“...qualquer
tentativa de distribuir renda ou de ter o Estado com um papel pro crescimento
econômico, está fadada ao fracasso...”
por Luís
Eduardo Gomes no Sul21 – Sociedade
e Luta de Classes Brasileira
Autora do livro “Valsa Brasileira”, a economista Laura Carvalho concede
entrevista ao Sul21 | Foto: Joana Berwanger/Sul21
Um passo
para frente, um para o lado e um para trás. Essa é a dança da economia
brasileira que a economista Laura Carvalho descreve no livro “Valsa Brasileira:
do boom ao caos econômico”, lançado em maio e que há três semanas está na lista
dos mais vendidos do País, com mais de 10 mil exemplares comercializados.
Doutora em economia pela New School for Social Research, de Nova YorK (EUA),
professora da Universidade de São Paulo (USP), colunista da Folha de S.
Paulo e integrante do grupo de trabalho formulou uma proposta de plano de
governo na área de economia para o pré-candidato à presidência Guilherme Boulos
(PSOL), Laura, 34 anos, esteve em Porto Alegre na última terça-feira (12) para
lançar o seu primeiro livro. Entre uma visita à amiga também presidenciável
Manuela D’Ávila e o evento na Faculdade de Economia da UFRGS, conversou com o Sul21
no diretório acadêmico da instituição.
Na
entrevista, que foi concluída dois dias depois por telefone, Laura diz que
prefere não se apresentar como a “economista” de Boulos, como seu nome tem
aparecido na imprensa desde que passou a contribuir com o pré-candidato, porque
está apenas participando da construção de uma proposta que ainda precisa ser
aprovada pelo PSOL em assembleias para integrar o programa econômico oficial.
Também por isso, diz não se ver no papel de oferecer um “respaldo” à
candidatura de Boulos, que é visto pelo establishment como um
“extremista”, quando não como “um perigo”, pela sua atuação como coordenador do
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
“Eu acho
que a sociedade, infelizmente, tem essa visão do que é extremista muito
distorcida, porque as mesmas pessoas que acham que é extremista propor uma
reforma tributária progressiva, por exemplo, são aquelas que não acham
extremistas posições de simplesmente deixar numa sociedade como a brasileira o
mercado agir livremente, acham que isso é uma posição equilibrada, quando, na
verdade, nenhum país do mundo, nem no centro do capitalismo financeiro mundial,
isso é o debate feito hoje”, diz.
A
economista também avalia os motivos que levaram o Brasil a vivenciar o que
chama de um “milagrinho econômico” entre 2006 e 2010, porque foi um equívoco do
governo Dilma Rousseff adotar em seu primeiro mandato a “Agenda Fiesp” —
calcada em benefícios fiscais para as grandes empresas –, como caminho que o
Brasil deveria seguir para sair da longa crise econômica em que se encontra.
“O que eu
aponto no livro é a compreensão de que temos desigualdades históricas,
carências históricas, que vão desde a estrutura básica, saneamento,
desigualdade de renda, desigualdades regionais, carências de acesso à saúde,
acesso à educação pública. Essas carências históricas, num país do tamanho do
nosso, também se apresentam como uma oportunidade para um programa econômico
que vá funcionar, que é aquele que enxerga essas carências como o próprio eixo
de investimentos públicos, de crescimento econômico”.
Confira a
seguir a íntegra da entrevista.
Laura Carvalho diz que não gosta
de se apresentar como “a economista de Boulos” | Foto: Joana
Berwanger/Sul21
Sul21 –
Qual é o teu envolvimento com a campanha do Guilherme Boulos?
