Sociedade e Disputa Geopolítica entre Rússia e Países Ocidentais (fonte no final do texto)
O 6º Princípio Fundamental do
Olimpismo (nenhuma
discriminação de qualquer tipo, incluídas por nacionalidade ou opinião política)
parece já ter sido esquecido há muito tempo. Na Grécia Antiga a competição
entre os melhores atletas fazia parar guerras e servia como ponte de
compreensão até entre inimigos recentes. Mas no século 20, os Jogos Olímpicos
foram convertidos em arma política.
Nos anos 1980, os EUA e aliados boicotaram os
jogos de Moscou como protesto contra tropas soviéticas que entraram no
Afeganistão a pedido do governo legítimo daquele país (bem diferente disso,
os Jogos Olímpicos de 1936 na Alemanha Nazista, com Hitler no palanque, foram realizados sem qualquer percalço,
sob os aplausos do mundo 'civilizado').
Dia 8/5/2016 o programa 60 Minutes da rede CBS levou
ao ar uma matéria sobre dopagem na
Rússia. As entrevistas eram conversações gravadas entre um ex-funcionário
da Russian Anti-Doping Agency (RUSADA) [Agência Russa
Antidopagem], Vitaly Stepanov, e o ex-diretor do laboratório antidopagem da
Rússia em Moscou, Grigory Rodchenkov. Aquele programa foi o 4º do que seria
uma longa série sobre a alegada existência de
um sistema de apoio 'estatal' à dopagem, nos esportes russos.
Poucos dias depois, o New York Times publicou uma
entrevista com Rodchenkov. Na entrevista aquele ex-funcionário disse que teria
havido, ativo nos Jogos Olímpicos de Sochi, um programa de dopagem apoiado pelo
estado, que seria orientado quase diretamente pelo presidente da Rússia.
Fato importante, mas
que não chamou a atenção da grande maioria dos 'analistas' internacionais foi
que aquela campanha 'jornalística', que começara pouco depois do
extra-congelamento nas relações russo-'ocidentais' de 2014, foi integralmente
construída em torno de 'depoimentos' de apenas três cidadãos russos,
interconectados e cúmplices numa cadeia de escândalos de dopagem – e que pouco
depois deixaram a Rússia para recomeçar a vida no 'ocidente'.
Uma corredora de meia-distância, de 29
anos, Yulia Stepanova, pode ser
considerada a instigadora de todo esse escândalo. O melhor resultado pessoal
dessa atleta em competições globais fora uma medalha de bronze no Campeonato de
Atletismo Europeu Indoor em 2011. No Campeonato Mundial
daquele mesmo ano, obteve a 8ª colocação. A carreira de Stepanova saiu
completamente dos trilhos em 2013, quando a Comissão Antidopagem da Federação
Russa de Atletismo desqualificou-a por dois anos, por haver constatado
"flutuações no sangue, no Passaporte Atlético Biológico da corredora".
Essas flutuações são consideradas prova de dopagem. Todos os resultados de
Stepanova desde 2011 foram invalidados. E ela teve de devolver o dinheiro dos
prêmios que recebera como corredora profissional nos anos 2011-2012.
Stepanova, que sofrera suspensão por dopagem,
foi a informante primária do jornalista da ARD[1] Hajo Seppelt, que começara a filmar um documentário sobre conduta
desviante e crime nos esportes russos. Depois de divulgado o primeiro
documentário da ARD, em dezembro de 2014, Stepanova deixou a Rússia
com o marido e o filho. Em 2015, solicitou asilo político no Canadá. Mesmo
depois de sua suspensão já ter acabado em 2015, Stepanova disse à Comissão daWorld
Anti-Doping Agency (WADA) (p.142 do relatório Nov. 2015 WADA Report)
que testara positivo para dopagem durante o Russian Track and Field
Championships em Saransk em julho de 2010, e pagara 30 mil rublos
(aproximadamente $1.000 USD à época) ao diretor do laboratório russo
antidopagem em Moscou, Gregory Rodchenkov, em troca de ele ocultar aqueles
resultados de testes.
