O paraquate é ingrediente de alguns dos herbicidas mais populares do
mundo. Está sob fogo cerrado no mundo todo ante evidências cada vez
mais fortes de que causa doença de Parkinson e mutações em células responsáveis
pela reprodução humana – além de ser potencialmente
fatal em caso de intoxicação aguda
por Rafael Moro Martins* para The Intercept – Sociedade e Comércio
Desleal Mundial de Agrotóxicos
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa,
proibiu no Brasil em setembro do ano passado, o uso de um
agrotóxico chamado “paraquate”. O produto – popular nas lavouras como
dessecante, uma técnica que acelera a maturação de plantas antes da colheita –
provoca a morte em caso de intoxicação grave e está ligado ao aumento da incidência da doença de Parkinson. Um parecer da
Anvisa já havia indicado a proibição, argumentando que “há plausibilidade
científica da associação entre a exposição ao paraquate e a doença de Parkinson
quando se considera, em conjunto, os indícios presentes nos estudos”. Ele
foi reavaliado
a pedido dos produtores do componente químico. Novamente, a proibição venceu.
Mas, a
decisão firme, avaliada e reavaliada com sentenças definitivas pela Anvisa
contra o uso do paraquate, ratificada em setembro passado, durou pouco mais de
dois meses. A própria Anvisa mudou o seu parecer
em fins de novembro, autorizando o uso do composto como dessecante
até 2020. Além disso, a agência suavizou textos que devem ser exibidos no
rótulo do agrotóxico.
A mudança
de posição da agência só foi possível graças ao lobby dos fabricantes e
vendedores de produtos à base de paraquate, grupo de pressão que frequentou o
gabinete de um diretor do órgão em um período de 66 dias. Foi quando o diretor
de Regulação Sanitária da Anvisa, Renato Alencar Porto,
abriu as portas de seu escritório, em Brasília, para quatro reuniões com
interessados em regras mais frouxas para o paraquate.
A mudança de posição da agência
só foi possível graças ao lobby dos fabricantes e vendedores de produtos à base
de paraquate
Em 5 de
outubro, 13 dias após a publicação da resolução que baniu o produto como
dessecante, Porto teve uma reunião com o diretor-geral da Syngenta América
Latina, Valdemar Fischer, com o presidente da empresa no Brasil, Laércio
Giampani, e com o gerente de Assuntos Corporativos, Rafael Arantes. A Syngenta
domina o mercado de produtos à base de paraquate no Brasil. O assunto, informou a agenda
pública do diretor, era justamente a proibição.
No mês
seguinte, em 10 de novembro, Porto recebeu a autodenominada “Força-Tarefa
Paraquate”, formada por 19 empresas que produzem ou pretendem produzir
agrotóxicos à base do princípio ativo, representadas também pelo Sindicato
Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal. Dessa vez, o diretor da
Anvisa teve como interlocutores Helena Sassaki e Elaine Lopes, coordenadoras da
força-tarefa, além de Pablo Casabianca e Edmur Figueiredo, respectivamente
agente de relações governamentais e consultor jurídico do Sindiveg.
Pouco
mais de uma semana depois, em 20 de novembro, o próprio presidente do Sindiveg,
Julio Borges, e sua diretora-executiva, Silvia Fagnani, foram a Brasília
desfilar argumentos a favor do paraquate para o diretor da Anvisa, acompanhados
das gerentes de assuntos regulatórios Andreza Martinez e Andrea Rodrigues.
Apenas
três dias depois, houve a quarta reunião. A cúpula do Sindiveg voltou a ser
recebida no gabinete do diretor da Anvisa para tratar do paraquate, dessa vez
acompanhados de diretores da Confederação Nacional da Agricultura e da
Associação Brasileira de Produtores de Algodão. O diretor do Departamento de
Fiscalização de Insumos Agrícolas do Ministério da Agricultura, André Peralta,
reforçou o time que foi defender o paraquate perante Renato Porto.
