Paulo Emanuel Lopes - Adital - Sociedade e Gênero
"Falar
em igualdade significa buscar, a cada novo contexto e a cada novo momento da
história, sanar o egoísmo visceral que nos leva a preferir sempre nossos
interesses em detrimento dos outros. Criamos a escravidão de todos os tipos,
estabelecemos cores e etnias superiores umas às outras, sexos superiores a
outros, orientações sexuais mais normais do que outras. E quem está do lado do
poder e da normalidade não hesita em manter relações excludentes e culpabilizar
"os diferentes" por muitos males do mundo",
Simone Gebara, teóloga feminista.
Estes e outros diálogos foram narrados a Paulo Emanuel, nesta entrevista que aprofunda o "ver" a pessoa na sociedade, na família, no trabalho, na escola.
O que se passa hoje dentro das relações da mulher com as comunidades e na igreja também fica fácil de ser entendido neste "papo" descontraído, mas atento.
Estes e outros diálogos foram narrados a Paulo Emanuel, nesta entrevista que aprofunda o "ver" a pessoa na sociedade, na família, no trabalho, na escola.
O que se passa hoje dentro das relações da mulher com as comunidades e na igreja também fica fácil de ser entendido neste "papo" descontraído, mas atento.
Teóloga feminista Ivone Gebara afirma que tradição masculina da Igreja ainda é muito forte. |
Ivone
esclarece, inclusive, ser errôneo falar em ‘uma maior participação da mulher na
Igreja’, como se as mulheres não estivessem entre aqueles que a constroem
diariamente. "Não se trata, portanto, de reinserção das mulheres na Igreja,
como se as mulheres tivessem que inserir-se num lugar que não é o seu. Dá até a
impressão de que a Igreja é uma realidade fora de nós”.
Para
além da discussão sobre feminicídio e outras formas de violência contra a
mulher no Brasil, a estudiosa mostra que essa análise não deve ser superficial,
mas chegar à raiz da questão. "[Os estados e as religiões] Não percebem que a
reprodução da violência contra as mulheres está ainda muito presente nos
processos educacionais (...) O que nós, pensadoras feministas, fazemos é
alertar as pessoas para não estabelecerem modelos teóricos e idealistas e
mostrá-los como metas absolutas a serem alcançadas. Isto não funciona”.
Para
o Dia Internacional da Mulher de 2015, celebrado domingo passado, 08 de março, apesar
do aparente retrocesso observado no mundo, nesses últimos anos, é preciso
reconhecer as conquistas e os avanços do movimento feminine, na visão da
teóloga. "[Neste 08 de março de 2015] Temos que celebrar os enfrentamentos
políticos de muitas mulheres que não hesitam em levantarem suas vozes contra a
violência da ‘cultura política’ vigente. Temos que celebrar as inúmeras redes
feministas que continuam seu labor de denunciarem os abusos dos poderosos e a
manipulação dos nossos corpos. Temos que celebrar as mulheres que frequentam as
igrejas e que são capazes de dizerem ao padre ou ao pastor ‘não estou de acordo
com o senhor’".
Confira
a entrevista que a teóloga Ivone Gebara concedeu com exclusividade à Adital.
Adital: Observamos
pronunciamentos do Papa Francisco em apoio a uma maior participação da mulher
na vida sacerdotal, embora saibamos que, em muitos casos, sua vontade esbarra
no conservadorismo da Cúria Romana. Podemos esperar alguma mudança concreta
nesse sentido para seu papado?
Ivone Gebara: Creio
que, antes de falarmos dos pronunciamentos do Papa Francisco sobre as mulheres,
é preciso lembrar três pontos para que tenhamos um pouco mais de clareza sobre
a situação atual da Igreja Católica Romana. O primeiro deles tem o objetivo de
recordar que a função das leis eclesiásticas e dos dogmas é de também exercerem
uma certa contenção na vida dos fiéis. Determina-se o que deve ser objeto de
crença para evitar a multiplicidade de interpretações e conflitos, que fragmentaram
e fragmentam a comunidade de fiéis. Entretanto, não se pode esquecer que leis,
dogmas e interpretações nascem em contextos históricos determinados. Estes são
mutáveis e nunca deveriam ser estabelecidos como normas absolutas ou como
vontade divina, como tem acontecido. Decorre daí o segundo ponto que se refere
ao fato de se legitimarem essas novas leis e crenças como vontade de Deus ou de
Jesus Cristo. Essas vontades, segundo muitos, são imutáveis. Estabelece-se
assim um argumento de autoridade pronunciado ou promulgado pelo magistério da
Igreja. E o último ponto que pode ser claramente observado é que esse
magistério é masculino e, em geral, idoso e celibatário. As mulheres não
participam diretamente dele como se, por ordem divina, elas devessem ser
excluídas. Essa estrutura e interpretação patriarcal, considerada sagrada,
dificulta mudanças mais significativas na atual cultura eclesiástica
transmitida ao povo. A partir daí, se pode situar a questão em relação às
mulheres.
