Como Giorgio Agamben e Walter
Benjamin releram as observações cristãs sobre o dinheiro. Por que a psicanálise
o associa à matéria fecal, à “insuficiência de mim” e à guerra de todos contra
todos
por Josias Pires do Caminho pra Casa e Outras Palavras para
GGN - Sociedade e Reflexão Sobre Dinheiro
Imagem: Mark
Wagner
Por Mauro Lopes*
O filósofo italiano Giorgio Agamben, um dos relevantes protagonistas do pensamento crítico na virada do século XX para o XXI disse numa entrevista em 2012 que “Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro” (ver em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512966-giorgio-agamben). A afirmação de Agamben inspirou-se em outro filósofo, este um protagonista da primeira metade do século XX, um pensador fora da curva, Walter Benjamin. Em seu curto e denso “O Capitalismo como Religião”, de 1921 (ver em http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/garrafa/garrafa23/janderdemelo_capitalismocomo.pdf), Benjamin escreveu que o capitalismo é em si mesmo a religião mais implacável que já existiu, e promove um culto ininterrupto ao Dinheiro, “sem trégua nem piedade”, uma religião que não visa a reforma da pessoa, “mas seu o seu esfacelamento”.[1]
O filósofo alemão sugeriu uma
comparação entre as imagens dos santos das religiões e as cédulas de dinheiro
de diversos países –ele não imaginava, à época, que este Deus-dinheiro estaria
diretamente louvado nas cédulas nos EUA (In God we Trust, em Deus
Confiamos) e, desde 1980, no Brasil, onde lê-se em todas as notas a frase de
adoração à moeda corrente: Deus seja louvado.
Ambos foram influenciados por um dito
de Jesus, que está no centro da liturgia católica do 8º Domingo do Tempo Comum
(26), às portas do período quaresmal que antecede a Semana Santa e a Páscoa:
“Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro.” O texto proclamado é do Evangelho
de Mateus (Mt 6,24-34). A oposição entre Deus e o dinheiro é um tema
central ao longo da história e, para Jesus, a relação de cada qual com o
dinheiro é definidora de sua relação com as outras pessoas e a vida.
Como essa questão aparece na vida das
pessoas? A psicanálise procurou investigar a relação entre o ser humano e o
dinheiro e chegou a conclusões que podem soar surpreendentes e inacreditáveis
num primeiro momento. Como apontou o sacerdote jesuíta e teólogo espanhol
Carlos Domingues Morano, dinheiro é um assunto crucial, apesar de muitas vezes
escamoteado -como o sexo. Na verdade, o tema nunca é “só dinheiro”. As relações
entre os homens/mulheres com o dinheiro comportam dimensões nem sempre lógicas,
que extrapolam o discurso racional mais ou menos organizado –é sempre “algo
mais” que dinheiro.[2] Na relação das pessoas com o
dinheiro, revelou-nos a psicanálise, “está também implicada uma ‘questão de
amor’; dito em termos mais freudianos, uma questão de ordem libidinal,
inconsciente e com raízes na infância. Isso nos permite compreender, entre
outras coisas, porque, assim como ocorre com a sexualidade, o dinheiro provoca
tantas reações de dissimulação, falso pudor e hipocrisia.”[3]
Há uma questão oculta que Freud trouxe à tona –e
causou enorme mal-estar: a intimidade entre nossa relação o dinheiro e a fase
da libido anal, relacionando-o com os excrementos.
O valor nodal do dinheiro para os
adultos é, descobriu Freud, análogo ao altíssimo valor que os excrementos
possuem para as crianças. Outro psicanalista, Sandor Ferenczi, do grupo de
Freud, demonstrou o caminho passo a passo pelo qual a criança efetua a
sublimação do conteúdo anal até chegar, finalmente, à transmutação simbólica em
dinheiro. “A matéria fecal vai passando por uma série de substituições, nas
quais vai progressivamente distorcendo a primitiva satisfação auto
erótica relacionada com a defecação: o barro, a areia, a pedra, o jogo com
bolinhas de gude e botões todos objetos que proporcionam tanta satisfação à
criança que facilitam a substituição do fétido, duro, mole pelo inodoro, seco
duro.”[4] O dinheiro ingressa nessa cadeia de
sublimações por um caminho complexo até desvincular-se de toda a aparência com
sua “fonte original” e permitir o surgimento da máxima de que o
dinheiro não fede (pecunia non olet).
A relação entre as fezes e o dinheiro pode parecer
um absurdo num primeiro momento. Mas, se observamos com mente aberta, veremos
que são abundantes e recorrentes as imagens e símbolos que desnudaram ao longo
da história relação que os homens estabelecem entre as fezes e o ouro ou o
dinheiro. Uma delas é a figura do “cagador de ducados” que está representada
nos portais de bancos alemães. São inúmeras as expressões populares que
consagram esta associação sem que nos demos conta disso. Quando uma
pessoa tem muito dinheiro dizemos que está “podre de rica”; se o dinheiro tem
origem suspeita, falamos em “dinheiro sujo” e, ao contrário, se a pessoa está
sem dinheiro, dizemos que está “limpa”; ou que está “apertada”.
