“... a Copa é uma diversão. Os coxinhas e petralhas, amarelos e
vermelhos, não podem nos roubar a alegria. Vamos gritar gol sim e nos abraçar
com as pessoas que a gente costumava abraçar...”
por Fernanda Canofre no
Sul 21 – Sociedade e Futebol, Alegria Popular
“O esporte pode sim ser
alienante, como qualquer produto da indústria cultural, mas ele também produz
significados bons”. Foto: Guilherme Santos/Sul21
A agenda
do pedagogo e técnico administrativo da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), Gustavo Bandeira, é definida pelos jogos do Grêmio de Porto
Alegre. Desde os 5 anos, ele é frequentador assíduo das arquibancadas do clube,
ao lado do pai. Foi da paixão pelo futebol que surgiu a ideia de aliar a
pesquisa sobre construção do conceito de masculinidade ao futebol. A ideia veio
de uma professora. Bandeira pensava em analisar a tese através de filmes de
comédia norte-americana, como a série American Pie. E virou um campo de
pesquisa.
“A ideia
era ver como a gente age nos estádios, como torce, contra quem a gente grita, a
favor de quem a gente grita, quais os sentimentos são nobres para serem
mostrados e quais são proibidos naquele espaço. Eu resolvi olhar, dentro
daquele espaço, como a masculinidade aparecia”, conta ele.
Além da
formação em Educação, Bandeira fez uma especialização em Jornalismo Esportivo.
O estudo acabou virando uma das hipóteses de pesquisa do grupo. A ideia é que
um indivíduo aprende a ser homem ou mulher nos espaços de sociabilidade. Entre
eles, os estádios de futebol, que sempre foram interditados, de certa forma à
elas.
Em tempo
de Copa do Mundo na Rússia, com casos de assédio de torcedores a mulheres
estrangeiras, gritos homofóbicos, episódios de racismo e xenofobia dentro e
fora de campo, Bandeira conversou com o Sul21 sobre todas as questões
que o futebol suscita sobre a sociedade e porque ele é o esporte que tem mais
poder de ser catalisador de tudo isso:
Sul21:
Parece que o Brasil ainda não entrou no clima de Copa este ano. Comércio não
está decorado, como costumava, nem as ruas, não há muita comemoração em dias de
jogos. O que tem de diferente neste momento?
Gustavo
Bandeira: Em 2014,
dois meses antes da Copa não tinha clima de Copa. Só tinha o “não vai ter
Copa”, manifestações nas ruas. Clima de Copa se dá na Copa.Tem ainda um
problema muito forte vinculado ao símbolo da seleção brasileira, que é a camisa
amarela da CBF, hoje muito mais vinculada ao impeachment da Dilma do que à
seleção brasileira de futebol. Eu não era fã do trabalho da Dilma, mas como
esse que veio depois é pior, o governo dela parece até bom. Mas eu não uso a
camisa da CBF, não sinto vontade de usar a camisa da CBF e eu sempre tive e a
usei. Acho que a marca desse símbolo, vinculada a um movimento político, num
momento em que estamos extremamente polarizados, faz com que algumas pessoas o
rejeitem. Por outro lado, é um país em crise. A gente já teve outras crises, em
outros momentos de Copa, mas é uma queda de um momento que a gente vinha
melhorando, mesmo que sem grandes conquistas ou revoluções, ao entendimento de
boa parte da população. Para a minha geração, que é dos anos 1980,
pós-Constituição, acho que esse foi o primeiro baque econômico e de costumes. A
gente achava que direitos humanos seriam uma conquista progressiva e contínua,
que teria mais direitos humanos. Foi um equívoco da minha geração, talvez isso
ajude a atrapalhar o espírito da Copa.
“Por mais
que as elites continuem comandando o futebol, a representação ainda é popular”.
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Sul21:
Isso é inédito, não? Ou houve outra Copa assim?
Gustavo: No jogo de sexta (22), eu moro
perto de uma escola e era engraçado ver as crianças torcendo. Mas os gritos
delas, na hora do gol, foram os únicos. E a gente teve o 7 a 1 aí. Também
ajuda. Daqui a pouco, se o Brasil ganha bem do México, se acontecer um Brasil X
Argentina ou Brasil X Uruguai, esse clima de Copa volta. Acho que tem uma
frustração da derrota que é importante. Porque, ao mesmo tempo, na sexta as
ruas estavam desertas. Talvez as pessoas não estivessem ali torcendo, vibrando,
mas elas mudaram sua rotina em função do jogo.
Sul21: O
professor da USP, José Miguel Wisnick, analisa o lado sociológico do futebol
num livro chamado “Veneno Remédio”, onde ele fala que, no Brasil, “a
incapacidade de combinar a paixão e a crítica tornou-se um traço recorrente”.
Ele chega a usar os termos “veneno da crítica versus droga euforizante”.
Concordas com isso? Ou agora parece ter mudado?
