por Leonardo Boff, para Carta Maior e 24/7 – Sociedade e Elite
Brasileira Ganânciosa
O povo brasileiro cultivou sempre em sua história a esperança,
pois aguentou séculos de colonização espoliadora de nossas riquezas, três
séculos de vergonhosa escravidão e duas ditaduras, a de Vargas e a de 1964;
Entretanto, temo que estamos indo ao encontro de alguma convulsão social porque
a desfaçatez e a sem-vergonhice do atual governo de tentar desmontar todos os
benefícios que os dois governos do PT realizaram para milhões de cidadãos (assim
como outros parlamentares na constituinte de 1988, como o MDB naquela época),
não poderá perdurar
Quando Leonardo Boff (1938) devolveu o e-mail com as respostas à
entrevista, assinou, ao final: “teólogo, filósofo, articulista semanal do
Jornal do Brasil online e escritor”. Deixou de fora outros predicados, num
gesto de desapego coerente com suas escolhas religiosas e políticas.
Trata-se de uma das
maiores autoridades cristãs brasileiras, ainda que um processo movido pelo
então cardeal Joseph Ratzinger, que viria a ser o Papa emérito Bento XVI, tenha
tirado alguns poderes do catarinense de Concórdia junto à Igreja Católica, o
que o levaria a desligar-se do sacerdócio em definitivo. Um dos expoentes da
Teologia da Libertação, ele resume: “eu mudei de trincheira para continuar no
mesmo campo de batalha”.
Leonardo Boff está em
São Luís e participa hoje (1º.), às 14h, no Auditório Fernando Falcão, da
Assembleia Legislativa, do 3º. Interconselhos – Encontro de Conselhos do Estado
do Maranhão, audiência realizada pelo Governo do Estado do Maranhão, através da
Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (Sedihpop), em
parceria com o Fórum Estadual Interconselhos. Ele ministra a palestra “A
participação popular frente à conjuntura nacional e regional: desafios e
perspectivas”.
Em entrevista exclusiva a Homem de vícios antigos,
Leonardo Boff comenta, entre outros assuntos, o tema de sua palestra, o
processo junto à Congregação para a Doutrina da Fé, a cassação de Dilma
Rousseff e o (des)governo de Michel Temer, sem nunca perder a esperança.
O Brasil vive uma crise de
representatividade, em muito agravada com o golpe que destituiu a presidenta
Dilma Rousseff do poder. Como o senhor avalia este cenário?
A deposição de Dilma
foi um golpe de classe parlamentar, jurídico e mediático. O objetivo principal
era acabar com os avanços sociais que metiam medo nos descendentes da Casa
Grande. Eles não defendem direitos, mas os seus privilégios e se encostam no
Estado para fazer seus negócios, com juros subsidiados e reserva de mercado. O
outro motivo é alinhar o Brasil à política do império norte-americano para
acabar com a linha de soberania e autonomia realizada por Lula e Dilma. Por
isso houve presença norte-americana no golpe parlamentar, como o mostrou nosso
maior analista Moniz Bandeira, entre outros.
Você visita São Luís para
participar do 3º. Interconselhos, o Encontro de Conselhos do Estado do
Maranhão, reunindo diversas instâncias de participação popular. Conselhos de
Direitos são uma importante conquista na democracia no que se refere à
participação popular. Qual a importância destes espaços na atual conjuntura?
Não podemos esperar
nada de cima, do Parlamento e dos que controlam as finanças e manipulam o
mercado. Estes não estão interessados num projeto de nação, mas de garantir a
natureza de sua acumulação, que é uma das maiores do mundo. Apenas 77.400
biliardários controlam grande parte de nossas finanças (0,05% da população). As
mudanças vêm daqueles que precisam delas, que são as classes oprimidas,
subalternalizadas no campo e na cidade, com os aliados que não sendo da mesma
classe, assumem sua causa. Eu espero que esses movimentos se articulem, ganhem
as ruas e praças, pressionem os poderes centrais de Brasília e consigam uma
reforma política com outro tipo de democracia participativa, onde eles, os
movimentos, ajudem a formular os investimentos, a realizá-los e a controlá-los.
Aí sim, teríamos um outro Brasil, o Brasil das maiorias. Os neoliberais
brasileiros querem um Brasil menor, para uns oitenta milhões apenas. Os outros,
os 125 milhões que se lasquem.
95% dos brasileiros avaliam mal
o governo de Michel Temer, mas esta insatisfação generalizada não consegue
extrapolar as redes sociais. Na atual conjuntura, qual o papel dos movimentos
sociais, de defensores de direitos humanos, enfim, da militância, de modo
geral?
Talvez uma frase do maior pensador cristão e africano, Santo
Agostinho, do século V, nos dê a resposta: alimentar esperança, mas atender às
suas duas belas irmãs: a indignação e a coragem. A indignação para rejeitar as
coisas ruins. A coragem para mudá-las. Hoje os movimentos devem se indignar e
mostrar isso nas manifestações, nas praças, nas redes sociais, nas rádios
comunitárias e jornais dos movimentos e principalmente ter coragem para as
mudanças que devem ser feitas na estrutura social. Esta é uma das mais injustas
do mundo. Isso se faz pela política, participando, elegendo representantes
confiáveis e querendo ter lugar nas decisões de governo, pois, a democracia
implica participação. Sem isso ela é sua própria negação, senão uma farsa.
