garantidos se ficassem apenas nas mãos dos proprietários escravocratas. O argumento era que a virtude política se identificava com a propriedade. A representação não foi idealizada somente em função da complexidade das sociedades modernas, mas porque se trata de um mecanismo eficaz de manutenção do poder econômico das classes dominantes. Não à toa, a democracia moderna começa sua jornada histórica com o voto censitário (permitido somente a algumas castas) e assim permaneceu durante muito tempo, até que o sufrágio universal, depois de muita luta, fosse conquistado.

Mas o sufrágio universal não garantiu que a política passasse a ser regida pelo bem comum ou pelo interesse do povo. A democracia burguesa não ultrapassa seu aspecto formal, porque a igualdade formal-jurídica que lhe serve de fundamento, pouco interfere nas nítidas des-igualdades sócio-econômicas, criadas e mantidas pela estrutura econômica capitalista. Se democracia, dentre outros elementos, é determinada como um princípio de socialização do poder político em direção ao bem comum, então temos aqui uma contradição insuperável: se o capitalismo, enquanto estrutura econômico-produtiva funciona como uma máquina de desigualdades sociais, regida por leis gerais de concentração de riqueza e se a concentração do poder econômico engendra a concentração do poder político, então é claro que aquela ideia de socialização do poder típica de um regime materialmente democrático, não passará de um sonho. Enquanto o princípio democrático em sentido material demanda socialização do poder político e busca pelo bem comum, a estrutura econômica capitalista direciona seus circuitos no sentido oposto, no sentido da centralização.

A lei geral de concentração capitalista (descrita por Max em O Capital) é a doença que contamina todo o sistema político, pois a burguesia continua com poder econômico, para garantir que seus interesses dominem o modo geral de pensar. Ela pode financiar pensadores e universidades, pagar lobistas e advogados e contratar espaços publicitários dizendo que o “Agro é pop”. É por isso que surgem as famosas “bancadas”, como as do boi, da bala e da bíblia (a explosão de igrejas neopentecostais também é um exemplo de como as instâncias sociais são capturadas pela forma-mercadoria-capital), com advogados e lobistas que dia sim e dia também ocupam os corredores do Congresso e dos tribunais para zelar pelos interesses dos grupos econômicos que lhes contratam.

O próximo des-dobramento dessa doença na arena política – e é este o ponto que interessa agora – é a criação de castas parlamentares relativamente distantes dos interesses gerais do povo. Digo relativamente por que os círculos da burguesia, é claro, continuam com livre acesso às autoridades políticas brasileiras, faculdade que, é claro, não é estendida à massa da população (muito menos aos movimentos sociais). Estas castas passam então a trabalhar também para o próprio interesse, como se as instituições fossem finalidades auto-rreferenciadas. Fins em si mesmos e não instâncias deliberativas a serviço do interesse público. O terreno oculto da produção legislativa, as negociatas, a troca de favores e o “toma lá, dá cá” de projetos, tudo isso cria um campo no qual a classe política escapa das relações reais de representação e passa a atuar em causa própria. E para esse propósito, a ‘ausência de luz’ é decisiva para a continuidade dos circuitos da corrupção parlamentar. E por corrupção parlamentar quero me referir à prática de atuação legislativa em causa própria como antí-tese ao princípio democrático de socialização do poder político, em direção ao bem comum e ao interesse público.

Não é à toa que existe grande déficit no sentimento representativo da população. Há verdade neste sentimento de revolta; não há representação real entre os interesses dos eleitores e o dos políticos eleitos. E este é um fenômeno mundial do que tem se convencionado chamar de “crise das democracias”. Embora o termo seja pouco elucidativo, fato é que o modelo de democracia formal-burguesa, com seus movimentos de conquistas e retrocessos, não se provou capaz de garantir uma identidade aproximada entre representantes e representados. E a grande questão é que esse próprio modelo formal de democracia, erguido sob uma estrutura capitalista (e em especial, nos países periféricos de capitalismo dependente), engendra as contradições que colocam em risco sua própria existência.

Uma das explicações para isso reside justamente na formação de um “mercado político-eleitoral” no qual os parlamentares e candidatos disputam a atenção dos eleitores com chavões genéricos e promessas vazias. O Rei Midas, que transformava tudo o que tocava em ouro, sofria na verdade de uma maldição; pois não conseguia abraçar sua filha ou se alimentar sem que o objeto do seu toque se transformasse em ouro e a ganância devorasse sua existência. Da mesma forma, o capitalismo universaliza a forma-mercadoria-capital e transforma tudo ou organiza em uma instância mercadológica regida pelo espírito da concorrência.

A política eleitoral foi transformada em um mercado.