Um lobby bem-sucedido
A pressão
funcionou. No dia 27 de novembro, uma segunda-feira, apenas dois dias úteis
após a quarta reunião com o lobby do agrotóxico, a Anvisa decidiu afrouxar as
regras sobre o paraquate. A principal delas foi a liberação do uso do produto
na dessecação de culturas até 2020, justamente o ponto que havia sido proibido
em setembro. A dessecação é um procedimento utilizado em lavouras de larga
escala como soja e milho, e estima-se que 60% do paraquate
consumido no Brasil seja usado com esse fim.
A pressa
em voltar atrás da decisão fica evidente pela agenda do próprio diretor. Ele
esteve fora do país – em viagens oficiais à Califórnia, Itália e Alemanha – em
15 dos 45 dias úteis entre as primeiras reuniões e a liberação.
Nos 30
dias úteis em que passou no Brasil, Porto participou, principalmente, de
reuniões e compromissos burocráticos internos. Assim, as quatro reuniões do
diretor com defensores do paraquate representaram quase 30% de todos encontros
externos de Porto no período. Não há registros de encontros com qualquer
defensor do fim do uso do agrotóxico. A proibição, que estava em discussão na
Anvisa desde 2008,
foi mudada da noite pro dia.
Vitória da indústria
A decisão
de afrouxar as regras foi muito comemorada no mundo do agronegócio
e até no Ministério da Agricultura. O secretário de Defesa Agropecuária, Luís
Eduardo Rangel disse, sem meias palavras,
que “prevaleceu o bom senso”. “O paraquate é importante na dessecação das
culturas e não existe hoje no mercado outra opção e que dê o mesmo resultado”,
argumentou. “O uso [do princípio ativo] está restrito a culturas de algodão,
soja, arroz, banana, batata, café, cana-de-açúcar, citros, feijão, maçã, milho
e trigo”, tentou minimizar, como se falasse de pouca coisa.
“O uso está restrito a culturas
de algodão, soja, arroz, banana, batata, café, cana-de-açúcar, citros, feijão,
maçã, milho e trigo”
Não ficou
só nisso. A Anvisa também tratou de aliviar os dizeres que devem constar do
Termo de Conhecimento de Risco e de Responsabilidade que deverá acompanhar
qualquer agrotóxico à base de paraquate. Em setembro, a agência decidira que
ali deveriam constar as frases “O paraquate pode causar doença de Parkinson” e
“O paraquate pode causar mutações genéticas”. Em novembro, decidiu-se por
textos bem menos incisivos: “Evidências indicam que a exposição ao paraquate
pode ser um dos fatores de risco para a doença de parkinson em trabalhadores
rurais” e “Evidências demonstram a existência de risco da exposição ao
paraquate causar mutações genéticas em trabalhadores rurais”.
“Como não
se pretende afirmar que o paraquate indubitavelmente causará mutações genéticas
e a doença de Parkinson ao trabalhador rural, é possível que a maneira de
expressar a existência desses riscos possa ser mais clara”, justificou-se
Renato Porto, falando apressado, quase que atropelando as palavras, na reunião
em que a diretoria da Anvisa aprovou o recuo em sua posição a respeito do
paraquate.
Fabricantes comemoram
Ao final
da fala do diretor, a advogada Lídia Cristina
Jorge dos Santos, que foi à reunião falar em nome da força-tarefa
paraquate e do Sindiveg, não se furtou de elogiar a nova posição da Anvisa. “Eu
tinha toda uma sustentação oral pronta [em defesa do paraquate] e não vou poder
seguir, porque muitos pontos [desejados pelos fabricantes de agrotóxicos] já
foram comentados [por Renato Porto]. O resumo foi brilhante”, empolgou-se.
Minutos
depois, ela deixou claro qual é provavelmente o principal motivo para a briga
dos fabricantes de agrotóxicos pelas mudanças nas frases que alertam
agricultores a respeito dos riscos oferecidos pelo paraquate. “O receio da
força-tarefa é ser responsabilizada, punida e criar liability
[responsabilidade legal] muito grande em relação a processos de
responsabilidade (por casos de envenenamento ou doenças causadas pelo
paraquate)”, afirmou, antes de voltar a manifestar sua satisfação com a
decisão da Anvisa. “Agradecemos a possibilidade da (resolução) ser
revista.”