Desenvolvi estas ideias no livro Virtudes para um outro mundo
possível [Editora Vozes, 2005], em três pequenos volumes.
O Maranhão viveu durante décadas
sob domínio oligárquico, só ocupando espaços na mídia nacional com tragédias e
vergonhas. Para citar apenas dois exemplos, rebeliões em presídios e escolas
funcionando em ambientes insalubres, para dizer o mínimo. O senhor tem
acompanhado notícias daqui? É possível fazer uma avaliação do governo Flávio
Dino?
Estive pouco no Maranhão em relação com outros estados. Estive
muitas vezes quando em Bacabal era bispo Dom Pascásio Rettler [1968-89],
que defendia os posseiros e era muito ameaçado de morte. Estive em Balsas para
apoiar o bispo local que estava do lado da luta, os agricultores contra o
avanço da soja transgênica. Outras vezes para participar de encontros das
comunidades eclesiais de base, que segundo meu irmão teólogo Frei Clodovis [Boff],
são das melhores do Brasil, porque agem com certa autonomia sem menosprezar o
apoio dos bispos. Há uns três anos fui a um encontro para professores e
professoras, em sua maioria, numa cidade histórica perto de São Luís. Fiquei
estarrecido com o que as professoras e professores contavam, seus baixíssimos
salários e o abandono das escolas. Tudo isso ainda sob o governo dos Sarney. De
Dino ouvimos os melhores elogios, seja por suas intervenções no caso do
impeachment, seja como está resgatando socialmente o Estado. É uma liderança em
quem confiamos e oxalá tenha ressonância nacional e não apenas regional para o
país sair da crise com lideranças novas, como a dele, com ética e novos
projetos sociais. Em meu livro Do iceberg à Arca de Noé [Editora
Mar de Ideias, 2002] desenvolvi tais perspectivas atinentes à
realidade brasileira.
Como professor universitário,
como o senhor tem recebido os golpes sucessivamente perpetrados pelo governo
ilegítimo contra o ensino médio e instituições de ensino superior?
O que o atual governo
está fazendo com a educação e suas instituições é um crime contra o país e o
futuro de nosso povo. O propósito é criar apenas gente que aprende para fazer
funcionar o sistema injusto e excludente que está aí, sem pensamento crítico, sem
inovação. Um país só cresce e progride quando há uma educação séria e
qualificada. Podem destruir quantas vezes quiserem a Alemanha, como fizeram por
duas vezes, mas porque possui uma das melhores educações do mundo (eu tive o
privilégio de fazer a universidade lá), sempre se levantará, como se levantou.
Hoje é um dos países social e tecnologicamente mais avançados do mundo. Aqui a
baixa qualidade da educação é mantida por razões políticas, para manter o povo
submisso e eles com os seus privilégios assegurados. Um pobre a quem se negam
as razões de sua pobreza, nunca irá se indignar e buscar transformações. Mais
ainda: um povo mantido na ignorância, em qualquer nível, nunca dará um salto de
qualidade em direção do desenvolvimento humano e justo. Eu venho da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), uma das melhores do Brasil.
Está sendo literalmente desmontada, talvez, como se suspeita, para
privatizá-la, talvez por ela ter um cunho claramente social. Todos, professores
e terceirizados, não estamos recebendo seus salários inteiros desde janeiro. O
décimo terceiro nem foi pago. E ouvimos que houve até suicídio de gente que se
desesperou com as dívidas por não ter recebido o devido salário.
Ao longo dos últimos anos temos
percebido o crescimento da bancada evangélica, com pautas nem sempre alinhadas
a princípios verdadeiramente cristãos. Como teólogo, como o senhor enxerga essa
junção de religião, poder, conservadorismo e obscurantismo?
O que a bancada
evangélica faz é contra a constituição do Brasil. Na constituição ficou claro
que o país é laico, quer dizer, não se orienta por nenhuma religião, e respeita
a todas, desde que se enquadrem dentro da legislação que é para todos. Os
evangélicos querem ter o privilégio de impor sua agenda, especialmente a ética,
com referencia à família, à orientação sexual, ao respeito aos LGBTs e outras.
Eles podem ter as opções deles, dentro do espaço de suas igrejas, mas é
anticonstitucional e desrespeitoso para outros que pensam diferente, quando
querem fazer o particular deles, o universal para toda a população. A eles
dever-se-ia corajosamente aplicar a constituição com as proibições que ela
aponta.
Percebemos diversos avanços da
Igreja Católica sob o papado de Francisco. Dois pontos, no entanto, seguem
inalteráveis: o matrimônio de sacerdotes e o sacerdócio de mulheres. Na sua
opinião, isto ainda demorará a se tornar realidade?
