por *Lucas
Coradini para Pragmatismo Político - Sociedade e Ensino Médio no Brasil
A Medida Provisória que reformula o ensino médio, agora Lei 13.415/2017,
tem gerado inúmeras desconfianças e um debate controverso, sofrendo críticas
por parte dos profissionais da educação, especialistas da área, e
principalmente pelos estudantes de todo o país, o que tem levado o governo a
investir pesadamente em publicidade para o convencimento acerca do tema.
Não restam dúvidas, contudo, sobre a necessidade de aperfeiçoar o ensino
médio. Escolas sucateadas, professores mal remunerados, ausência de docentes
com formação específica em inúmeras áreas são alguns dos predicados que remetem
aos baixos índices educacionais brasileiros. A baixa qualidade do ensino
oferecido em grande parte das escolas públicas tem alijado os jovens de um
futuro promissor, tornando-os incapazes de uma inserção produtiva no mercado de
trabalho tanto quanto impossibilitado o prosseguimento dos estudos em nível
superior. É a escola do “nem-nem”, que não prepara nem para o trabalho, nem
para a vida. Não raras vezes, em meio a tamanha precariedade, as escolas têm se
resumido a um “depósito de jovens”, capazes de garantir por algumas horas a
permanência dos estudantes enquanto seus pais trabalham, num ambiente em que é
impossível desenvolver qualquer coisa que se aproxime do que entendemos por
educação.
Nesse contexto, há urgência em definir medidas que reconduzam a educação
pública a um patamar aceitável, com caráter verdadeiramente emancipatório,
capacidade para ser um dos pilares de desenvolvimento do país, e de forma
acessível a todos, conforme preconiza a nossa Constituição. Por que então as
críticas à atual iniciativa em reformular esse modelo, que tem se mostrado tão
fracassado? Para responder a essa questão, traz-se à discussão alguns pontos da
reforma:
A primeira e mais evidente fragilidade do novo ensino médio diz respeito
ao currículo dividido em duas partes: uma parte comum de 1800 horas e outra
dividida em cinco itinerários, em que o estudante deverá cursar aquilo que a
escola ofertar. E é importante frisar que a maioria das escolas não possui a
mínima condição de proporcionar os cinco itinerários formativos, o que torna a
possibilidade – ou liberdade, como diz a propaganda do governo – dos estudantes
escolherem seus itinerários uma grande falácia. Menor ainda é a capacidade de
ofertar o itinerário formativo do ensino técnico, que requer estrutura
específica de laboratórios, equipamentos e materiais didáticos, uso de
tecnologias, além de professores especializados nas diferentes áreas técnicas.
A reforma começa mal ao vender aquilo que não é capaz de entregar. Para
viabilizar esse modelo seria necessário um massivo investimento na estruturação
das escolas de todo o país e uma ampla contratação de professores, uma
realidade distante com a atual perspectiva de um orçamento congelado por vinte
anos, como estabelecido recentemente através emenda constitucional.
Para dar conta dessa lacuna, o que se propõe para o itinerário de
formação técnica é a oferta por meio de parceria com o setor privado de ensino,
servindo-se do recurso público do FUNDEB. Aqui reside outro ponto de polêmica:
pretende-se retirar recurso do ensino fundamental, da educação infantil e das
creches – igualmente precarizadas – para “comprar” vagas no setor privado,
muito possivelmente nas instituições do sistema “S” (SENAC, SEBRAE, SENAR,
SENAI, SENAT, etc.). Além disso, cai a exigência de professor formado na área,
flexibilizando a possibilidade de lecionar àqueles que atestarem “notório
saber” em qualquer habilitação técnica. É a precarização da atividade docente
em níveis inimagináveis.
Somente esses elementos seriam suficientes para colocar sérias dúvidas
na capacidade da reforma produzir alguma melhora em nosso sistema de ensino.
Mas há pontos ainda mais controversos.