O
Papa Francisco tem boa vontade, procura entender algumas reivindicações vividas
pelas mulheres, mas não tem condições de, vivendo dentro de uma tradição
sagrada masculina, dar passos revolucionários para, de fato, promover a
inovação necessária para o mundo de hoje. Ele é fruto do seu tempo, da sua
formação clerical e dos limites que a englobam. Ouso dizer que é a comunidade
cristã e, no caso, a católica romana, espalhada por tantos lugares, que
deveria, a partir de suas vivências, ir exigindo de seus líderes mudanças de
comportamento. Começar por baixo, embora os de cima também possam ajudar, na
medida em que forem mais sensíveis e acolhedores aos sinais de cada tempo e de
cada espaço, é um caminho para nos ajustarmos às necessidades atuais das
mulheres e dos homens do nosso tempo.
Adital: Em seu novo
livro "Evangelho e instituição", o monge Marcelo Barros afirma que a
Igreja Católica deveria retornar a suas origens (primeiros séculos), quando as
mulheres exerciam um papel mais ativo na Igreja. Na sua opinião, como deveria
ser essa reinserção?
IG: Penso
que a ideia de "retorno", no caso, retorno às origens cristãs, deve
ser revisitada, pois, muitas vezes, podemos cair em anacronismos, mesmo
involuntários. A referência às origens é uma espécie de saudade de algo bom que
se gostaria de ter. É uma esperança em forma de discurso sobre as origens. Em
geral, pensamos que o antes, o passado, as origens são sempre mais coerentes e
verdadeiras. A volta ao útero materno, por exemplo, é uma aspiração de pretensa
paz do desejo humano, como se 'naquele tempo' tudo estivesse bem. Na realidade,
nas origens, podemos encontrar muitas coisas, inclusive aberrações e
inadequações para o nosso tempo. Cada tempo é um tempo e tem suas grandezas e
suas misérias. O tempo "que se chama hoje" é o nosso tempo real e é
nele que devemos buscar novas formas de convivência, tendo ciência de que este
é, como outros, um tempo limitado. Não se trata, portanto, de reinserção das
mulheres na Igreja, como se as mulheres tivessem que inserir-se num lugar que
não é o seu. Aliás, a linguagem eclesiástica e a linguagem de muitos de nós
evidencia a dificuldade de acolhermos a Igreja como comunidade de irmãs e
irmãos vivendo na diversidade de situações. Às vezes, tenho a impressão de que
o termo igreja significa, para muitos, prioritariamente, a hierarquia, as
funções de poder e autoridade.
É
preciso afirmar que o que está acontecendo hoje tem a ver com um movimento
cultural e social mundial, que vem mostrando um protagonismo e um papel
feminino diferente daquele que conhecíamos até poucos anos atrás. Ser apenas
mãe, ou filha ou esposa ou ocupar-se de prendas domésticas já não corresponde à
realidade atual das mulheres. As identidades femininas estão passando por uma
mutação muito grande. Outro aspecto importante é o de perceber os limites da
pergunta sobre em que Igreja nós mulheres queremos nos inserir ou reinserir. Dá
até a impressão de que a Igreja é uma realidade fora de nós. Por isso, muitos
afirmam que "nós somos Igreja" e querem viver na prática esta afirmação.
Seria ela apenas retórica? A meu ver, sim e não. Sim, na medida em que o
discurso de muitos não corresponde aos comportamentos vividos no cotidiano das
relações humanas. Não, na medida em que se percebe o compromisso de muitos em
buscar caminhos de maior participação e igualdade nas relações da comunidade
eclesial. A questão da igualdade entre os seres humanos é insolúvel.
Falar
em igualdade significa buscar, a cada novo contexto e a cada novo momento da
história, sanar o egoísmo visceral que nos leva a preferir sempre nossos
interesses em detrimento dos outros. Criamos a escravidão de todos os tipos,
estabelecemos cores e etnias superiores umas às outras, sexos superiores a
outros, orientações sexuais mais normais do que outras. E quem está do lado do
poder e da normalidade não hesita em manter relações excludentes e culpabilizar
"os diferentes" por muitos males do mundo. Não há uma pré-definição
da igualdade. O que nós pensadoras feministas fazemos é alertar as pessoas para
não estabelecerem modelos teóricos e idealistas e mostrá-los como metas
absolutas a serem alcançadas. Isto não funciona. O que parece que tem surtido
algum efeito é colocarmo-nos em estado de educação contínua, uma educação que
desperte em nós o valor de cada ser, sem a tentação de querer justificar a
partir de visões hierárquicas pré-estabelecidas.