A maldição que lhe segue, neste ponto específico, é o difundido sentimento da anti-política, que deságua em formações fascistóides que direcionam sua revolta de forma abstrata e genérica “contra tudo isso que está aí”. Incapazes de lançar luz adequadamente sobre o problema, personificam seu ódio contra minorias, inventam falsos problemas, denominam tudo de “comunismo” e lutam contra moinhos de vento. E esse é o grande perigo, pois embora insuficiente, a democracia formal é indispensável. Precisa ser aprofundada, não descartada. O ponto a ser destacado é que a democracia liberal-burguesa, entremeada por espaços de desvirtuamento do interesse público e incapaz de garantir espaços reais de representação popular, engendra as contradições que colocam sua própria existência em risco. E aqui me refiro especialmente aos movimentos neo-fascistas que tentaram deslegitimar o resultado das eleições de 2022 e dar um golpe de estado no dia 08 de janeiro de 2023. São esses mesmos movimentos que esfarelam a democracia em cima de uma moto.

Ao lado do confuso movimento da anti-política, há outro sentimento igualmente perigoso: o da des-politização, o desinteresse pela política. Lima Barreto disse certa vez que “o Brasil não tem povo, tem público. Povo luta por seus direitos, público só assiste de camarote (ou na arquibancada)”. Eu trocaria apenas o termo “camarote” (o povo brasileiro em geral não tem condições financeiras para isso), mas fato é que a des-mobilização política do povo guarda conexão com a desilusão verdadeira e real com os caminhos da política institucional.

São movimentos corporativistas como estes, de flagrante tentativa de garantia de impunidade, que alimentam os sentimentos de anti-política que ameaçam a frágil democracia formal que nos resta. O assalto ao interesse público é a chave do sentimento de aversão à política que domina a população brasileira.

Brinquei com o título, mas a verdade é que dois homens em uma moto, dois parlamentares em uma moto… o sentimento geral é de que “ninguém presta na política”, de que “lá só tem ladrão”. Tenho certeza de que o leitor e a leitora já ouviram essa frase. É claro que temos parlamentares sérios, mas o senso comum de déficit representativo é real, essas pessoas não estão de todo erradas. São movimentos de blindagem como esse que alimentam as rodadas de descrédito na política institucional. A degeneração ética da política parlamentar coloca as condições de sua própria destruição, ao mesmo tempo em que cria a necessidade de maiores e mais amplas blindagens. E com isso se cria um circuito perigoso, errático e incerto que sequer tangencia a raiz do problema: a própria forma liberal-burguesa da democracia formal e o sistema capitalista como um todo.

Opinião do Coletivo Transforma MP

Coletivo Transforma MP    - o coletivo reúne promotores e procuradores de todas as esferas do Ministério Público brasileiro, além de apoiar diversos movimentos sociais. O Coletivo Transforma MP é uma associação de membros de todas as esferas do Ministério Público, sendo os MPs estaduais, MPF e MPT, inclinados ao campo progressista, que visa proteger os direitos humanos e as garantias constitucionais do povo brasileiro.

*Gustavo Livio – doutorando pela PUC-Rio. Mestre pela UFRJ com pesquisa em Direito e Economia. Promotor de Justiça do MPRJ. Integrante do coletivo Transforma MP. Ex-Defensor Público do Estado da Bahia.

Publicado no GGN: 19 de setembro de 2025

Fonte: https://jornalggn.com.br/opiniao/dois-deputados-em-uma-moto-blindagem-anistia-e-o-assalto-ao-principio-democratico-por-gustavo-livio/

 

9.23.2025

O risco para a vida devido à falta de diversidade na alimentação, agricultura e criação de animais

Ameaça à segurança alimentar hoje é o excesso, não a escassez

A segurança alimentar do século 21 está na abundância da vida e não no excesso daquilo que a destrói

por Ricardo Abramovay* na Folha de São Paulo – Sociedade e a luta para manter a vida no planeta

Colheita do milho pelo agro

COP30, em novembro próximo, é uma excelente oportunidade para que se re-defina a segurança alimentar, até aqui sistematicamente associada a produzir cada vez mais.

No entanto, as conquistas científicas e os dispositivos tecnológicos, que foram fundamentais para o aumento das safras e a drástica redução da fome na segunda metade do século 20, se converteram hoje na mais importante ameaça à segurança alimentar global. O que nos ameaça não é a mais a escassez. É o excesso.

sistema agroalimentar global é marcado por uma tríplice separação: a agricultura separou-se da bio-diversidade; as “factory farmings” (“pecuária industrial”) separaram os animais de criação das fontes de sua alimentação e a alimentação se separou da saúde. Esta tríplice separação se exprime, por sua vez, numa tríplice monotonia (falta de diversidade).