Laura
Carvalho: Na
verdade, o que eu fiz foi uma consultoria nessa fase inicial de sugestões e
elaboração de uma proposta de programa na área de economia. A metodologia que
foi estabelecida é que isso não define como será de fato o programa. A gente,
num grupo de trabalho de economia, fez reuniões com uma série de economistas e
representantes do partido, a maioria acadêmicos. A gente se organizou por
temas, fizemos as reuniões para cada tema, chamamos especialistas em
determinados temas. No final, compilamos um documento num formato bastante
enxuto, mas um documento que tem um diagnóstico e um conjunto de propostas e
entregamos esse documento, que vai ser apresentada em plenárias — que vão
acontecer também para saúde, educação, são 17 grupos de trabalho. O nosso, a gente
vai apresentar no dia 9 de julho, em São Paulo, e daí a etapa que segue, o que
será feito desse documento, já é um debate que será do partido, não está claro
para mim exatamente. É muito provável que o programa e aquilo que o candidato
no final vai defender não seja exatamente aquilo que o nosso GT propôs. Então,
a minha participação se encerra agora.
Sul21 –
Sim, mas tu tem sido identificada como a “economista” do Boulos…
Laura
Carvalho: Eu não
tenho me identificado como a economista do Boulos, as pessoas que estão me
identificando.
Sul21 –
Hoje em dia todos os pré-candidatos têm o “seu economista”, a Marina Silva tem
o Gianetti, o Bolsonaro tem o Paulo Guedes…
Laura
Carvalho: Sim, é
verdade, porque eu justamente aceitei coordenador esse grupo que está fazendo
essas propostas. Mas eu não sei muito bem o que é o “economista do fulano”,
porque mesmo nesses casos que você deu como exemplo, na prática, tem candidato
que tem vários economistas. Aquilo que o candidato diz não é exatamente o que o
economista falou. Então, eu tenho evitado me colocar nessa posição, porque eu
acho que o candidato tem ideias próprias, o programa econômico que será o final
vai contar com todo um debate interno ao partido. O que eu digo é aquilo que eu
penso, portanto não falo por ninguém a não ser pelas minhas próprias ideias. E
acho que esse é o caso de vários economistas que estão sendo atribuídos a
candidatos e, na prática, só estão aceitando ajudar.
Sul21 –
Mas tu acreditas que essa tua participação no programa econômico ajuda a ter um
respaldo à candidatura? Porque a gente sabe que o Boulos é visto por muita
gente como um extremista, pelo establishment, especialmente. Tu, por ser
uma economista conhecida, professora da USP, ter todo uma trajetória, apesar de
jovem, dá um respaldo de que ele não está propondo nenhuma “revolução”?
Laura:
Carvalho: Eu acho
que a sociedade, infelizmente, tem essa visão do que é extremista muito
distorcida, porque as mesmas pessoas que acham que é extremista propor uma
reforma tributária progressiva, por exemplo — as coisas que o Guilherme está
falando por aí, que tem muito a ver com justiça social –, na prática, são
aquelas que não acham extremistas posições de simplesmente deixar, numa
sociedade como a brasileira, o mercado agir livremente, acham que isso é uma
posição equilibrada, quando, na verdade, nenhum país do mundo, nem no centro do
capitalismo financeiro mundial, isso é o debate feito hoje. Aí tem um problema
que independe de quem é o economista, se tem economista ou não tem, o candidato
tem feito propostas que são radicais no bom sentido, de promover a
transformação social num país como o Brasil, e as pessoas que acham que isso é,
de alguma maneira, extremista querem preservar no Brasil uma estrutura de
desigualdade que, ao meu ver, nos aproxima da barbárie. Isso independe do
programa e de quem é o economista, não acho que vou conseguir resolver esse
problema ao apresentar propostas concretas, porque a visão que eu tenho já é
uma visão de transformação profunda do sistema econômico, sempre, nas posições
que defendi publicamente.
Para Laura, o crescimento
econômico do Brasil passa pela retomada do investimento público em áreas
carentes de infraestrutura | Foto: Joana Berwanger/Sul21
Sul21 – É
possível construir uma política econômica para o Brasil que não seja essa que
temos hoje, que é da visão hegemônica do mercado, simbolizada no Henrique
Meirelles?