Yulia Stepanova é casada com Vitaly Stepanov ex-funcionário
da agência russa antidopagem, RUSADA. Stepanov viveu e estudou
nos EUA desde os 15 anos, mas mais tarde decidiu retornar à Rússia. Em
2008, Vitaly Stepanov começou a trabalhar para a RUSADA como
controlador de dopagem. Vitaly conheceu Yulia Rusanova em 2009 no
campeonato nacional russo em Cheboksary. Stepanov diz agora que enviou uma
carta à WADA detalhando suas revelações em 2010, mas jamais
recebeu resposta. Em 2011, Stepanov deixou o cargo que tinha na agência RUSADA.
Fato que merece atenção é que Vitaly confessou que sabia que a esposa ingeria
substâncias proibidas, tanto enquanto ele ainda trabalhava para a RUSADA como
depois que deixara aquela organização. Vale lembrar que os testes de sangue de
Stepanova passaram a ter resultados positivos a partir de 2011 – i.e., depois
que o marido, funcionário especialista em antidopagem, deixou a RUSADA.
Sem preocupações, os Stepanovs, então já casados, aceitaram prêmios em
dinheiro, em competições profissionais, até que Yulia foi desqualificada. Daí
em diante, sem qualquer outra fonte de renda, Vitaly Stepanov optou por
procurar jornalistas estrangeiros para revelar "a verdade sobre os
esportes russos". No início de junho, admitiu que a WADA não
só ajudara sua família a mudar-se para os EUA, como também lhe pagara $30 mil,
como ajuda financeira.
E finalmente, a terceira figura na campanha
para 'revelar' o escândalo da dopagem nos esportes russos – o ex-chefe do
laboratório russo antidopagem em Moscou, Gregory
Rodchenkov. Segundo Vitaly Stepanov, seria ele o homem que vendia
drogas para melhorar o desempenho, ajudava a ocultar os sinais dessas mesmas
drogas, e foi quem surgira com a ideia conhecida como "doped Chivas mouth swishing"
(pg. 50) [aprox. "bochechar com (uísque) Chivas dopado, sem
engolir"], técnica que transforma homens em campeões olímpicos. Esse
moscovita de 57 anos é conhecido como o melhor no que faz. Formou-se na
Moscow State University com um Ph.D. em química e passou a trabalhar
no laboratório antidopagem em Moscou nos idos de 1985. Adiante trabalhou
no Canadá e em empresas petroquímicas russas, e em 2005 foi nomeado diretor do
laboratório nacional russo antidopagem.
Em 2013, Marina
Rodchenkova – irmã de Gregory Rodchenkov – foi considerada culpada
e condenada por vender esteroides anabólicos a atletas. O irmão também
estava sob investigação, acusado de fornecer drogas proibidas. Ameaçado de
processo, Gregory Rodchenkov começou a agir de modo estranho e foi várias vezes
hospitalizado e submetido "a exames por psiquiatra forense". Adiante
a corte recebeu comunicado médico segundo o qual Rodchenkov sofreria de
"desordem esquizotípica de personalidade" exacerbada por
estresse. Resultado disso, todas as acusações contra Rodchenkov foram
retiradas. Mas, muito surpreendentemente, esse homem diagnosticado como
portador de desordem esquizotípica de personalidade, cuja irmã fora condenada
por tráfico de drogas para turbinar o desempenho atlético, continuou no cargo
de diretor do único laboratório credenciado para operar na pela Associação
Mundial Anti-Dopagem [ing. WADA]!
Na verdade, Rodchenkov manteve o emprego até
os Jogos Olímpicos de 2014. Só foi demitido no outono de 2015, depois que
eclodiu o escândalo insuflado pela rede alemã ARD e os
Stepanovs. Em setembro de 2015, a ComissãoWADA acusou
Rodchenkov de destruir intencionalmente mais de mil amostras, para esconder a
dopagem em atletas russos. Pessoalmente, ele negou todas as acusações, mas
renunciou e mudou-se para os EUA, onde foi recebido calorosamente pelo
documentarista Bryan Fogel, que
então filmava mais um documentário 'sob medida' sobre
dopagem na Rússia.
No momento em que escrevo esse artigo, o
Comitê Olímpico Internacional [ing. International Olympic Committee
(IOC)] examina um relatório assinado
por "Fonte Independente", o professor canadense Richard H. McLaren, que acusou
toda a Federação Russa, não apenas atletas individuais, de cumplicidade no uso
de drogas para otimizar o desempenho. McLaren foi rapidamente convocado
para conversar com a WADA, depois que o NYT publicou entrevista
com Rodchenkov.
