A partir do momento em que a Chesf deixar de ser o que é no Nordeste, a
Eletronorte deixar de ser o que é para o Norte e a Eletrosul também deixar de
ser o que ela é para o Sul, a sociedade como um todo vai perder. São os riscos
de ter apagão, de a tarifa de energia subir e de se perder tarifas sociais
que hoje são colocadas para a população de baixa renda
Fabiola Latino Antezana aponta riscos para o consumidor e alerta sobre
necessidade de combate à política de privatização
por Cristiane Sampaio
para Brasil de Fato- Sociedade e Energia Elétrica no Brasil
Fabíola Latino Antezana, diretora do Sindicato dos Urbanitários no
Distrito Federal (STIU-DF) / Henrique Teixeira/STIU-DF
O
setor elétrico vem sendo apontado como um dos mais visados pelo governo de
Michel Temer e por empresas multinacionais quando o assunto é privatização.
Alvo de três consultas públicas abertas recentemente pelo Ministério das Minas
e Energia, o segmento caminha a passos largos rumo a um modelo que pode
comprometer o acesso da população aos serviços.
A
avaliação é de Fabíola Latino Antezana, diretora do Sindicato dos Urbanitários
no Distrito Federal (STIU-DF). “A sociedade vai perceber a privatização
principalmente na qualidade do serviço prestado”, alerta.
Engenheira
florestal de formação e servidora da Eletronorte, Antezana salienta, entre
outras coisas, a importância de garantir o fortalecimento das estatais do ramo,
destacando que a venda das empresas compromete não só o atendimento e o bolso
do consumidor, mas também a preservação do meio ambiente, o desenvolvimento
local e a própria soberania nacional.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a sindicalista alertou a população para as armadilhas do
discurso oficial sobre a privatização. “Precisamos fazer uma disputa no sentido
de mostrar todas as incoerências que esse modelo está trazendo”, diz.
Confira
abaixo os principais trechos da entrevista.
Brasil de
Fato: A gente vive um momento de muitos riscos evidentes para o setor público
em geral e, notadamente, o setor elétrico está na mira do atual governo. Quem
são os personagens do cenário político-econômico que têm interesse nesse
segmento e por que o setor é tão visado por eles?
Fabíola
Latino Antezana: Tudo
isso se iniciou nos processos de privatização na década de 1990 porque, quando
o marco regulatório foi feito, no inicio de 2000, ele permitiu a entrada do
capital privado no setor elétrico. Então, as multinacionais já têm uma inserção
bem grande dentro do modelo setor elétrico brasileiro.
Todo
o processo de expansão e geração só se dá mediante parcerias público-privadas,
em que a empresa estatal entra com, no máximo, 49%, e a privada, com 51%. A
estatal ganha o quê?
Uma flexibilização na Lei 8.666, que trata das
licitações, facilitaria os empreendimentos, e, com isso, a [iniciativa] privada
ganha tudo, porque quem ainda detém todo o conhecimento sobre engenharia
e biomas, por exemplo, de onde o setor elétrico atua, são as empresas
estatais. Então, nós temos o conhecimento, o know-how, conhecemos
o meio ambiente, os movimentos sociais com os quais atuamos, e a empresa
privada se apropria disso tudo.
De
2004 para cá, as privadas se apropriaram de todo o lucro que era possível nas
partes em que elas entraram, que foram as áreas de distribuição e
comercialização de energia elétrica. Elas não conseguiram entrar com tanta
ênfase na geração de energia e na transmissão, que é o que estão atacando
agora.
O
que elas querem, na verdade, é terminar de abocanhar tudo. Terminar um processo
que se iniciou lá na década de 1990.
Em que
medida o interesse dessas forças econômicas compromete a dimensão social do
setor elétrico? Porque, por exemplo, a Eletronorte atende nove estados da
Amazônia legal, que é uma região com muita precariedade em termos de serviços
públicos. Existem, entre outras coisas, programas de apoio às comunidades
indígenas. Esse tipo de iniciativa fica comprometido quando se pensa na
iminência de uma privatização?
Completamente,
porque a perspectiva que está colocada é a de que políticas sociais que
não são diretamente ligadas ao mercado de energia elétrica devem sair do escopo
do setor elétrico. E é aí que entram os programas indígenas, os programas
de desenvolvimento regional, etc. (…)
Sou engenheira florestal e conheci vários projetos de
desenvolvimento no Norte e no Nordeste. Há cidades que se desenvolveram por
conta dos recursos colocados pelas estatais e que nós sabemos que uma privada
não vai colocar. Além disso, você tem o desenvolvimento de tarifas específicas,
os royalties que vão para as cidades vão em
detrimento desses empreendimentos que são realizados. Então, é toda uma gama de
serviços que tem por trás do investimento estatal de geração e transmissão de
energia elétrica.
(…)
Há coisas das quais a sociedade não tem ideia… Mesmo com todos os erros que há
nesse setor, sabemos que uma empresa privada não vai fazer nada do que o
Estado faz. Pelo contrário, porque isso é custo da geração de energia. Se
eles gastarem com isso, com movimento social e com a questão ambiental, esses
custos serão repassados ao consumidor por meio da tarifa de energia.
Que
outros aspectos ficam comprometidos quando a gente pensa na privatização das
empresas que operam no setor elétrico? Como o cidadão pode sentir, por exemplo,
o comprometimento da dimensão ambiental do trabalho realizado por essas
empresas?