Laura
Carvalho: Eu acho
que é. Do ponto de vista econômico, é muito viável. O que eu aponto no livro é
a compreensão de que temos desigualdades históricas, carências históricas, que
vão desde a estrutura básica, saneamento, desigualdade de renda, desigualdades
regionais, carências de acesso à saúde, acesso à educação pública. Essas
carências históricas, num país do tamanho do nosso, também se apresentam como
uma oportunidade para um programa econômico que vá funcionar, que é aquele que
enxerga essas carências como o próprio eixo de investimentos públicos, de
crescimento econômico. Claro que isso passa por uma reforma profunda do sistema
tributário, que também pode gerar arrecadação para que esses investimentos
ocorram. Eu acho que, quando a gente olha para qual é a situação, a sociedade
sabe muito bem o que ela precisa, quais são as demandas mais urgentes e
concretas. Um sistema de transporte urbano, moradia, saneamento básico,
educação, saúde. Se você mapeia isso e coloca dinheiro nessas coisas, o poder
que isso tem de não só gerar emprego, renda, arrecadação pro estado, como também
gerar inclusive o desenvolvimento de setores produtivos, de tecnologias
nacionais, é enorme. O problema é que a política econômica tem sido dominada
por interesses particulares de grupos de alto poder econômico, não só no setor
financeiro, mas também no setor industrial, vamos dizer, que acabam moldando a
política para interesses que não são os do conjunto da sociedade.
Sul21 –
Pois é, quando a gente fala de política econômica, muito se fala do ponto de
vista financeiro e se deixa de lado essa questão dos investimentos. Não se faz
esse diálogo de que investir em saneamento básico é economia, de que investir
em obras é economia. Por que isso acontece?
Laura
Carvalho: Então,
há uma tentativa recorrente de associar aquilo que está ocorrendo com o mercado
financeiro, se a bolsa está caindo ou subindo, àquilo que está acontecendo com
a economia real. Tenta-se vender muitas vezes a ideia de que se a Bovespa
subiu, a economia está bem. Se a Bovespa caiu, a economia está mal. E, na
verdade, a relação entre essas coisas não é tão estreita assim. A gente vê em
muitos momentos em que a bolsa sobe… Isso acontece, inclusive, em 2008, nos
Estados Unidos. A bolsa se recupera muito rapidamente e a economia real, as
taxas de desemprego continuam elevadíssimas durante muito tempo. A recuperação
da economia real é muito mais lenta, os movimentos são mais lentos, e sempre há
uma tentativa daquelas pessoas que estão mais envolvidas com o setor financeiro
de tentar trazer a ideia de que setor financeiro é algo que necessariamente,
vamos dizer, está atrelado à própria dinâmica que interessa para as pessoas.
Sul21 –
Sim, que o que seria bom para o mercado seria bom para a população.
Laura
Carvalho: Não é
assim que acontece. A gente vê que não é assim, muito pelo contrário. Acho que
faz parte de uma proposta de qualquer programa, vamos dizer,
progressista-econômico, o País ficar menos refém desses movimentos. Agora, nós
estamos sofrendo mais um choque externo bastante grande, não só nós, vários
outros países emergentes. E, sempre que alguma coisa acontece lá fora, a gente
vê rapidamente contaminando os mercados financeiros, a gente vê o dólar que
valoriza muito rápido, isso gera impacto na inflação, os juros começam a subir.
O problema é que não só o mercado não traz necessariamente benefícios para o
conjunto da economia, como ele também, às vezes, prejudica a economia real por
ser demasiado volátil e pelo tamanho da especulação financeira que está
envolvida. Então, [é preciso] regular bem esses mercados, regular esses
fluxos de capitais que entram e saem do País num curtíssimo prazo, em busca de
retornos muito rápidos, que não são investidores que estão construindo uma
empresa aqui, ou algo permanente e de longo prazo, são investidores que entram
e saem no mesmo dia. Se você não reduzir a volatilidade desses fluxos,
regulando e taxando esses fluxos na entrada e na saída, você vai ter sempre
esse grau de vulnerabilidade que, não interessa, você pode ter o melhor dos
programas, você pode ter o melhor dos objetivos, mas vai continuar sujeito e só
vai conseguir implementar quando o cenário externo ajudar.