É
importante frisar que a nova decisão manteve a proibição total do paraquate a
partir de 2020. Mas, até lá, os fabricantes ainda têm espaço para manter o
produto no mercado, desde que apresentem à Anvisa estudos mostrando que o
princípio ativo não causa danos à saúde dos agricultores – algo que, Syngenta à
frente, eles já tentam fazer, com resultados
questionáveis. Na decisão anterior, o paraquate com embalagens
abaixo de 5 litros já seria retirado das lojas em 2018.
“Vitória de quem quer vender agrotóxico”
O
pesquisador Luiz Cláudio Meirelles, especialista em agrotóxicos da Fiocruz, foi
o primeiro gerente-geral de Toxicologia da Anvisa – ocupou o cargo entre 1999 e
2012. Ele foi responsável por pedir, em 2008, a retirada do produto do mercado.
A Anvisa
contratou a Fiocruz para elaborar um parecer técnico a respeito dos riscos do
paraquate. Entregue em 2009, ele finalmente foi aceito pela agência em 2014. A
isso seguiu-se um painel técnico com especialistas para tratar do assunto.
Durante as decisões sobre o paraquate, a Fiocruz se colocou à disposição para
dirimir dúvidas da Anvisa. “Mas, curiosamente, não foi convidada”, disse
Meirelles. “Ele recebeu só os interessados na venda do produto, mas não
organizações da sociedade civil, universidades, ou a Fiocruz”, afirmou o pesquisador,
que atualmente coordena o Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos
Agrotóxicos.
“Adotaram um linguajar que não é
direto, que não é compreensível ao trabalhador rural.”
Meirelles
não poupou críticas às mudanças feitas pela Anvisa após o lobby. “A liberação
do uso como dessecante é muito grave, pois é aí que se gera mais resíduo”,
explicou. Também questionou a revisão das frases de alerta que devem acompanhar
produtos com paraquate. “Adotaram um linguajar que não é direto, que não é compreensível
ao trabalhador rural. Perdeu o sentido”, argumentou ele, que já era crítico da
primeira decisão da agência. “O paraquate é perigosíssimo. Deveria ser banido
imediatamente, e não num prazo de três anos, com possibilidade da indústria
tentar reveter a proibição até lá.”
“Várias
agendas de interesse público estão submetidas a barganhas políticas. A dos
agrotóxicos não é diferente”, avaliou Marina Lacôrte, especialista do
Greenpeace em Agricultura e Alimentação. “A decisão da Anvisa é uma vitória de
quem quer vender agrotóxico. As mudanças foram feitas de acordo com o interesse
deles, e não no da saúde pública”, cravou Meirelles.
Histórico perigoso
Desenvolvido
pela gigante dos agrotóxicos Syngenta na década de
1950, o paraquate é ingrediente de alguns dos herbicidas mais populares do
mundo. Está sob fogo cerrado no mundo todo ante evidências cada vez
mais fortes de que causa doença de Parkinson e mutações em células responsáveis
pela reprodução humana – além de ser potencialmente
fatal em caso de intoxicação aguda.
A Suíça,
justamente onde fica a sede da Syngenta, baniu o paraquate nos anos 80. A União
Europeia, em 2007. China e Inglaterra produzem o agrotóxico, mas apenas para exportação.
Uma pesquisa
de 2011 do Instituto Nacional de Ciência da Saúde Ambiental dos Estados Unidos,
em parceria com o Instituto e Centro Clínico do Parkinson, mostrou que lidar
com agrotóxicos contendo paraquate aumentou em duas vezes a incidência de
Parkinson em agricultores. O dossiê sobre agrotóxicos da Associação
Brasileira de Saúde Coletiva, publicado em 2015, afirma que 26,2%
dos 2.931 casos confirmados de intoxicação por agrotóxicos registrados no
Brasil entre 1996 e 2000 se devem a apenas três princípios ativos, entre os
quais o paraquate.
No
Brasil, há 27 produtos à base de paraquate.
Rafael Moro Martins*
https://theintercept.com/2018/03/26/66-dias-de-lobby-uma-maquina-de-pressao-fez-a-anvisa-voltar-atras-e-liberar-um-perigoso-agrotoxico/
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O comentário será analisado para eventual publicação no blog