A vida em Estouros, povoado
a 290 km de Belo Horizonte, segue um ritmo que parece eterno. Não é
necessário relógio. Acorda-se com o raiar do Sol e dorme-se quando as
estrelas começam a surgir. Os homens trabalham a terra e as mulheres
cuidam da casa e dos filhos. Nas refeições, as famílias se alimentam
daquilo que a terra lhes devolve. Feijão, arroz, couve, abóbora. De vez
em quando, carne de porco ou de galinha, criados no quintal. Ali não se
conhece hambúrguer, pizza nem maionese. Tem gente que no mês
passado tomou Coca-Cola pela primeira vez na vida. Os jornais só
aparecem para embrulhar encomenda. Estouros é um lugar sem aquele
eletrodoméstico que ocupa o lugar central na residência da maioria
dos brasileiros — um aparelho de TV.
O que é a TV? O menino
Ivanei Carlos Martins, 10 anos, 7 irmãos criados por um lavrador de
Estouros, que todos os dias caminha 12 km para ir à escola e voltar,
explica: “É uma caixa de som com um espelho na frente”. O irmão mais
velho, Wilson, já viu TV nas redondezas. Mas, se pudesse, Wilson não
compraria um aparelho. Uma égua de 3 anos teria maior utilidade: “Eu
descansaria das pernas. A gente anda sempre a pé ou no caminhão do
leite”. Wilson assistiu a uma exibição do programa Aqui Agora,
do SBT, e ficou de olhos esbugalhados. Não se conforma até hoje: “A
gente vê batida de carro, roubo”, espanta-se. “Tem bandido que mata a
pessoa à toa. Aqui não tem nada disso. Aqui a gente mata porco. E para
comer”. Outro habitante de Estouros, Luciano Felisberto Filho, tem outra
lembrança do único programa de TV a que já assistiu. “Não dá para
assistir tanta coisa junta. Não entendo o que vejo. O povo fala muito”.
É mesmo estranha a vida
sem o espelho falante do pequeno Ivanei. O povoado de Serra Velha, em
Santa Catarina, que tem 300 habitantes e 60 casas, fica encravado numa
montanha e o acesso é restrito a uma única estrada. Ali nunca se ouviu
falar do ministro da Fazenda, do Fernando Henrique Cardoso, do Lula, nem do último carro mais novo. Tampouco de
Roberto Carlos, Pelé ou Madona. O ídolo naquelas paragens é o professor Santanor
Petersen, único na região, proprietário de uma caminhonete que faz 30
km/h como velocidade máxima. Bem diferente dos veículos saídos de uma
linha de montagem, a caminhonete do professor Petersen tem a carroceria
de madeira, que sobrou de um corte de árvores, e o motor de um barco.
Pessoa mais bem informada da cidade, o professor não sabe qual o nome da atual
presidenta da República.
Esse país indiferente à
passagem do tempo, com muito menos dinheiro e conforto, menos violência
e perversidade, integra uma das mais bem-sucedidas utopias nacionais. A
do Brasil rural, de pessoas simples e valores estabelecidos, de
pequenos heróis e pequenos vilões naturais em qualquer parte. É um país
delicioso de ver e explorar, como descobriram as novelas rurais que a TV produz e eles não vêem. É o país desconhecido das grandes metrópoles. Mas é uma utopia urbana achar que o povo
desses lugares quer ficar assim. TV é eletricidade, eletricidade
é progresso, e não há como preferir um lampião de querosene a uma
lâmpada, nem é possível achar que o cidadão que não sabe o nome da
presidenta é mais feliz do que aquele capaz de recitar a lista de todos
os ocupantes do Planalto de 1964 para cá, ou aquela que conhece todas as artistas de novelas. É só mais ignorante, mas a felicidade não é medida por aí.
Há 6 meses, em Lagoa do
Oscar, lugarejo do interior de Minas, correu o boato de que, enfim, os
postes de luz chegariam ao local. Foi um alvoroço. O roceiro Domingos
Ferreira Conceição, um senhor já de meia-idade, percorreu 110 km apenas
para fazer uma troca. Entregou uma espingarda nova para um muambeiro,
que lhe deu uma TV portátil trazida do Paraguai. O roceiro aguardou
4 meses pela luz. Como ela não veio, vendeu a TV para um caminhoneiro,
que pagou "200 mil reais" (sic) por ela. Mas não desistiu. “As crianças
só falam do dia em que terão uma TV em casa”, diz.