Sul21 –
Mas é a realista a implementação de políticas que libertem o Brasil de ser
refém desse sistema? Que tipo de medidas poderiam ser tomadas?
Laura
Carvalho: Olha, o
próprio FMI tem discutido medidas nesse sentido. Então, tem vários países do
mundo fazendo isso. Inclusive, o Brasil implementou durante o governo Dilma,
por exemplo, medidas de taxação na entrada. IOF sobre determinados conjuntos de
operações financeiras, que ajudou na época a frear o movimento de entrada
maciça de capitais por aqui, o que estava sendo chamado pelo Guido Mantega na
época de “guerra cambial”. Só que não se taxou na saída. Se fez esse controle
de forma assimétrica. Então, existe uma série de propostas de economistas que
trabalham muito com esse assunto que são implementadas em outros países para
tornar esse fluxos menos voláteis. O Brasil tem uma das moedas mais voláteis do
mundo, porque está sujeita a um nível de especulação muito maior, muitas vezes
até coordenado. O CADE descobriu que tinha cartéis envolvidos nessas
especulações.
Sul21 –
Tem como explicar de uma forma simples, para pessoas totalmente leigas, qual é
o impacto da especulação financeira para a economia real?
Laura
Carvalho: Um deles
é isso que estamos vivendo agora. Estamos com uma economia ainda numa crise
muito grave, vemos que os empregos não foram recuperados, estamos na mais lenta
da história das recuperações de crises brasileiras, e ainda assim o Brasil teve
que interromper a queda na taxa de juros básica, que vinha caindo, porque a
inflação, dado o tamanho da crise, já estava abaixo do piso. Por quê? Porque os
Estados Unidos, o banco central norte-americano, criou expectativas de elevação
da taxa de juros lá. E só uma pequena expectativa de que a taxa de juros vai
subir em outro país e mudanças no ciclo internacional rapidamente levam esses
capitais de curto prazo para fora dos países, vamos dizer, periféricos, para o
centro do capitalismo financeiro. Isso acontece de forma recorrente. A
consequência é que, a taxa de juros então, independente do que está acontecendo
aqui dentro, passa a ter que subir ou se manter para atrair capital externo
para impedir que esse choque se propague, para impedir que isso acabe gerando
uma inflação maior. Ao contrário do que se diz, o regime de metas brasileiro
não está usando o instrumento taxa de juros para controlar a inflação, pelos
mecanismos tradicionais de diminuir crédito para desaquecer a economia. Ele, na
verdade, está tendo que responder sempre a esse tipo de movimento de capital
daqui para fora, de lá para cá, e quando o sistema externo ajuda, a gente
cumpre a meta da inflação. Quando o sistema externo não ajuda, a gente não
cumpre. Ao contrário do que se diz num manual de economia, esse regime regime
claramente não está funcionando da maneira como deveria.
Sul21 –
Não está trazendo a estabilidade prometida?
Laura
Carvalho: Não está
trazendo essa estabilidade, por quê? Porque o grau de globalização financeira e
o tamanho dessa financeirização que atinge diversas dimensões — estou dando uma
delas, que é a especulação com a moeda e entrada e saída de capitais — está
tirando a autonomia dos países em suas políticas econômicas, por isso que o FMI
está discutindo atualmente controle de capitais.
A
economista defende que uma reforma tributária progressiva é uma das pautas
prioritárias para o Brasil | Foto: Joana Berwanger/Sul21
Sul21 –
Tu falaste em investimento interno, mas a pergunta que sempre se faz é: de onde
vai sair esse dinheiro para investimentos em saneamento, etc?