Face aos grandes
problemas da humanidade, com a pobreza da maioria, com eventuais guerras que
podem dizimar a espécie humana, o agravamento do aquecimento global que pode
por em risco o sistema-vida e o sistema-terra, esses problemas do celibato e do
sacerdócio das mulheres têm sua importância, mas são de relevância menor. Eles
interessam apenas aos católicos. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), quanto saiba, fez uma petição ao Papa Francisco para que os padres que
casaram pudessem voltar com suas famílias e assumir responsabilidades
pastorais. Outros avançam a proposta, simpática ao Papa, de ordenar
leigos, especialmente aposentados, com boa integração familiar, para que
pudessem atender espiritualmente, por exemplo, todo um conjunto de prédios. A
meu ver, a tendência da Igreja Católica é seguir o que todas as igrejas já
fizeram: tornar o celibato optativo. Quem quiser, fica celibatário e se deixa
ordenar. Outros se casam e se tornam padres como os outros. Sou da opinião de
que a Igreja deveria abrir também a possibilidade de as mulheres poderem
receber o sacramento da Ordem e serem sacerdotes no estilo das mulheres, que é
diferente daquele dos homens. Creio que, na medida em que o patriarcalismo,
forte na Igreja oficial, diminuir, será mais fácil e normal tomar estas
decisões. Ainda mais que a Igreja está dentro da globalização, pois em muitas
culturas, especialmente na África, não se pode imaginar alguém ficar
celibatário. O sentido tribal e comunitário torna o matrimônio dos padres uma
exigência até agora não atendida por causa da dominação da cultura branca,
ocidental e romana.
Por conta de um processo
movido por Joseph Ratzinger junto à Congregação para a Doutrina da Fé o senhor
perdeu alguns poderes dentro da Igreja Católica, desligando-se depois do
sacerdócio. No entanto, graças a sua atuação junto a Teologia da Libertação,
continua sendo um dos principais expoentes religiosos do Brasil. Há alguma
disposição por parte do Papa Francisco no sentido de rever este processo?
Eu mudei de trincheira para continuar no mesmo campo de batalha.
Deixei, sob fortes pressões, o sacerdócio, mas continuei fazendo teologia e
tomando a sério a opção pelos pobres contra a pobreza, porque isto é o eixo
estruturador da teologia da libertação. O atual Papa vem do caldo cultural e
eclesial da teologia da libertação, de versão argentina, que é a teologia do
povo oprimido e da cultura silenciada. Ele está levando as intuições desta
teologia nossa para o centro da Igreja. Por isso está se encontrando com
teólogos da libertação como com [os sacerdotes]
Gustavo Gutiérrez, Jon Sobrino, Pepe Castillo, Arturo Paoli e outros. Quis
conversar comigo, mas por razões de última hora, uma rebelião de 13 cardeais na
véspera do Sínodo sobre a família, que ele devia acalmar, não pode me receber.
Mas seguramente iremos nos encontrar em alguma viagem que fizer à Europa.
O Brasil vive uma
situação surreal, com condenação de inocentes sem provas e liberação de
culpados com toneladas de cocaína em helicópteros. O senhor é um homem de fé: é
necessário ter esperança no Brasil, apesar de nossa classe política?
Quem perde a esperança está a um passo do suicídio, da morte
voluntária. É o que não podemos e queremos. O povo brasileiro cultivou sempre
em sua história a esperança, pois aguentou séculos de colonização espoliadora
de nossas riquezas, três séculos de vergonhosa escravidão e duas ditaduras, a
de Vargas e a de 1964. O momento atual é de participação e de ação, sempre com
esperança. Entretanto, temo que estamos indo ao encontro de alguma convulsão
social porque a desfaçatez e a sem-vergonhice do atual governo de tentar
desmontar todos os benefícios que os dois governos do PT realizaram para
milhões de cidadãos (assim como outros parlamentares na constituinte de 1988,
como o MDB naquela época), não poderá perdurar. Haverá um momento de dizer:
“Agora basta. Que se vayan todos”, como disse o povo argentino e pôs a correr
um governo corrupto. O Brasil cresceu aos nossos próprios olhos, enchendo-nos
de orgulho e também aos olhos do mundo de tal forma que ganhou o respeito e a
admiração. Não vamos tolerar que isso se desfaça por aqueles que Darcy Ribeiro
dizia: “temos as oligarquias mais reacionárias e com falta de solidariedade do
mundo inteiro”. O insuspeito ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em seus Diários da
Presidência (1999-2000) [vol. 3, Companhia das Letras,
2017] chegou a confessar: “temos uma sociedade colonial,
subdesenvolvida, arrivista, com muita mobilidade e, ao mesmo tempo, muita
ganância”. São os atuais senhores da nova Casa Grande que querem que a maioria
do povo volte à senzala. Isso não vamos permitir. Lutaremos com dignidade e
valor.
https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/309732/Leonardo-Boff-Estamos-indo-ao-encontro-de-alguma-convuls%C3%A3o-social.htm
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