No leilão das jazidas brasileiras de petróleo,
corporações globais adotam curiosa artimanha. Atuam à sombra da Petrobras, à
espera de que esta, enfraquecida pelo governo federal, passe-lhes a parte do
leão
por Cloviomar
Cararine Pereira, Eduardo Costa Pinto, Rodrigo Pimentel Ferreira
Leão e William Nozaki* para blog Outras Palavras – Sociedade e
Privatização do Petróleo Brasileiro
A segunda e terceira rodadas de leilão das jazidas do pré-sal,
realizadas em 27/10/2017, começaram com atraso de mais de quatro horas em razão
de uma liminar da 3ª Vara Federal Cível da Justiça do Amazonas que
suspendeu o pregão na noite de quinta-feira 26. A ação, uma iniciativa do
Sindipetro-AM, foi fundamentada a partir de dois eixos: lesão ao patrimônio
público por uma possível perda de receita tributária, e lesão contra o
desenvolvimento nacional, dada a potencial perda para a indústria nacional.
A liminar, concedida por juiz federal, apontou “suposto vício de
iniciativa no projeto de lei que encerrou a obrigação da Petrobras de ser a
operadora única do pré-sal, passando a ter participação mínima de 30% por
campo”, além de decidir pela suspensão a fim de afastar “qualquer possibilidade
de ocorrência de danos ao patrimônio público”. Na manhã da sexta-feira,
a Advocacia-Geral da União (AGU) conseguiu reverter a suspensão. Ao
comentar o evento, o atual presidente da Petrobras afirmou que a liminar
concedida pela Justiça era um “ato político”. Chama a atenção esse tipo de
discurso quando feito por um dos participantes do certame, que parece atuar
como uma espécie de ministro de Minas e Energia invocando para si a tarefa
política de questionar a Justiça e os rumos dos leilões. Tal posicionamento,
uma vez mais, demonstrou como o atual executivo-chefe da Petrobras na
realidade tem se posicionado muito mais como um grande articulador no
processo de abertura do setor de petróleo do que como um defensor dos
interesses da estatal brasileira.
Tal impressão é reforçada, em primeiro lugar, pela própria
postura da Petrobras nos leilões realizados, uma vez que a empresa ingressou
apenas nas áreas que já havia manifestado previamente seu interesse de exercer
sua participação de operadora com no mínimo 30% dos blocos. Ou seja, um
adiamento dos leilões não alteraria as chances de participação da Petrobras nas
áreas desejadas.
Além disso, o indício reafirma-se quando se observa
o grande interesse das empresas estrangeiras nos dois leilões do pré-sal,
muito superior ao observado na 14ª rodada dos leilões ocorridos sob o Regime de
Concessão. Dos oito blocos licitados (área 7.977 km²), seis blocos foram
arrematados (6.786 km²), cerca de 85% em termos de área. O valor arrecadado com
bônus de assinatura pelo governo foi de 6,15 bilhões de reais, abaixo do valor
esperado de 7,75 bilhões caso todas as áreas fossem arrematadas (tabela 1).
Destacou-se o elevado porcentual médio de 55,72% da parcela do petróleo
excedente destinado à União resultante do leilão, bem acima do valor médio de
16,18% exigido pela Agência Nacional de Petróleo (ANP) nas licitações.
Considerando-se a média ponderada pelo volume estimado de reservas nas áreas
leiloadas, esse porcentual superou a faixa dos 70%.
Participaram dessas rodadas 15 empresas de dez países
estrangeiros e desse total dez empresas estrangeiras de oito países compuseram
os seis consórcios vencedores. A Shell (anglo-holandesa) ingressou em três
consórcios vencedores. A Petrobras participou e venceu também nas três áreas nas
quais fez oferta.
Esses resultados (duas áreas não arrematadas, elevado ágio do
óleo excedente, especialmente dos consórcios liderados pela Petrobras, além de
três áreas leiloadas onde a Petrobras não vai operar) novamente confirmam a
relevância da estatal brasileira para o desenvolvimento do pré-sal. O grande
apetite das empresas estrangeiras deve-se, em parte, ao fato de que nesse
processo, enquanto a Petrobras absorve o risco do investimento inicial, as
empresas estrangeiras incorporam retornos garantidos.
Graças ao conhecimento da Petrobras, a área do pré-sal
adquiriu grande atratividade em virtude do baixo risco exploratório, dos custos
de extração competitivo (< 7 US$/barril), do suficiente conhecimento
geológico e da fase inicial de descobertas. Além disso, foi exatamente nas
áreas em que a Petrobras participou onde verificaram-se as maiores ofertas de
excedente de óleo. Por fim, as empresas estrangeiras adotaram a estratégia de
fazer parcerias com a estatal brasileira (nos casos dos campos de Entorno de
Sapinhoá, Alto Cabo Frio-Central e Peroba) ou atuaram em áreas que possuem
proximidade com campos onde elas atuam (a Shell em Sul de Gato do Mato e a
Statoil em Carcará). Logo, o ingresso das empresas no pré-sal brasileiro
ocorre no “rastro” da Petrobras ou em áreas onde já detém conhecimento prévio.