Laura
Carvalho: Tem um
primeiro ponto de que o orçamento de um país não é igual ao orçamento de uma
casa. Então, ao contrário de uma casa em que não há nenhum controle sobre a
arrecadação, sobre aquilo que é a renda, a pessoa sabe quanto ganha e tem que
se adaptar a isso. No caso de um país, o governo federal tem algum controle
sobre aquilo que ele ganha, em alguma medida. Por quê? Porque o quanto ele
arrecada de impostos depende das alíquotas que ele está cobrando e depende
também do próprio crescimento da economia, do sucesso das políticas que ele
implementa. Então, quando eu penso num plano de investimentos públicos, penso em
duas coisas. Por um lado, no curto prazo, dado que a gente está com um problema
fiscal de curto prazo, que, aliás, não parece estar preocupando muito, agora as
pessoas estão mais preocupadas com outras coisas, mas, vamos dizer que isso
seja uma preocupação, a gente tem como fazer uma reforma tributária que gera,
num primeiro momento, facilmente, não estou falando nada de muito radical, mas
de convergir para alíquotas de imposto de renda, tributação de dividendos e de
herança que os EUA hoje implemantam, tá, não estou falando de Suécia.
Convergindo para a estrutura de tributação de renda e patrimônio dos EUA, você
já geraria muito facilmente 2% do PIB de arrecadação de cara, o que seria mais
do que suficiente para zerar o nosso déficit primário e realizar investimentos
que, por sua vez, geram crescimento e com isso a dívida/PIB no médio prazo. É
claro que aí, o ideal, é que essa reforma venha com uma redução de outros
impostos sobre o consumo, sobre a produção. Na prática, depende da sociedade
escolher qual é a carga tributária que ela quer ter. Mas, mais importante do
que o tamanho da carga, o Brasil tem uma arrecadação de impostos em relação ao
PIB mais baixa do que a média dos países da OCDE [Organização para a Cooperação
e Desenvolvimento Econômico], mas ela ainda é, em termos de per capita, mais
baixa ainda. O problema é que ela é muito mal distribuída. Se você distribuir
de outra forma e aumentar um pouco a arrecadação inicialmente, você consegue
realizar esses investimentos.
Sul21 –
Pois é, existe de certa forma um consenso na sociedade sobre a necessidade de
uma reforma tributária. No Fórum da Liberdade, todos os candidatos da direita
defendiam uma reforma e geralmente existe uma certa convergência de que tem que
diminuir a taxação sobre o consumo e aumentar na renda.
Laura
Carvalho: É, essa
convergência é nova.
Sul21 –
Eu queria te perguntar o que impede, então, uma reforma tributária progressiva
de sair do papel?
Laura
Carvalho: Bom,
primeiro que tem gente que diz e não atua para isso. Então, me parece que essa
eleição é a primeira em que esse debate se tornou central, não foi esse o caso
nas últimas várias eleições. E acho que se tornou central porque há uma
compreensão cada vez maior na sociedade que essa política de ajuste fiscal
realizada por meio de gastos sociais e de investimentos públicos tem, na
verdade, prejudicado muito mais os mais pobres. Acho que essa compreensão maior
está obrigando as candidaturas a, de alguma maneira, tratarem do tema da
justiça social. E aí, como do lado dos gastos muitos deles continuem defendendo
que se corte em saúde, em educação e outros, a mudança de foco foi para o lado
da tributação, e que bom que pelo menos esse tema tem sido discutido. Mas me
parece que o Congresso hoje ainda está vetando até o fim das desonerações que
ajudaram determinadas empresas no passado. Quer dizer, você não está
conseguindo nem fazer aquilo que esse governo já está propondo do ponto de
vista de mudar o sistema de tributação, que dirá tributar os mais ricos. A
gente sabe que os mais ricos no Brasil têm, de alguma maneira, travado esse
tipo de mudança, mas acho que estamos no caminho certo.