Papa Francisco já defendeu uma maior participação feminina na igreja, mas descartou a permissão das mulheres exercerem o sacerdócio. |
Adital: O que é a
Teologia Feminista? Como essa corrente de pensamento entende o mundo atual?
Quais os desafios nesse início de século XXI?
IG: O
grande esforço da maioria das teologias feministas tem sido o de denunciar o
absolutismo das interpretações bíblicas e teológicas do passado e ainda
vigentes na maioria das Igrejas. Interpretações absolutistas são aquelas que
usam Deus e as Escrituras para justificarem sua ideologia de manutenção de
poderes e privilégios religiosos, muitas vezes disfarçados com capas de
santidade e solidariedade. Esses poderes são exercidos em nome de Deus e são
controladores dos corpos femininos, tanto em nível individual quanto cultural e
social. O controle religioso dos corpos se dá, em primeiro lugar, no interior
da dimensão simbólica da vida simbólica, ou seja, na estrutura subjetiva, em
que valores e culpas se entrelaçam e tornam a pessoa cativa de um imaginário
imposto de fora para dentro. Jogar com a vontade de Deus para manipular corpos
querendo manter uma ordem imaginária denominada divina é impedir o direito ao
pensamento e à liberdade.
Afirmar
Deus como masculino, afirmar que existe uma vontade poderosa pré-existente,
justificar o sacerdócio masculino a partir do sexo de Jesus, valorizar o corpo
masculino como o único capaz de representar o corpo de Deus são afirmações teológicas
ainda vigentes que tocam, de forma especial, os corpos femininos. Estas
afirmações são, muitas vezes, produtoras de violência, de exclusão e do cultivo
de relações de submissão ingênua à autoridade religiosa. Infelizmente, nesse
começo de século, o espaço dado às teologias feministas é bem restrito. Seu
acesso aos centros de formação teológica oficial na América Latina é bastante
limitado. Por isso, está havendo uma migração significativa dos lugares de
produção teológica para fora das instituições oficiais, visto que as formas de
controle eclesiástico parecem desconhecer os avanços vividos pelas mulheres em
nível nacional e mundial.
Para Ivone Gebara, o espaço na igreja para as teologias feministas ainda é muito restrito. |
Adital: O mundo ainda
convive com os feminicídios (muitos dos quais acabam impunes), mutilações
genitais, pouca participação feminina na política... Quais os principais
obstáculos para a plena dignidade feminina hoje?
IG: A
produção da violência cultural e social contra grupos considerados inferiores
por razões as mais diversas é uma constante nas culturas humanas. A afirmação
da superioridade de uns em relação aos outros, as hierarquias de raça, gênero,
cultura, de saberes e poderes são parte da história humana. As mulheres foram e
são, em muitas culturas, consideradas seres subalternos, dependentes, objetos
da vontade masculina, muito embora, hoje, os discursos oficiais dos Estados e
das religiões falem de igualdade na diferença. Muitos adeptos dos discursos
igualitários são capazes se denunciarem, por exemplo, a mutilação genital, sem
dúvida, uma aberração e um crime, mas não são capazes de perceberem a produção
da violência contra os corpos femininos nos discursos de bondade veiculados
pelas diferentes expressões do Cristianismo. Denunciam os assassinatos de
mulheres, a violência física direta, os feminicídios, mas não percebem que a
reprodução da violência contra as mulheres está ainda muito presente nos
processos educacionais.
A
marca hierárquica excludente, presente em nossas relações, sem dúvida,
necessária à continuidade da atual forma de capitalismo, mantém socialmente
essa violência. Precisa dela e de outras para continuar a fabricar novas formas
de privilégio e exclusão social. As mulheres apesar das muitas conquistas dos
últimos anos ainda são no imaginário da cultura capitalista econômica e social
bons bodes ou cabras expiatórias para serem acusadas de incompetência nos
assuntos públicos. Essa cultura excludente, presente nas instituições sociais e
culturais, é, sem dúvida, obstáculo para que homens e mulheres construam novas
relações e reconheçam seus diferentes dons e saberes.
Adital: Alguns
movimentos feministas, de forma a obterem espaço, utilizam, como estratégia,
chocar a sociedade, expondo o corpo nu, autodenominar-se de
"vadias"... Como você entende essa forma de protesto? É válida,
válida com ressalvas ou colabora negativamente com o movimento feminista?