Com 3 mil moradores,
a 700 km de Salvador, Muquém do São Francisco é outro exemplo. Ali não
existe luz elétrica, água encanada nem rede de esgoto. Mas tem TV. Um
aparelho, de propriedade da prefeitura, ligado a um gerador a óleo
diesel. Todos os dias, o funcionário Francisco Raimundo Cardoso pega o
televisor de 20 polegadas em um barraco onde ele fica trancado e o
transporta até a praça da cidade. Ali, cercada com arames farpados, a TV
fica ligada das 6 da tarde até às 11 da noite.
TV em Muquém do São Francisco, BA
Muquém é um município
paupérrimo, com orçamento de 70 mil reais por mês. Com
esse dinheiro, o prefeito Carlos Moreno Pereira paga o salário de 130
funcionários públicos e investe 20 mil reais na área de
saúde. As escolas da cidade lhe custam o mesmo que a conta do gerador da
TV: 3 mil reais por mês. Até o prefeito acha um absurdo. “É um luxo
gastar dinheiro com o gerador”, reconhece. Mas não há alternativa. Desde
que a TV foi instalada, no final de 1991, é sucesso absoluto. Nos dias
normais, reúne de 30 a 50 pessoas na praça. Em grandes momentos, passa de 100.
Quando se transmite futebol, a plateia se divide. As mulheres querem ver
as novelas; e os homens, futebol. A última palavra é da primeira-dama,
Vera Lúcia Pereira, que sempre acaba dando preferência à plateia
feminina.
Captava por antena parabólica
diretamente do Rio de Janeiro e de São Paulo, a TV de Muquém tem uma
peculiaridade: não apresenta comerciais. Enquanto os telespectadores do
país inteiro assistem a um carrocel de anúncios publicitários, ali a
tela fica escura. O impacto sobre os hábitos de consumo é menor. A
plateia só é atingida pela propaganda inserida dentro dos
programas. Por essa razão, as donas de casa começam a trocar os temperos
caseiros por industrializados e ficam satisfeitas quando descobrem que a
TV mostra a mesma pasta de dentes que guardam na dispensa.
“A TV é vista em muitas comunidades como símbolo de status“,
afirma a socióloga Sara Chicid da Via, da Universidade de São Paulo
(USP). “As pessoas mudam de comportamento em função do que passam a
ver”. Um dos mais antigos hábitos dos adolescentes de Muquém era o “papo
do comitê”. Eles se encontravam todas as noites nas escadarias de um
prédio utilizado como comitê de um partido político para conversar e
fazer brincadeiras. “Eram mais de 20 pessoas”, lembra Carla Rejane
Almeida, 18 anos. Nesses papos se falava , por exemplo, de Noemi, a
garota mais bonita da cidade, e de Reivaldeo e Gildásio, os “gatos” mais
paquerados. Agora não se fala mais disso. Estão todos assistindo à
televisão na praça. E a TV...
A reportagem reproduzida acima, foi publicada no dia 05 de janeiro de
1994 na revista Veja. Apesar de estar mais de 20 anos atrasada, apesar
de relatar uma realidade social que ficou no passado, ela continua viva como relato histórico, ao
deixar registrado como era a vida nos pequenos municípios e povoados do
interior do Brasil, antes da chegada definitiva da energia elétrica e,
principalmente, da TV.
Textos jornalísticos não resistem ao
tempo. Mas não se pode generalizar. Alguns, de tão bem escritos,
continuam informando por décadas. Se não servem mais para relatar os
fatos atuais, permanecem vivos como importantes registros históricos de
outras épocas.
Os textos jornalísticos relatam fatos, e estes estão sempre presos ao
tempo em que aconteceram. Passam-se os dias e aquela reportagem
magnífica já ficou ultrapassada por novos fatos, novas notícias, novos
tempos. E esses novos tempos fazem rapidamente esquecer de um passado recente.
http://charlezine.com.br/sem-espelho-falante/
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