A primeira monotonia (falta de diversidade) é a da agricultura. A humanidade conhece mais de 7.000 produtos comestíveis, dos quais 400 são cultiváveis. No entanto, 75% de nossa alimentação vêm de apenas seis produtos: soja, milho, trigo, cana-de-açúcar, arroz e batata. E esses produtos são obtidos com base em técnicas que transformaram micro-organismos, insetos, fungos —e, de forma geral, a bio-diversidade— em inimigos a serem eliminados por meio de técnicas que fazem do combate à vida a base do aumento da produtividade. Esta é a dupla face da monotonia (falta de diversidade) agrícola e do excesso que a caracteriza: ela se revela nos produtos e nas técnicas para obtê-los.

A segunda monotonia (falta de diversidade) vem da homogeneidade das raças e das técnicas utilizadas na criação de animais, num regime que tortura sistematicamente seres dotados de inteligência e sensibilidade com consequências desastrosas sobre a saúde humana, expressas no avanço da resistência anti-microbiana, uma das mais sérias preocupações atuais da Organização Mundial da Saúde, em função das chamadas “super-bactérias”.

E a terceira monotonia (falta de diversidade) é a da alimentação, com a oferta crescente de ultra-processados, produtos que nem deveriam ser chamados de comida. O escritor norte-americano Wendell Berry o exprime de forma emblemática, quando diz que a indústria alimentar não se preocupa com a saúde e a indústria da saúde não se preocupa com os alimentos.

Essa tríplice monotonia (falta de diversidade) está sendo cada vez mais contestada, não apenas por cientistas e ativistas, mas pelo Banco Mundial, pelo Grupo Consultivo em Pesquisa Agrícola Internacional e mesmo por organizações como o Fórum Econômico Mundial e o grupo financeiro Mitsubishi, sétimo maior grupo financeiro global que acaba de publicar um relatório alertando para os perigos dos ultra-processados e do uso de anti-bióticos na produção animal.

A boa notícia vem da América Latina: é aqui que estão emergindo as bases científicas que vão permitir ultrapassar os dispositivos da Revolução Verde, por meio de um conjunto de bio-insumos dos quais Brasil, Argentina e Colômbia ocupam hoje a vanguarda global.

Além disso, os próprios fazendeiros nas regiões produtoras de soja, no Brasil, começam a contestar sua dependência de insumos químicos que erodem seus solos e corroem seus rendimentos.

O sistema agro-alimentar é apenas um exemplo daquilo que, de forma geral, podemos chamar de economia do excesso. Não se trata de se opor ao crescimento econômico, mas sim ao crescimento daquilo que compromete o bem-estar das sociedades contemporâneas, promovendo o que melhora a vida social e rejeitando o que agride a saúde humana, o bem-estar animal e compromete serviços ecossistêmicos dos quais todos dependemos. A segurança alimentar do século 21 está na abundância da vida e não no excesso daquilo que a destrói.

*Ricardo Abramovay é autor de Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia e Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza, além de outras contribuições em artigos e prefácios.

Publicado na Elefante: 18 de setembro de 2025

Fonte: https://editoraelefante.com.br/ameaca-a-seguranca-alimentar-hoje-e-o-excesso-nao-a-escassez/

9.12.2025

Para combater o aquecimento global será preciso diminuir em muito a queima de combustíveis fósseis

A defesa do governo brasileiro de que a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas poderia financiar a transição para matrizes mais limpas, seria como fazer sangrar paciente anêmico

O governo quer o Brasil fóssil

O governo Lula esquece as promessas de campanha, não leva em conta a agenda da sustentabilidade e passa a apresentar perfil bastante favorável ao petróleo

Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP)... pratica atividade lobística nas COPs (inclusiveCOP 30) em defesa da continuidade de uso global do petróleo, na qual o Brasil passou a ser membro...

por Carlos Bocuhy* na ((eco)) - Sociedade e Luta Contra a Destruição do Planeta

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, Ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e o Ministro da Casa Civil, Rui Costa, durante cerimônia de retomada da indústria naval e offshore brasileira no âmbito do Programa de Renovação da Frota Naval do Sistema Petrobras. Tebig, Angra dos Reis - RJ. Foto: Ricardo Stuckert / PR

O Planeta está aquecendo. Ultrapassou a meta do acordo de Paris em 2024, batendo na marca média global dos 1,55º C, acima do índice considerado “suportável” para o aquecimento global.

Esse “suportável” não foi bem o que se previa.  

Estudos recentes examinam dados climáticos atuais e apontam para danos catastróficos para a biosfera: humanos, animais e ecossistemas vitais.

Os impactos de 1,5º médios no planeta já representaram situações extremas de secas, incêndios, furacões, inundações e outros efeitos adversos que atingiram duramente a humanidade e as espécies vivas.

É preciso combater fortemente o aquecimento global e para tanto será preciso eliminar a queima de combustíveis fósseis, maior causador do problema em nível global, conforme insistentemente tem alertado a ciência.