IG: Há uma
ingenuidade dos analistas dos movimentos sociais na medida em que pretendem
limitar os protestos e reivindicações às suas próprias concepções de decência,
do permitido e do proibido. É claro que nos chocamos com a quebradeira dos
grupos nas manifestações de rua e reclamamos quando isso atrapalha a nossa vida
cotidiana. É claro que o diálogo sobre as reivindicações seria o melhor
caminho. Mas nem sempre o sistema capitalista reconhece o melhor caminho e ele
mesmo incita à violência sem controle, aquela que deixa sair o pior de nós
contra os outros, aquela que é capaz de bombardear campos de arroz e destruir
obras de arte milenares, aquela que me leva a roubar meu melhor amigo e mandar
matar aquele que atrapalha meus planos políticos. Muitas formas radicais de
protesto das mulheres chocam-nos porque não estamos habituados a um
comportamento público das mulheres, sobretudo quando expõem o corpo nu como forma
de protesto.
O
corpo nu das mulheres continua sendo exposto para vender mercadorias
masculinas, para excitar desejos, mas esse nu é suportável pela maioria. Esse
nu aprovado pelo mercado dá dinheiro e favorece empreendimentos econômicos,
pode ser no máximo criticado por alguns religiosos puristas. Entretanto, quem
se perguntou por que esse grupo de mulheres se autodenominou de
"vadias"? Qual a sua história? Do que reclamam com sua irreverência?
O Google pode até dar uma resposta breve a essas pertinentes perguntas. Essas
formas de protesto, penso, não atingem o movimento feminista mundial, visto que
este é plural e tem formas variadas de expressão.
Adital: Durante as
últimas eleições brasileiras, alguns analistas políticos afirmaram que uma das
razões enfrentadas por Dilma Rousseff para sua reeleição deveu-se ao fato dela
ser mulher. A afirmação soa um pouco estranha, haja vista a presença de
mulheres na Presidência de países como Argentina, Chile, Alemanha... Na sua
opinião, essa afirmação faz sentido? Nós, brasileiros, ainda somos um país
machista?
IG: Creio
que, na maioria dos países do mundo, mesmo as figuras femininas tradicionais
fortes como Margaret Tachter e Indira Gandhi viveram os limites do poder
impostos pela condição feminina. De fato, há um certo susto de se ter uma
mulher no topo do poder de uma nação. De reclusa nos limites da vida privada
para a ascensão pública o percurso é grande demais. Talvez o título de rainha
seja até mais suportável porque envolvido com todos os aspectos fantasiosos do
passado e da atual diminuição real desse poder. Nesse sentido, é quase
espontâneo se atribuir ao governo de uma mulher deficiências, fraquezas e
outras coisas no estilo.
Dilma
Rousseff enfrenta, como outras mulheres, as dificuldades de estar no topo
político da nação. Entretanto, o que a maioria das pessoas não vê é que a
política de um país não depende apenas da/do presidente, mas depende,
igualmente, das forças econômicas e políticas em jogo, assim como da
participação dos cidadãos. Combinar políticas e propinas, interesses
corporativos e bem comum, partidos de interesses sectários com a administração
de um país de proporções continentais é um difícil jogo de xadrez. De fato, o
machismo persiste no Brasil, mas a falta de caráter e de visão do bem comum é
uma doença bem mais difundida e perigosa. Assola políticos e empresários,
contagia a classe média e as classes populares, se instala nas instituições
sociais e nas igrejas como praga a ser combatida diariamente.
Adital: No fim do
ano passado, assistimos à infeliz declaração de um parlamentar brasileiro, que
afirmou que "não estupraria" uma colega parlamentar "porque não
queria". Como você analisa esse e outros casos parecidos?
IG: A falta de caráter e de visão do
bem comum torna homens e mulheres cegos a qualquer visão humanista de respeito
a cada ser humano na igualdade e diferença de uns em relação aos outros. O
parlamentar brasileiro que usou essa e outras expressões durante sessões da Câmara mantém-se no poder
porque a cultura política brasileira
permite. Ele é útil ao' vale tudo', que se pode assistir nas ações e discursos dos políticos.
A falta de decorro parlamentar é moeda de troca de privilégios políticos e
satisfaz aqueles que buscam a justiça e a injustiça com as próprias mãos. Nessa
situação, as mulheres não estão isentas desses pecados, embora os cometam com
menor intensidade pública. Somos todas e todos essa mistura contraditória e
paradoxal e é dentro dela que podemos
encontrar caminhos que tornem a vida cidadã mais respeitada.
Papa tem boa vontade, mas não pode revolucionar papel da mulher da igreja
http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=84349
Paulo Emanuel Lopes
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