Sul21 –
Dá para dizer que essa carga não é mudada porque tem muita gente ganhando com
isso e são os poderosos, a elite econômica que se aproveita desse modelo?
Laura
Carvalho: Eu acho.
E acho que isso não é só o caso do Brasil, é no mundo. O [economista,
Thomas] Piketty, por exemplo, escreveu um best-seller propondo uma
nova forma de tributação, porque a desigualdade nos países ricos aumentou muito
nas últimas décadas. Por que a proposta do Piketty, ouvido por milhões de
pessoas no mundo, não são implementadas nos países ricos? Porque, claro, você
está tratando de redistribuição da renda do topo para a base. Redistribuir
renda do topo para a base é das coisas mais difíceis de você fazer
politicamente e fica mais difícil quanto mais concentrada for essa renda.
Então, há uma coisa que se chama “paradoxo de Robin Hood” na economia, que é,
ao contrário do que você poderia desejar, países mais desiguais tendo um orçamento
público que faz mais distribuição da renda, o contrário. Quando você olha para
os países mais desiguais, aqueles que têm a tributação menos justa, os gastos
menos importantes na redistribuição da renda, reforçando a própria a
desigualdade. Isso se dá, claro, porque quando você tem uma estrutura de
desigualdade muito grande herdada, o poder econômico está tão concentrado na
mão de poucos que você tem muito impacto desse poder sobre o sistema político e
no próprio desenho do Estado.
Sul21 – E
é por isso que o Brasil não conseguiu nem implementar a CPMF, que seria o
imposto que mais afetaria os grandes…
Laura
Carvalho: E, na
verdade, nem é um imposto progressivo, no sentido de que não redistribui renda.
Sul21 –
Mas pega mais o cara que faz uma grande transação do que aquele que só troca
dinheiro vivo.
Laura
Carvalho: Pois é.
Inclusive, se criou uma coisa anti-imposto e muitas vezes a própria sociedade
se confunde nesses temas, achando que aquilo que é o interesse. Pensando nos
patos da Fiesp, que era uma campanha “não vou pagar o pato”, uma campanha
anti-imposto explicitamente. Começou assim, claro que foi ganhando outros
significados. Mas aquela campanha já mostra que setores do empresariado
nacional tentam criar a impressão para a sociedade de que está todo mundo no
mesmo barco, de que a tributação de um e de outro é a mesma, e o Estado passa a
ser o inimigo, quando, na verdade, tudo tem a ver com conflitos distributivos
sobre o orçamento público. Uma mudança que atende a maioria vai ter que
necessariamente prejudicar uma minoria, e uma minoria que tem muito dinheiro e
paga muito pouco imposto, mas acho que o debate melhorou muito nesse aspecto e
as pessoas estão cada vez mais conscientes de que quem paga imposto no Brasil
são os mais pobres mesmo.
Laura
classifica como “milagrinho econômico” o período entre 2006 e 2010 |
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Sul21 – Logo
na abertura do Valsa Brasileira, tu pondera que alguns economistas
consideram que o período que tu chama de “milagrinho econômico” foi uma ilusão.
Foi mesmo? Como tu avalia?
Laura
Carvalho: Não, é
verdade que aquele crescimento só aconteceu da maneira como aconteceu, com
controle inflacionário, com controle das contas públicas, com as bases de ao
mesmo tempo expandir investimentos públicos de forma significativa, com o PAC,
com aumento dos gastos oficiais, do salário mínimo, sem prejudicar nenhum dos outros
indicadores, porque havia um cenário externo favorável. No livro, eu dou
bastante enfoque para qual foi o papel da economia internacional em facilitar
aquele processo. Por outro lado, me parece que houve já em muitas outras
situações momentos externos favoráveis que não foram aproveitados para
distribuição da renda e para dinamizar o mercado interno da economia tal como
foi feito entre 2006 e 2010. E, como eu mostro, ao contrário do que se coloca
muitas vezes no debate econômico, não foi só um movimento de crescimento do
consumo das famílias. Na verdade, os investimentos das empresas cresceram mais
do que o consumo das famílias no período que vai de 2006 a 2010, e os
investimentos públicos, em infraestrutura e todas essas coisas que têm efeito
no crescimento também de longo prazo. Então, eu não acho que foi uma ilusão. O
que eu acho é que faltam elementos que pudessem dar sequência a esse
crescimento. Mas, além disso, se substituiu a política por outra, em 2011, que,
na minha opinião, fracassou.