Nessa nova modelagem composta por um ciclo comum e itinerários
formativos, é prevista ainda a possibilidade de concessão de certificados
intermediários de qualificação para o trabalho, módulos com terminalidade
específica. Em outras palavras, o estudante que cumprir um “módulo” – o ciclo
comum, por exemplo – poderá obter um certificado parcial. Com os atuais índices
de evasão escolar no ensino médio (maior do que em qualquer outro nível), em um
país em que trabalhar é um imperativo para grande parte dos jovens, a
certificação parcial é a carta branca para a interrupção precoce dos projetos
educacionais em desenvolvimento. Especialmente daqueles pertencentes às camadas
mais desfavorecidas. O que subjaz essa proposta é a diminuição do papel do
Estado em relação à oferta de uma educação global, capaz de preparar para o
trabalho ou para a universidade, aumentando as fileiras de trabalhadores
semiespecializados. Percebe-se aqui certa natureza liberal e mercadológica da
reforma, retomando o sentido da educação para a classe trabalhadora
subalternizada no processo produtivo contemporâneo, reservando-lhe um lugar
muito específico na atual divisão social do trabalho.
Ainda sobre as mudanças no currículo, as únicas disciplinas obrigatórias
nos três anos do ensino médio serão português, matemática e inglês. Todas as
outras, geografia, história, sociologia, filosofia, artes, educação física,
física e química, por mais estranho que possa parecer, não serão obrigatórias, podendo
ser abordadas de forma “diluída” nos itinerários formativos. Como bem descreveu
Mônica Ribeiro, do Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio, apropriando-se
do conceito do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, estamos diante do ensino médio
“líquido”. Um retrocesso que desconsidera o processo histórico que levou à
inclusão destes componentes nos currículos e a importância que reside em cada
um. Ao não serem obrigatórios, assumem um caráter acessório, tornando o
currículo escolar mais pobre, frágil e incompleto, definitivamente alicerçado
na lógica da formação aligeirada e de caráter instrumental.
Resolve-se o problema da falta de professores de determinadas
disciplinas pela supressão da obrigatoriedade destes componentes, diluindo-os
nos itinerários formativos definidos em grandes áreas do conhecimento. Não que
o rompimento com a lógica da segmentação do currículo disciplinar, dividido em
“caixinhas” incomunicáveis, seja equivocada. Mas aqui vê-se um risco iminente
de atenuar a ausência de professores com formação específica por docentes
multifuncionais, capazes de abraçar uma “área” inteira. A ideia de trabalhar o
currículo em áreas do conhecimento é interessante, e vai ao encontro do que o
Exame Nacional do Ensino Médio tem exigido em termos de relacionamento de
conteúdos numa abordagem transdisciplinar, mas dependendo da forma como esse
currículo for operacionalizado nas escolas – tipicamente com quadros
incompletos – pode representar o agravamento do atual cenário de ausências.
Tratam-se, como vemos, de mudanças profundas na estrutura do ensino
médio tal como o conhecemos. Apesar da urgência na necessidade de traçar
medidas que o qualifiquem, são mudanças que requerem um amplo debate com
aqueles que há décadas têm se dedicado sobre o tema, o que a força da medida
provisória suprime por completo. É preciso considerar o acúmulo de conhecimento
empreendido até aqui e, mais do que isso, lançar um olhar sobre as diferentes
experiências educacionais desenvolvidas ao longo da história. Nesse sentido,
não há como não mencionar o modelo de ensino médio integrado à formação técnica
que os Institutos Federais têm realizado em todo o país, desde 2008,
reconhecido pelos melhores resultados em diferentes indicadores educacionais, à
frente até mesmo das escolas privadas. Trata-se de um modelo exitoso de ensino
médio, público, gratuito, desenvolvido pela rede federal de ensino, mas
curiosamente ignorado na proposta que por hora se apresenta.
Segundo a última avaliação do Programa Internacional de Avaliação de
Estudantes (PISA), realizado pela Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), se fosse um país, a Rede Federal estaria
entre os primeiros colocados nas áreas analisadas. Em ciências, a Rede Federal
recebeu 517 pontos, bem acima da média do Brasil – que soma as notas obtidas
pelos estudantes das redes Federal, Estadual e Particular – que foi de 401. Se
fosse um país, a Rede Federal teria ficado na 11.ª colocação, à frente de
países como Coreia do Sul, Estados Unidos e Alemanha. Na área de linguagens, a
pontuação da Rede Federal foi de 528 pontos, suficiente para deixá-la na
segunda colocação entre os 70 países e territórios analisados, ficando atrás
apenas de Singapura. Em matemática, a nota da Rede foi 488, bem acima da média
geral do Brasil, que foi 377 pontos. Qual o segredo destes expressivos
resultados da rede federal? Professores valorizados com planos de carreira
equivalentes ao das universidades, estrutura física compatível, atividades de
pesquisa e extensão associadas ao ensino e, principalmente, uma proposta
pedagógica que dá um outro caráter para o ensino médio aliado com formação
técnica: o princípio da integração.