Esta relação foi capturada mais de
mil anos antes de Freud numa intuição genial do bispo Basílio de Cesareia, em
meados do século IV. São Basílio decretou: o dinheiro é o cocô do diabo. A
expressão foi deixada de lado pelos cristãos séculos a fio até que São
Francisco, no século XII, mencionou Basílio; agora, ela foi novamente posta á
luz pelo Papa Francisco em fevereiro de 2015, apesar de ele preferir a palavra
“esterco”, talvez menos crua. Clique e veja o vídeo em https://www.youtube.com/watch?v=C3TtJH1Jx6U , em
que o Papa menciona a expressão de Basílio (Francisco trata do assunto entre
1min50 e 2min30).
Como se dá esta articulação
dinheiro-fezes? A psicanálise explorou as relações entre as dinâmicas de possessão,
características da fase anal, e de propriedade, fundante da
civilização ocidental e especialmente do capitalismo.
Quando uma criança perde suas fezes
sente a dor de ter deixado escapar algo que lhe era tão essencial que estava
dentro de si, era parte de seu corpo, mas que não mais consegue por de
volta; isto é a possessão. A propriedade refere-se
a objetos externos, mas que deveriam me pertencer, “coisas que de fato estão
fora, mas simbolicamente estão dentro”. São objetos revestidos de “qualidade do
eu”. Para muitas pessoas, talvez a imensa maioria no capitalismo, o dinheiro
reveste-se desta qualidade do eu. Isso origina processos
intensos de defesa e projeção. Perder dinheiro para essas pessoas é muito
mais que perda de algo externo, exterior, “mas sim de algo que foi previamente
in-corporado”, ou seja, algo que se tornou parte de mim. A posse e controle do
dinheiro têm o mesmo papel que o controle da atividade defecatória para a
criança diante do mundo exterior. Uma “relação regressiva com o dinheiro ou com
a propriedade de objetos” fica impregnada pela dimensão possessiva (retentiva)
da fase anal.[5]
O resultado é avassalador: o amor ao
dinheiro, quando extravasa suas funções de adaptação à realidade, acaba
expressando uma dimensão infantil da afetividade, o que implica uma dominância
do narcisismo, um desenvolvimento truncado da afetividade (da relação com o outro,
da capacidade de amar e/ou odiar) e do autorrespeito e respeito pelo outro.[6] Esta infantilização narcísica dos
ricos ou, dos “novos ricos”, numa expressão recorrentes de Basílio, é
facilmente verificável na convivência com eles e espalha-se em ondas pela
indústria do entretenimento, especialmente o cinema feito para o grande
público.
Imagem: Mark Wagner
Ter e reter dinheiro são tentativas
continuadas de encobrir as carências internas e conquistar segurança. Lembro-me
de uma conversa com um consultor de investimentos sobre um casal, cliente
do banco em que ele trabalhava. Eles haviam feito uma série de contas em
planilhas (como se a vida pudesse ser contida em planilhas Excel) e concluído
que quando tivessem R$ 20 milhões em aplicações financeiras (excluídos bens
como casa e carros) poderiam finalmente “desestressar” e olhar com
tranquilidade para a vida. Esta posição remetia-os a frequentes crises de
insegurança e angústia extrema, pois como escreveu Erich Fromm, “se sou o que
tenho e o que tenho se perde, então quem sou?”[7]
Ou, expressando Fromm de maneira complementar: se
sou o que tenho e nunca tenho o que considero suficiente, sempre haverá uma
“insuficiência de mim” que precisa ser coberta e recoberta com necessidade de
acúmulo cada vez maior enquanto o fosso da insegurança aprofunda-se, na medida
em que a possibilidade apavorante da perda de dinheiro para outro é um fantasma
permanente. É uma vida em estado de guerra permanente para defender o que é
“meu” contra aquele que deseja apropriar-se, podendo ser desde um competidor,
políticas públicas de um governo que deixam de favorecer o crescimento de minha
fortuna, os pobres que se mobilizam para tomar dinheiro do governo que a mim
pertence “de direito”. Pois o capitalismo garante: tenho direito a possuir tudo
e tudo reter para mim, sem limites.
Sim, o capitalismo é, numa linguagem
popular, o encontro da fome com a vontade de comer. Nele, esta
condição pulsional presente na vida de cada ser humano é organizada como
um sistema social que alcançou, na expressão de Benjamin, a
dimensão suprema de um culto organizado e sistemático. O
psicanalista austríaco Otto Fenichel demonstrou como, antes de tudo, a função
real do dinheiro numa sociedade determina o alcance e a intensidade das
tendências pulsionais de retenção. Tais processos acontecem em sociedades
determinadas com estruturas econômicas, sociais e culturais determinadas, com
uma Igreja determinada e, portanto, alcançam dimensões que, levando em conta as
escolhas e histórias individuais, situam-nas num contexto geográfico-temporal
preciso.