Sul21 –
Antes de entrar na questão da mudança de economia. Na tua opinião, quais foram
os acertos desse período?
Laura
Carvalho: Eu acho
que o principal foi entender que, numa economia continental e desigual como a
do Brasil, o mercado interno e o combate à desigualdade podem e devem funcionar
como motor de crescimento da economia. Então, o pilar dos investimentos
públicos, a forte expansão de investimentos públicos e de infraestrutura física
e social, que inclui aí saúde e educação, combinado ao processo de redistribuição
de renda na base da pirâmide, que fez com que trabalhadores menos escolarizados
fossem incorporados no mercado de trabalho, sobretudo em setores de construção
e serviços, o que fez crescer muito, não só o número de vagas e empregos
formais, mas também em termos de salários para os trabalhadores, na média,
ajudando a movimentar também o mercado interno. E, finalmente, o pilar do
acesso crédito, que na verdade também acabou complementando esses outros dois
pilares nesse dinamismo maior do mercado interno. Acho que essa coordenação,
sobretudo o investimento público e distribuição de renda, porque crédito é algo
que acaba a longo prazo tendo efeito limitado, porque as famílias vão se
endividando e isso acaba prejudicando depois, acho acertado entender que os
pilares são, vamos dizer, o motor correto de crescimento de uma economia como a
nossa. Agora, há erros também.
Sul21 –
Quando começaram os erros e quais foram os principais?
Laura
Carvalho: Eu acho
que já há dois erros principais no próprio processo de crescimento do que eu
chama de “milagrinho”. Primeiro, não se faz a redistribuição de renda do topo
para a base da pirâmide, o 1% mais rico mantém a sua parcela de renda nesse
período, então não se enfrenta conflitos distributivos. Se utiliza uma ideia de
que só o cenário externo favorável permite um cenário de ganha-ganha, o que
acaba prejudicando a capacidade de continuar promovendo a distribuição de renda
depois, quando você passa a ter a desaceleração. Além disso, você tem um erro
que é não ter feito políticas para desenvolver a estrutura produtiva do País,
diversificar isso ao mesmo tempo em que realizou aquele processo. Eram desafios
e limites que estavam colocados em 2010, mas o que se fez, na verdade, foi
mudar a política econômica e adotar o que eu chamo de “Agenda Fiesp”, que foi
uma política que tentou favorecer setores industriais para tentar estimular os
investimentos privados. Isso acabou não funcionando para gerar esses
investimentos e teve um custo alto, porque acabou também contribuindo para
limitar o espaço no orçamento dos investimentos públicos, que ficaram
estagnados no período de 2011 a 2014.
Sul21 –
Hoje tanto a direita quanto a esquerda falam dessa “Agenda Fiesp”, criticam a
chamada política de campeões nacionais. Mas, dessa forma, parece que isso
partiu da cabeça da Dilma, que ela inventou enquanto todo mundo sabia que ia
dar errado, quando na verdade não foi bem assim que aconteceu, foi uma pressão
que existiu na época para que ela adotasse essa política econômica.
