- Com foco no combate à corrupção, a decisão do STF para prender condenados em segundo grau, incentiva injustiças contra os brasileiros mais pobres
- Prisão em segunda instância amplia superlotação nas cadeias
Esmar Filho/CNJ
Ao menos 3,4 mil réus atuais devem ser presos, em um sistema prisional que opera 61% acima de sua capacidade nas cadeias brasileiras
Em setembro, o juiz foi um dos responsáveis pela anulação das condenações de policiais militares no massacre do Carandiru, sob o argumento de os agentes terem agido em legítima defesa ao matarem, há 24 anos, 111 presos no complexo penitenciário.
Em julho, Sartori e seus colegas rejeitaram o pedido da Defensoria Pública
de São Paulo pela reversão da pena de Affonso com base no princípio da
insignificância penal, entendimento comum na instância superior para
furtos de pequeno valor.
Em outros tempos, o réu, mesmo
reincidente, dificilmente seria obrigado a cumprir a pena, pois o
Superior Tribunal de Justiça costuma acolher a apelação nesse tipo de
caso. Mas a decisão do Supremo Tribunal Federal de impor a prisão de
condenados a partir da segunda instância deu a juízes como Sartori o poder para colocar, ou manter, cidadãos como Affonso atrás das grades.
Determinado em fevereiro deste ano, o
cumprimento da pena a partir do segundo grau foi estabelecido em
definitivo pelo STF em outubro, após um apertado julgamento de 6 votos a
5. Inspirada no combate aos crimes de colarinho-branco, a medida tem o
objetivo de diminuir o excesso de recursos protelatórios, especialmente
para políticos e empresários acusados de corrupção.
Entidades de defesa alertam, porém, que
as diferenças de entendimento entre as instâncias superiores e os
tribunais de Justiça acabam por favorecer a lógica do encarceramento em
um sistema com mais de 600 mil presos, número 61% acima de sua
capacidade, segundo relatório deste ano da ONG Human Rights Watch. Um
estudo da Fundação Getulio Vargas apontou que a prisão no segundo grau deve levar 3.460 réus atuais para a cadeia no Brasil.
Affonso agora aguarda o julgamento de seu recurso especial no STJ.
Pelas estatísticas, tem boa chance de ser bem-sucedido. Em setembro de
2016, foram julgados na instância superior 217 recursos apresentados
pela Defensoria paulista. Houve provimento total ou parcial em 117
casos, ou 54%. Quinze deles significaram a mudança na aplicação da
privação de liberdade aos condenados, que passaram do regime fechado
para semiaberto ou aberto.
No meio jurídico, o debate naturalmente
refletiu posições distintas entre entidades de acusação e de defesa. A
Associação Nacional de Procuradores da República classificou a decisão
como histórica e afirmou que ela configura “um marco importante para o
fim da impunidade”. A Defensoria Pública de São Paulo considerou que a
mudança, um “retrocesso para os direitos humanos”, viola a presunção de
inocência. A Ordem dos Advogados do Brasil apontou para o encarceramento de cidadãos inocentes.
Talvez influenciadas pela aprovação de
parte dos brasileiros à Operação Lava Jato, a despeito de seus excessos,
entidades da magistratura também comemoraram a decisão. Em nota, a
Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) avaliou que a nova
jurisprudência valoriza as decisões de primeira e segunda instância e
lembrou a permissão na França, Alemanha e Estados Unidos para o
cumprimento da pena antes do esgotamento dos recursos.
O defensor Rafael Muneratti, coordenador
do Núcleo Especializado de Segunda Instância e Tribunais Superiores em
Brasília, surpreendeu-se com a posição da magistratura. “Por ter o dever
da imparcialidade, ela não deveria assumir o lado da defesa ou da
acusação.”
Ele afirma que o sucesso da Defensoria na
reversão de penas mostra como nem todos os recursos são protelatórios,
principal argumento dos ministros do STF para defender a mudança. “E não
queremos entrar em uma guerra estatística. Não importa se revertemos
50% ou 1% das decisões. Se for 1%, haverá presos de forma injusta da
mesma forma.”
Para João Ricardo Costa, presidente da
AMB, a mudança não viola a presunção de inocência, pois respeita o duplo
grau de jurisdição. “O sistema atual possibilita uma infinidade de
recursos protelatórios, o que, de fato, motivou o Supremo a tomar essa
decisão.” Moro também comemorou. Em nota, afirmou que a nova decisão vai
colocar os condenados poderosos em pé de igualdade com os demais
cidadãos envolvidos em problemas na Justiça.
“Por causa da Lava Jato, percebemos
que há esse anseio pelo cumprimento rápido da decisão, mas não podemos
colocar em xeque uma garantia constitucional por causa de alguns réus
por corrupção”, alerta Muneratti. “Os acusados de colarinho-branco
sempre respondem em liberdade. Nos casos que defendemos, os condenados
estão presos desde o início.”
Preocupado com o aumento do número de presos em um sistema superlotado, o defensor vê no habeas corpus a principal solução para impedir uma prisão. “Infelizmente, uma decisão no STJ pode levar entre seis e oito meses.”
Em casos de detenções injustas, o
presidente da AMB confia na possibilidade de os tribunais analisarem a
situação e não iniciarem o cumprimento da pena antes do esgotamento dos
recursos. “A questão do princípio da insignificância pode ser
reconhecida no primeiro e segundo graus”, prevê Costa.
No caso de Affonso, Sartori parece ter feito vista grossa
para o princípio, assim como negligenciou as crueldades dos policiais
contra os presos do Carandiru. Na segunda-feira 31, uma reportagem da Folha de S.Paulo
apontou que o juiz foi liberado pela PM de qualquer investigação após
atropelar a motocicleta da consultora Joelma Ramos, em um acidente
ocorrido em 2012. Enquanto autoridades trocam deferências, ladrões
confessos de galinha, ou de salame, nem sempre têm perdão.
*Reportagem publicada originalmente na edição 926 de CartaCapital, com o título "A perseguição aos ladrões de galinha".
http://www.cartacapital.com.br/revista/926/prisao-em-segunda-instancia-amplia-superlotacao-nas-cadeias
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