Embora esses aspectos sejam centrais, cabe observar mais de
perto a dinâmica de atuação da China que, por meio de diferentes empresas
(Sinopec, Cnooc Petroleum e CNODC), integrou três consórcios
vencedores. Sendo assim, o país asiático ingressou de modo diversificado e mais
pulverizado nos leilões, na esteira da Shell e da Petrobras (as duas principais
operadoras do pré-sal) e em áreas distintas.
O suposto êxito do leilão (ágio elevado e grandes volumes de
recursos arrecadados por meio do bônus de assinatura) esconde, dessa forma, a
subordinação da atual política de exploração e produção aos interesses
estrangeiros – nesse caso, principalmente aos chineses. Em estudos anteriores,
já observamos que há um roteiro estratégico das grandes empresas de petróleo e
dos países interessados para tomarem suas decisões de investimento no setor.
Há uma geoestratégia em que as gigantes de petróleo se movem a
partir de uma lógica próxima à militar, analisando o controle de suas reservas
de petróleo e de seus territórios e também de seus competidores, dado o cenário
geopolítico e os interesses nacionais existentes.
No caso da China, a crescente demanda interna por petróleo, o
interesse global de se posicionar em outras regiões fora da Ásia e o acesso a
novos espaços territoriais são alguns dos interesses que moveram o país a
ingressar no setor de petróleo e gás (P&G) brasileiro com a intensidade
mencionada anteriormente.
Além de parcerias em outros segmentos da cadeia de petróleo e
gás, na exploração e produção, a China, que já possuía acordos de cooperação
para fornecimento de petróleo com a Petrobras, consolidou-se como o segundo
grande “parceiro” brasileiro no pré-sal. Até o mais recente leilão, a Sinopec
tinha participação nos campos de Carioca e Sapinhoá (Bacia de Santos) e também
tornou-se concessionária do bloco BM-C-33, na Bacia de Campos.
Segundo a ANP, em agosto de 2017, a petroleira chinesa ocupava a
terceira posição entre os maiores produtores de petróleo e gás do Brasil, com
uma produção de 103.407 barris equivalentes por dia. Além da Sinopec, a Cnooc e
CNPC ingressaram como sócias no leilão de Libra em 2013. Somando as licitações
da segunda e da terceira rodada, a China obteve um volume de reservas de óleo
recuperáveis superior a 3 bilhões de barris (tabela 2).
Como observado nos artigos desta série no blog Outras
Palavras, há uma estratégia de atração do capital estrangeiro que se explicita
com as mudanças regulatórias e com o aumento da apropriação da renda
petrolífera pelas empresas estrangeiras. Essa abordagem, na contramão dos
interesses nacionais, desfruta de forte apoio da gestão da Petrobras, a
despeito da estatal brasileira ser uma concorrente das operadoras estrangeiras.
Dado o grande potencial atrativo dos leilões do pré-sal, as
mudanças regulatórias em prol do aumento da apropriação das empresas
estrangeiras evidenciam que o Estado brasileiro está abrindo mão de enormes
massas de recursos financeiros e produtivos gerados pelo pré-sal. Isso diminui
a capacidade nacional de controle da renda do petróleo nessas áreas, na medida
em que importantes fases produtivas de maior valor agregado (intensivas em
renda e tecnologia) serão desenvolvidas em outros países – sem que isso gerasse
grandes efeitos sobre o desempenho da segunda e terceira rodadas.
Desse modo, a inserção das empresas estrangeiras na exploração
do pré-sal está muito mais relacionada à pressão por elas exercida desde a
descoberta das reservas, em um cenário em que ascendeu no Brasil um governo de
caráter fortemente desnacionalizante, do que com medidas institucionais e
setoriais. Tais medidas têm, inclusive, como característica geral a
quebra de instrumentos importantes para assegurar que a forma de exploração do
pré-sal fosse controlada pelo Estado Nacional.
Os resultados do leilão expressam, portanto, duas facetas de uma
mesma moeda: o sucesso do esforço tecnológico e exploratório da Petrobras e a fragilidade
institucional de assegurar que os frutos desse esforço sejam usufruídos pela
própria Petrobras em particular e pela sociedade brasileira em geral.
* Cloviomar Cararine Pereira é
economista e técnico do Dieese; Eduardo Costa Pinto é
professor do Instituto de Economia da UFRJ; Rodrigo Pimentel Ferreira Leão é
economista, foi gestor de planejamento da Fundação Petrobras de Seguridade
Social (Petros) e é pesquisador da Cátedra Celso Furtado-FESPSP; William Nozaki é professor
de Ciência Política e Economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de
São Paulo (FESPSP). Todos colaboram com o Grupo
de Estudos Estratégicos e Propostas (GEEP) da
Federação Única dos Petroleiros (FUP), parceiro editorial do blog Outras Palavras
http://contrapontopig.blogspot.com.br/2017/11/n-22615-pre-sal-estrategia-de-abutres.html
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