Tem
um aspecto estratégico, que é a entrega de todo o nosso conhecimento, da nossa
fauna e flora, das riquezas minerais nas mãos de empresas privadas, que são, em
sua maioria, estrangeiras.
Um
exemplo clássico é o caso do cupuaçu, que foi patenteado pelos japoneses, mas
eles não têm cupuaçu lá. (…) Então, estaremos entregando nas mãos de chineses,
estadunidenses, italianos, chineses, etc. Estima-se que o bioma amazônico, por
exemplo, seja o mais rico pra exploração de remédios.
Tem
várias ONGs que estão ali fazendo pesquisas e vão levar tudo que puderem levar.
Mas acho que a sociedade vai perceber mais a privatização na qualidade do
serviço prestado. O setor elétrico foi entregue, na década de 1990, na área de
distribuição de energia elétrica, e nós temos dados de que as empresas privadas
têm um serviço prestado à população pior do que as que ficaram estaduais ou que
foram federalizadas posteriormente.
Tem
casos de empresas que foram privatizadas e, depois de um tempo, as empresas
[compradoras] devolveram ao governo. Elas não viam lucro e devolveram pro
Estado. (…) Em alguns casos, eles não tinham conhecimento do solo, por exemplo.
Esse tipo de coisa vai penalizar diretamente a sociedade brasileira, porque vão
ocorrer, inclusive, atrasos em empreendimentos. (…) O que aconteceu em Mariana,
por exemplo, que foi rompimento de barragens… Nós temos diversas barragens de
pequenas centrais hidrelétricas que hoje estão condenadas, com risco de
rompimento.
Então,
são várias nuances que estão colocadas no processo do setor elétrico que a
sociedade só vai perceber quando a privatização for feita.
O governo
está fazendo agora uma consulta pública sobre o que ele chama de “reorganização
do setor elétrico”. O que está por atrás disso?
É
a expansão da lógica de mercado sobre o setor elétrico. Tem um capítulo
específico sobre privatização, inclusive. São três documentos. A primeira parte
é mais ideológica sobre o que é o modelo. Nela, eles colocam que não
deve existir interferência estatal. (…) Outra coisa que eles colocam é que o
mercado deve se auto-regular e que não seria necessário ter um planejamento
energético porque a demanda de energia vai fazer com que o mercado se perceba e
daí ofereça energia, e aí é que está a abertura para a privatização.
O
terceiro ponto que eles colocam com muita clareza é a questão da modicidade
tarifaria [tarifa acessível para todos os cidadãos] porque, a partir do momento
em que não se tem interferência do Estado no setor elétrico, a modicidade não
vai se dar. (…) Então, são estes três pilares fundamentais na primeira
consulta: expansão do mercado livre, o mercado se autorregulando e o Estado sem
interferir.
E
tem uma segunda consulta que fala da parte técnica, em que eles abrem a questão
da privatização escancaradamente.
E
a terceira é a questão do plano decenal pra energia, que já foi montado
partindo do pressuposto de que as duas primeiras são aceitas. (…) E eles estão
querendo fazer a discussão sobre todas essas consultas em um mês, uma
discussão que levou mais ou menos uma década.
E
esse modelo proposto tem suas contradições. Ele fala da necessidade de
investimento em energias renováveis, mas ao mesmo tempo coloca que depois de
xis anos vai retirar os subsídios para esse tipo de energia. Ele diz que você
tem que investir em novas tecnologias, mas não diz como isso vai
acontecer. Porque até hoje quem investe melhor nisso é o Estado, e tudo
isso está caindo por terra hoje. (…) E [nas consultas] muita coisa está em
aberto, “a ser regulamentado posteriormente”. Então, é como assinar um cheque
em branco.
Nós
estamos num momento muito turbulento, com o governo vivendo uma grande crise e
o Congresso se preparando pra voltar do recesso esta semana. Quais
temas merecem maior atenção da sociedade nestes próximos meses em relação
ao setor elétrico?
Já
estamos com um planejamento estratégico colocado e vamos fazer intervenções
junto ao Ministério das Minas e Energias, ao Congresso, porque tudo indica que
isso vai passar via medida provisória. Então, precisamos fazer uma disputa
no sentido de mostrar todas as incoerências que esse modelo está trazendo.
Eles
falam, por exemplo, que a tarifa vai cair, mas não tem como cair se você está
aumentando a energia para o mercado livre e para a exploração pelo capital.
Então, essa é uma contradição a ser explorada. (…)
Outra
questão é o desenvolvimento regional, que vamos levar bem forte pra sociedade,
porque o que está colocado é uma disputa de projeto e não podemos negar que
quem deu vitória pra um projeto popular, mais de esquerda, foi eleito pelo
Norte e pelo Nordeste, que é onde eles estão atacando agora – não só no sistema
elétrico, mas nos Correios, nos bancos e em outros setores.
Então,
vamos levar isso com muita força porque, a partir do momento em que a Chesf
deixar de ser o que é no Nordeste, a Eletronorte deixar de ser o que é para o
Norte e a Eletrosul também deixar de ser o que ela é pro Sul, a sociedade como
um todo vai perder. São os riscos de ter apagão, de a tarifa de energia subir e
de se perder tarifas sociais que hoje são colocadas pra população de baixa
renda.
Vamos
fazer um embate bem pesado com o setor legislativo e debater com a sociedade.
Edição:
Camila Rodrigues da Silva
https://www.brasildefato.com.br/2017/08/01/a-empresa-privada-se-apropria-de-tudo-diz-sindicalista-sobre-ppp-no-setor-eletrico/
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