O ensino médio dos Institutos Federais do ponto de vista filosófico
encontra-se em posição diametralmente oposta ao novo ensino médio, ao encarar o
trabalhador em suas múltiplas dimensões e o trabalho como um princípio
educativo. E entender o trabalho como princípio educativo significa pensar o
conhecimento à luz dos processos produtivos modernos e contemporâneos, tornado
o saber algo apropriado por aquele que aprende. Por uma circunstância social e
histórica brasileira, entende-se que o ensino técnico destina-se
fundamentalmente à classe trabalhadora, que é quem em regra busca uma educação
profissional, mas o currículo integrado não cabe nesses limites. Isto porque a
integração não é uma questão didático curricular, mas antes de tudo uma questão
epistemológica, instrumentalizando os seus egressos tanto para o mercado de
trabalho quanto para o aprofundamento dos estudos, aliando ensino propedêutico
e formação técnica com os princípios da emancipação, da formação crítica e
reflexiva, da formação humanista, promovendo indivíduos capazes de transformar
a si e à sociedade, e não apenas para alimentar uma demanda do mercado.
Isto explica também os melhores resultados dos Institutos Federais no
Exame Nacional do Ensino Médio e vestibulares em geral. No último ranking do
ENEM que incluiu as escolas técnicas federais com ensino médio integrado,
realizado em 2015 (em 2016 estas escolas foram misteriosamente suprimidas do
ranking), o melhor desempenho foi do Instituto Federal do Espírito Santo, à
frente de instituições privadas e das escolas militares, que tradicionalmente
ocupavam as melhores posições. Isto, em um cenário de capilaridade e interiorização
dos campi pelos diferentes rincões do país, do Alegrete, no pampa gaúcho, à
Coari, no interior do Amazonas, passando por periferias e zonas rurais, e com
um sistema de ingresso caracteristicamente inclusivo, com reserva de vagas por
cotas étnico-raciais e cotas para egressos de escolas públicas, o que não faz
reunir propriamente a “crème de la crème” dos estudantes brasileiros. E, ao
alçar com sucesso os seus egressos ao nível superior, os Institutos Federais
não deixam de lado o seu papel de formar técnicos para o mercado, mas
desenvolvem o princípio da verticalidade, contribuindo também para a elevação
da escolaridade – o que é igualmente importante e necessário – além de
propiciar a inúmeras famílias das camadas menos favorecidas a, talvez única,
possibilidade de mobilidade social.
A pergunta que deveríamos nos fazer então é: por que em vez de replicar
o modelo exitoso de ensino médio que já possuímos, optaríamos por um modelo que
desde já apresenta-se tão problemático e ainda implica em deslocamento dos
recursos públicos para o setor privado? A quem efetivamente serve essa reforma?
Ao que parece, a opção entre o modelo de ensino médio integrado,
desenvolvido pelos Institutos Federais, e o modelo do novo ensino médio,
segmentado em itinerários formativos, certificações parciais, e professores sem
formação é, antes, a manifestação de um modelo de Estado em maior ou menor grau
comprometido com a qualidade da educação pública e a elevação da inserção
produtiva da classe trabalhadora. É, em última análise, uma opção entre a
educação como motor do desenvolvimento, sintonizada com os arranjos produtivos
locais e comprometida com princípios pedagógicos emancipatórios, ou uma
educação prescritiva, instrumental, voltada para demandas imediatas do mercado
e nem sempre associados ao desenvolvimento humano, econômico ou social que
ensejamos.
*Lucas Coradini é mestre em Sociologia, doutor em
Ciência Política, e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Sul e colaborou para Pragmatismo Político.
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