Portanto, a “mobilização para a
guerra” que garanta a cada indivíduo o seu “direito supremo à retenção” é o
mantra do capitalismo e “mobiliza a hostilidade como tendência a despojar o
outro, de modo a fazer com que o desejo de fraudar, explorar e frustrar os
outros acabe se convertendo numa autêntica norma cultural.”[8] Essa hostilidade torna-se a base
relacional que se reproduz em todas as relações, mesmo as mais íntimas: assim,
por exemplo, o encontro com o outro ou a outra para a vida amorosa e o casamento
converte-se numa série de cálculos e contratos e precauções para a
possibilidade futura de separação e rompimento.
A dissonância absoluta entre o amor
pelo dinheiro e o amor a Deus proclamada por Jesus e como ela atinge dimensões
dramáticas no interior de um sistema que no qual o dinheiro ocupa o lugar de
Deus. Trata-se de uma incompatibilidade radical, apesar de todos os esforços
dos rigoristas e integristas católicos, dos neopentecostais e outros cristãos
para amenizar as palavras de Jesus e relativizá-las: “Não é possível amar a
Deus, isto é, amar a generosidade, a entrega, a solidariedade, a compaixão e a
misericórdia e ao mesmo tempo amar o dinheiro, isto é, amar o tomar tudo para
si, a acumulação que é a base de toda a injustiça e de todo o desamor: fome,
guerra, exploração, morte etc.”[9]
É o que tem feito seguidamente o Papa
Francisco. Uma das marcas de seu pontificado é a denúncia da submissão ao
Deus-dinheiro. A primeira vez em que explicitou sua postura foi dois
meses depois de sua posse. Em maio de 2013, ele afirmou, num discurso (ver em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/520267-nao-ao-fetichismo-do-dinheiro-e-a-ditadura-da-economia-afirma-papa-francisco) que indicou a revolução nascente no Vaticano,
que no capitalismo “criamos novos ídolos; a adoração do antigo bezerro de ouro
encontrou uma nova e impiedosa imagem no fetichismo do dinheiro e na ditadura
da economia sem rosto nem propósito verdadeiramente humanos” e que a base deste
culto ao Deus-dinheiro está “na relação que temos com o dinheiro, em aceitar o
seu domínio sobre nós e sobre as nossas sociedades”. Três anos depois,
numa entrevista (ver em http://www.ihu.unisinos.br/558971-o-deus-dinheiro-o-primeiro-terrorismo-segundo-o-papa-francisco-entrevista-com-remi-brague), em agosto de 2016, o Papa acentuou: “No centro da
economia mundial está o deus Dinheiro, e não a pessoa, o homem e a mulher”.
Na mensagem (ver em http://www.ihu.unisinos.br/564675-a-mensagem-quaresmal-2017-do-papa-francisco-texto-completo) para a Quaresma de 2017, período que se abre com
a Quarta-feira de Cinzas Francisco foi taxativo: “A ganância do dinheiro é a
raiz de todos os males”.
Se para os cristãos, o amor não é apenas um
preceito, mas é o conteúdo sobre o qual o cristianismo está edificado, se é a
“pedra angular”, o apego ao dinheiro, fonte de desamor, não se restringe a um
problema ético, mas é um ataque direto à fé. A fidelidade a Deus fica
interditada para aquele que não realiza a escolha por Ele e, por caminhos
explícitos ou cheios de sombras e ilusões e autoengano, opta pela
adoração à coisa: o dinheiro.
Por isso as religiões estão profundamente abaladas
em seu fundamento na contemporaneidade e, muitas delas, ou tendências poderosas
em seu interior, como no caso da Igreja Católica, realizam explicita ou
implicitamente operações de substituição de um culto pelo outro, colocando o
dinheiro no lugar de Deus. Tornam-se promotoras da tendência pulsional
identificada por Jesus e estudada à profundidade pela psicanálise e
igrejas-sucursais da “religião oficial”: o capitalismo.
*Editor
do blog Caminho pra Casa
__________________________
[1] Benjamin,
Walter. O capitalismo como religião. São Paulo, Boitempo Editorial,
2013, p. 22
[2] Morano, Carlos Dominguez. Crer depois de Freud. 3ª edição, São Paulo, Edições Loyola, 2003, p.233
[3] Ibid. Morano, 2003, p. 234
[4] Ibid. Morano, 2003, p. 236
[5] Ibid. Morano, 2003, p. 239
[6] Ibid. Morano, 2003, p. 240
[7] In Morano, 2003, op cit., p. 240
[8] Ibid. Morano, 2003, p. 243
[9] Ibid. Morano, 2003, p. 246
[2] Morano, Carlos Dominguez. Crer depois de Freud. 3ª edição, São Paulo, Edições Loyola, 2003, p.233
[3] Ibid. Morano, 2003, p. 234
[4] Ibid. Morano, 2003, p. 236
[5] Ibid. Morano, 2003, p. 239
[6] Ibid. Morano, 2003, p. 240
[7] In Morano, 2003, op cit., p. 240
[8] Ibid. Morano, 2003, p. 243
[9] Ibid. Morano, 2003, p. 246
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