O governo do Brasil, país vulnerável que já sofre duros impactos climáticos, demonstra incoerência. Com argumentos contraditórios, anuncia sua disposição em insistir no erro. 

O governo Lula esquece as promessas de campanha, ignora a agenda da sustentabilidade e passa a apresentar perfil aderente (aumento de exploração) ao petróleo. O governo, de forma cínica, distorce os fatos para angariar apoiadores des-providos de conhecimento, utilizando frases contraditórias absurdas como “explorar petróleo para financiar sua eliminação”.

Não é só isso. O Brasil entrou recentemente para o cartel transnacional do Petróleo, a Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP), mais especificamente na OPEP +. A associação dos fósseis visa controlar a demanda e os preços do petróleo, visando  de forma prioritária sua continuidade no mercado. Pratica atividade lobística nas COPs em defesa da continuidade de uso global do petróleo. “A indústria de combustíveis fósseis é impulsionada por seus resultados financeiros, que se opõem fundamentalmente ao que é necessário para deter a crise climática, ou seja, a eliminação urgente e justa dos combustíveis fósseis”, afirma Sarah MCarthur, ativista do UK Youth Climate Coalition.

A realidade climática é pior do que se pensava. Grupos de cientistas da Europa e dos Estados Unidos, em pesquisas diferentes, afirmam que o atingimento superior a 1,5ºC em 2024 aponta um período de aquecimento que se manterá por 20 anos. Em síntese, a conclusão é: se em 12 meses consecutivos a temperatura se manteve acima de um limite climático, este limite também será atingido a longo prazo.

Essa descoberta significa que a continuidade das emissões decididas a partir de agora são cruciais, revestidas de maior responsabilidade do que se antevia anteriormente.

Portanto, a defesa do governo brasileiro de que a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas poderia financiar a transição para matrizes mais limpas, seria como fazer sangrar paciente anêmico.

Contribuir para o aumento de mortalidade e impactos debaixo dos eventos extremos, sufocar em secas a produção agrícola, aumentar inseguranças alimentar e hídrica e causar fortes migrações internas será a consequência da continuidade da extração e queima de petróleo.

O governo do Brasil não só erra. De forma grosseira, frustra expectativas de sustentabilidade, sacrifica seu papel de líder na proteção dos ecossistemas e da emblemática Floresta Amazônica, conhecida como ante-sala do Gênesis, em conhecido processo de fenecimento.

Também perderá poder de convencimento para liderar as mudanças necessárias como anfitrião e presidente da COP30, ocasião única que se reveste de vital importância pela gravidade e urgência do problema.

Com a adesão fóssil, o governo impulsiona o Brasil contra sua gênese, seu DNA de biodiversidade e florestas, seu pensar e agir como Estado, em respeito à sua Constituição ecológica e cidadã, que estabeleceu sabiamente a Política Nacional do Meio Ambiente, que determina garantir futuro saudável para atuais e futuras gerações.

É preciso ressaltar ainda que a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas é uma aventura tecnológica inconsequente. A avaliação de impacto ambiental para novos empreendimentos demanda, de forma prioritária, avaliar alternativa locacional. Sendo esta inadequada, quando o ecossistema é frágil e apresenta alta vulnerabilidade, a perspectiva de perfuração deverá ser negada, já que, por sí só, gera impactos e riscos.

Sabe-se também da dificuldade para contenção de vazamentos devido à profundidade e fortes correntes marinhas.

Além disso, a extração de petróleo é prática em vias de extinção por recomendações científicas e em respeito ao acordo global obtido nas COPs.

A insistência na extração (no setentrional do rio Amazonas) está completamente na contramão da ciência e da economia e mau negócio. Começar a pesquisar agora, enfrentar pesados investimentos e ser compulsoriamente obrigado a paralisar essa extração em 2030-2035 devido ao avanço dos impactos climáticos será desperdício de recursos. Como afirma o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em seu levantamento sobre tendências para países da América Latina e Caribe: “quando governos ou instituições públicas adquirem bens ou serviços, parece que ineficiência, fraude e abuso são a norma, não a exceção.

Só fará sentido para aqueles que, mal-informados sobre perspectivas futuras, tem interesses para que o petróleo não seja banido, como pretende a OPEP. A coordenação da OPEP recomendou aos seus países membros durante a COP28 “rejeitar pro-ativamente qualquer texto ou fórmula que vise a energia, ou seja, combustíveis fósseis em vez de emissões”.

Não resta dúvida que prosseguir com este erro grosseiro seria, além de impactar a região do Amazonas, contribuir para um desastre humanitário.

 *Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

Publicado no site ((o))eco: 24 de fevereiro de 2025

Fonte: https://oeco.org.br/colunas/o-governo-quer-o-brasil-fossil/#comments