O objetivo desses movimentos é bem claro:
armar um 'relatório científico' a ser distribuído em meados de julho, que dará
'provas', ao IOC para banir a equipe russa dos Jogos Olímpicos
do Rio de Janeiro.
Em conferência de imprensa dia 18/7, o próprio
McLaren teve de reconhecer que no
prazo de apenas 57 dias, não conseguiria "identificar todos os atletas que
possam ter-se beneficiado da manipulação para esconder resultados positivos em
testes de dopagem". A lógica da Associação Mundial Antidopagem [ing. WADA]
é aqui bem clara: é indispensável que a Associação afaste dela qualquer
acusação de viés, antiprofissionalismo, mascaramento de fatos, manipulação de
resultados e/ou viés político antiesportivo e antiolímpico. Não importa
quantas distorções ou mentiras haja no 'relatório': sempre será relatório
assinado por "especialista independente". Ponto final. Mas
McLaren nem tenta ocultar que todo o 'relatório' é baseado no testemunho de uma
única pessoa – o próprio Rodchenkov, repetidas vezes apresentado como fonte
"confiável, com total credibilidade".
E Rodchenkov, claro, acusado pela própria
Associação Mundial Antidopagem de ter destruído 1.417 testes, e que está
ameaçado de ser deportado para a Rússia para ser julgado por crimes associados
à dopagem de atletas, viu ali uma oportunidade para se converter em
"testemunha valiosa" e "prisioneiro de consciência", mais
um infeliz perseguido pelo "regime totalitário de Putin na Rússia".
O privilégio de que
goza essa "comissão independente" – sobre cujo relatório o Comitê
Olímpico Internacional está decidindo o destino dos atletas russos aspirantes
ao título olímpico nos Jogos Rio-2016 – está em que as acusações que ali se
veem não serão examinadas pela justiça, nem as 'provas' podem ser contestadas
por advogados de defesa. Sequer se assegura ali a tradicional centenária presunção
de inocência até a conclusão do processo.
Pelo que já se conhece das declarações do
professor McLaren, não haverá acusação formal contra nenhum atleta russo
específico. Importante: os atletas podem competir, desde que se
declarem 'independentes', vale dizer, como não representantes da Rússia nos
Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Tudo aí é facilmente explicável, até a
'seletividade'.
Professor de Direito e há muito tempo membro
da Corte de Arbitragem Esportiva, o professor McClaren sabe bem que qualquer
acusação direta a indivíduos, feita publicamente e que resulte em "ato
significativo perante a lei" (como o impedimento de participar de Jogos
Olímpicos) pode ser e com certeza será contestada nos tribunais, nos termos da
lei internacional e considerada a presunção de inocência. Todas as provas
que a acusação use serão contestadas legalmente e, se houver nas acusações
qualquer fato que possa ser interpretado a favor do acusado, a Corte tem de
excluir o tal fato e os Procuradores de Justiça ficam impedidos de
considerá-lo.
McLaren é advogado e compreende tudo isso
muito bem. Centenas de processos
iniciados por atletas e que certamente resultarão em condenação dos
'especialistas' não apenas destruiriam sua reputação e o arruinariam
profissionalmente, como, além disso, serviriam de base para uma investigação
criminal mais do que bem servida de provas que levaria a acusação contra o próprio McLaren de ter intencionalmente
distorcido alguns fatos.
A seguir, a versão que McLaren está expondo.
Durante os Jogos Olímpicos de Sochi, um agente
do Serviço Federal de Segurança da Federação Russa [ru. FSB] de
nome Evgeny Blokhin teria trocado a urina de atletas russos que teriam tido
resultado positivo para dopagem, por amostras de urina
"limpa". Esse agente portaria um crachá de uma empresa de
manutenção de encanamentos, que lhe permitiria entrar no laboratório. Além
disso, há relatos de que Evgeny Kurdyatsev – chefe do Departamento de Registro
e Controle de Amostras Biológicas – trocaria as amostras durante a noite,
através de um "buraco de rato" na parede (!). No prédio ao lado,
estavam o homem que agora dá "testemunho confiável" – Gregory
Rodchenkov – e outros não identificados, que passavam para Blokhin novas
amostras 'limpas' a serem usadas para substituir as amostras originais. Se
a gravidade específica da urina limpa não coincidisse com o perfil original,
era "adaptada" com sal de mesa ou água destilada. Claro que em todos
os casos, o DNA era incompatível. E
tudo isso acontecia no único laboratório credenciado pela WADA para fazer testes de
antidopagem em toda a Rússia!