Laura
Carvalho: Eu acho
que há os dois lados. Eu acho que há demanda. Justamente quando eu chamo de
“Agenda Fiesp” é para mostrar o papel que essas associações patronais e setores
do empresariado tiveram e colocaram para o governo. A gente identifica que
inclusive as medidas tomadas estavam todas em documentos propostos. As
desonerações, o controle de tarifa de energia elétrica, a desvalorização do
real, isso tudo estava nas demandas que a própria Fiesp, junto com as centrais
sindicais, tinham feito no início do governo Dilma. Por outro lado, acho que
havia sim uma convicção de que era necessário desenvolver a indústria do País e
aí acho que houve a percepção equivocada de que fortalecer a indústria
necessariamente significaria favorecer esses setores que estavam na estrutura
produtiva, vamos dizer, desenvolvida nos anos 1970 ou antes, mas que talvez não
sejam setores que a gente quer ver numa estrutura produtiva do século 21. O
exemplo do setor automobilístico é o mais claro. Mas, enfim, acho que houve os
dois lados. E houve também o Congresso, que acabou estendendo as desonerações
para todos os setores da economia, praticamente.
Entrevista com Laura Carvalho foi
realizada no Diretório Acadêmico da Faculdade de Economia (Daeca) | Foto: Joana
Berwanger/Sul21
Sul21 –
Nesse sentido. Essa pressão do grande empresariado, representado na Fiesp, vai
existir sempre. De certa maneira, é isso que influenciou a reforma trabalhista
que a gente teve no governo Temer. Como é que um governo de esquerda,
especialmente, pode resistir e não se submeter a essa agenda?
Laura
Carvalho: Eu acho
que tem uma série de medidas que vão desde um planejamento, porque, quando você
não tem planejamento, fica menos vacinado para esse tipo de pressão. Se você,
por exemplo, orienta que o seu programa de investimentos públicos e que os seus
programas de financiamento estarão destinados para aquelas que são as maiores
demandas da sociedade. Por exemplo, uma rede de transporte urbano qualificada,
saneamento básico, infraestrutura básica, enfim, a gente sabe muito bem quais
são os maiores problemas brasileiros. Se a gente orienta todo o esforço, o
desenvolvimento dos setores produtivos para essas que são áreas prioritários,
isso inclui tecnologia verde, inclui complexo industrial da saúde, encadeado
pelos serviços de saúde pública, se você orienta para essas áreas que atendem a
maioria da população, acho que você se preserva contra essa tentativa de
direcionar a política para interesses que são restritos de grupos particulares.
Esse é o primeiro ponto, um bom planejamento da política que não tenha como fim
o desenvolvimento da indústria ou de determinados setores da indústria, mas o
atendimento de demandas que a sociedade tem por melhores serviços, por exemplo.
Isso é uma coisa que você conquista com esses mecanismos do próprio sistema
político, de tentar fechar essas portas. E inclusive você tem, no setor
público, uma porta giratória, em que pessoas do setor privado vão trabalhar no
alto escalão e isso costuma piorar essa estrutura de defesa dos interesses
privados dentro do governo.
Sul21 –
Tu avalias que a população está bem informada sobre os motivos que levaram o
País à crise econômica?
Laura
Carvalho: Olha, eu
acho que a população brasileira está muito consciente de que a situação dela
piorou e de que a agenda que está sendo implementada não está gerando os
resultados prometidos. Acho que isso é evidente nas pesquisas de opinião.
Agora, eu acho que uma crise desse tamanho se explica por razões muito
complexas e que eu tento trabalhar no livro, que tem elementos internos e
externos, elementos políticos e macroeconômicos. É claro que a população não
participa, inclusive porque ela é bloqueada pelo uso de linguagens econômicas
inacessíveis, do debate sobre essas causas. Aquilo que tem sido apontado como
causa da crise, que é, por exemplo, qualquer tentativa de distribuir renda ou
de ter o Estado com um papel pro crescimento econômico, está fadada ao
fracasso.
https://www.sul21.com.br/entrevistas-2/2018/06/laura-carvalho-a-reducao-de-desigualdades-nao-e-apenas-uma-questao-economica-e-uma-questao-civilizatoria/
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