Como uma trama desse tipo seria apresentada em
qualquer tribunal do mundo? Temos testemunhas, mas a defesa não pode
interrogá-las? Não podemos provar que Blokhin é agente secreto, mas temos fé de
que sim, é? Não temos nenhum documento original – uma foto, uma declaração
assinada de interrogatório oficial de testemunhas – mas o homem nos confessou
seu crime? Nada garante que não seja criminoso ele também, mas...?! Nenhum
perito jamais examinou os e-mails que Rodchenkov nos trouxe,
mas temos fé que, sim, eram genuínos, que todos os fatos estão ali corretamente
narrados e que os nomes dos que teriam enviado as mensagens, sim, estão
corretos e perfeitos?! Em outras palavras: Sim. Não há como acusar atletas
limpos... Então acusamos e condenamos o governo do país cujo nome apareça
escrito nas camisetas de atletas limpos?! Simples assim?
Falando bem sinceramente, ainda não estamos
convencidos de que o movimento Olímpico teria caído tanto. Seria como dar adeus
à reputação da Associação Mundial de Antidopagem, WADA, do Comitê
Olímpico Internacional e a todo o sistema global de esportes. É possível que o colossal
problema da dopagem de atletas já tenha ultrapassado todos os limites razoáveis
e exija solução drástica e imediata. Mas de onde tiraram que essa solução tenha
de ser encontrada num único país, mesmo que seja um grande país, como a
Rússia?
Não seria mais
racional parar e examinar a história de muitos e muitos volumes
impressos de escândalos de dopagem em todos os países do
mundo? E, diante dos fatos que agora estão vindo à luz, não seria mais
racional começar por investigar a própria Associação Mundial de Antidopagem, WADA e seus
laboratórios credenciados em todo o mundo?
Para concluir, citamos abaixo a íntegra da
tradução [ao ing., aqui retraduzida ao português] da declaração do Comitê Olímpico Russo, em
resposta ao relatório da WADA:
"As
acusações contra esportistas russos que se leem no relatório assinado por
Richard McLaren são tão graves, que exigem investigação completa, com a
participação de todos os citados e envolvidos e referidos.
O
Comitê Olímpico Russo tem política de tolerância zero e apoia a luta contra
todos os tipos de dopagem. Estamos preparados para oferecer total
colaboração e para trabalhar juntos, se necessário, com qualquer organização
internacional.
Discordamos
total e completamente da ideia introduzida pelo Sr. McLaren, para quem banir
centenas de atletas russos limpos, impedindo-os de participar dos Jogos
Olímpicos Rio-2016, seria "consequência desagradável" aceitável das
acusações reunidas no relatório daquele professor.
As
acusações vêm baseadas exclusivamente no que disse Grigory Rodchenkov. Vêm
baseadas no testemunho de alguém que está no epicentro do mesmo esquema
criminoso – o que atinge não só a carreira e o destino de muitos atletas
limpos, mas também a integridade de todo o movimento Olímpico internacional.
A
Rússia sempre lutou contra a dopagem e continuará a lutar com todo o empenho no
plano do Estado, endurecendo as penas por qualquer atividade ilegal desse tipo,
sob a prescrição de punição inevitável.
O
Comitê Olímpico Russo apoia integralmente que se imponham as penas mais duras
contra qualquer pessoa que use ou estimule ou facilite o uso de substâncias
proibidas.
Ao
mesmo tempo, o Comitê Olímpico Russo – agindo em plena observância da Carta
Olímpica – defenderá e protegerá os direitos de atletas limpos. Atletas
que ao longo das suas carreiras – graças a treino incansável, talento e força
de vontade – lutam para realizar seus sonhos olímpicos não podem ter o futuro
determinado por acusações insubstanciais e infundadas e por atos criminosos de
vários indivíduos. Para nós, essa é uma questão de princípio." *****
[1] ARD, al., Arbeitsgemeinschaft
der Rundfunkanstalten Deutschlands, uma associação de emissoras de
radiodifusão pública na Alemanha, conhecida como Canal 1 [NTs].
http://blogdoalok.blogspot.com.br/2016/07/jogos-olimpicos-2016-ferramenta-da-nova.html
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