Gustavo: O futebol nunca foi o ópio do
povo. Nunca foi. Muito antes pelo contrário. Em 1973, jogou aqui no Beira-Rio,
para mais de 100 mil pessoas, público nunca antes registrado, a seleção
brasileira contra a seleção gaúcha. Esse amistoso aconteceu porque o Brasil ia
jogar contra Portugal, para comemorar o aniversário de Independência, e a
seleção brasileira teve a pachorra de não convocar o Everaldo, jogador do
Grêmio, tricampeão do mundo em 1970. Os gaúchos ficaram revoltados e resolveram
marcar um amistoso. Tinha Figueroa, Anchieta, chilenos, uruguaios,
catarinenses, uma seleção Gre-Nal contra a brasileira. O Hino Nacional foi
vaiado, bandeiras do Brasil foram queimadas e nós estamos falando de 1973,
cinco anos depois do AI-5 ter sido aprovado. Foi o único espaço possível de
fazer isso. Se fosse feito isso no Centro de Porto Alegre, você estaria preso.
No Beira-Rio, não aconteceu nada.
O esporte
pode sim ser alienante, como qualquer produto da indústria cultural, mas ele
também produz significados bons. [O futebol] apareceu como ópio do povo, porque
a gente sempre teve um marxismo muito chato, que ou você está 100% do tempo
fazendo a revolução ou você não serve. Ou você está lutando o tempo inteiro
para conquistar os meios de produção ou você é um idiota. O que é um marxismo
vulgar, porque Marx não tem nada a ver com isso. Vou culpar a esquerda, campo
no qual eu me localizo, sem dúvida, mas a gente tem um problema que é de um
certo preconceito ao que é popular. Tem preconceito ao futebol, ao Carnaval, às
festas de rua. Hoje é meme nas redes sociais e todo mundo brinca com “enquanto
você grita gol eles te exploram; enquanto você vê um filme iraniano também”. O
futebol quando aparece é elitizado, mas a América Latina como um todo conseguiu
popularizar. Por mais que as elites continuem comandando o futebol, que nas
federações, por exemplo, não tenha “povo”, a representação ainda é popular.
Gustavo
Bandeira é autor de pesquisa sobre futebol, machismo e homofobia. Foto:
Guilherme Santos/Sul21
Sul21:
Esse afastamento entre torcida e seleção brasileira, a única da América Latina
que não se despediu com um amistoso antes de ir pra Copa da Rússia, tem a ver
com a figura do herói do time, Neymar Jr.? Apesar de ser um grande jogador, ele
é muito mais criticado do que amado pela torcida.
Gustavo: Para a qualidade que o Neymar
tem, ele é muito rejeitado. Especialmente nessa geração dele, porque ele é
muito melhor que os outros. A gente teve Copas do Mundo que o Romário não foi
e, não só não tivemos nenhum problema, como ganhamos. Em 1998, ele foi cortado
e fomos vice-campeões. Hoje, nem nós que criticamos o Neymar – e eu me coloco
aí – imaginamos a seleção sem ele. Mas não sei se é só ele. Acho que o Kaká
também não tinha essa representatividade.
Sul21:
Por que será?
Gustavo: São jogadores que são feitos
fora do país. No caso do Kaká, com a sua formação toda, ele é o anti-jogador,
ele é branco, de família rica, fala bem. Teve um presidente do São Paulo que
fez uma frase péssima, horrorosa: “a gente deveria tentar trazer o Kaká porque
ele é cara do São Paulo, ele tem todos os dentes na boca”. Mostrando essa
lógica elitista mesmo. O Neymar é um cara multimilionário, ele é um astro
global antes de qualquer coisa, não é brasileiro. A gente tem problema com ele,
mas a Argentina também tem com o Messi. Esses superastros são diferentes do que
tínhamos antes. O Ronaldinho representava bem porque tinha um fenótipo que
remete ao futebol brasileiro, ele fazia gol e sambava, o sorriso, o drible. O
Neymar é brigão, é mimado, então, tem problema sim com essa figura. Mas, também
acho que a gente teve, desde o início dos anos 1990, um aumento muito forte da
relação do clubismo. Eu não paro pela seleção brasileira, eu paro pelo Grêmio.
Na década de 1990, quando tinha amistoso da seleção, não tinha aula na
universidade. Na quarta-feira, eu trabalho na UFRGS, as pessoas estavam ligando
para saber se teria aula, em plena Copa do Mundo. A seleção perdeu um pouco
desse fenômeno, acho que a agenda dos clubes pode ter tomado um pouco.
Sul21:
Essa questão do Neymar tem a ver com as tentativas de cavar falta, de ser
“cai-cai”? O próprio Tite falou várias vezes sobre querer que a ética pautasse
seu time. O Juninho Pernambucano, ex-jogador do Vasco e do Lyon, disse em uma
rede social que é assim que jogadores brasileiros aprendiam desde sempre e que
agora precisava mudar. Como a gente começou a questionar isso?
Gustavo: Eu adoro o Tite, acho ele um
treinador genial, o único problema é ter treinado o Inter e ter sido campeão,
fora isso ele é maravilhoso (risos). Mas, acho que ele tem um discurso
moralista, semi-religioso que me incomoda um pouco. O Tite foi campeão da
Libertadores com o Emerson Sheik (Corinthians), que mordeu o zagueiro do Boca
Juniors. Então, não é assim que funciona, tem muita historinha.
Sul21: E
essa cobrança por mais “ética” da própria torcida?
“O problema do Neymar está
vinculado à simulação, ao exagero, à antipatia dele”. (Foto: Guilherme
Santos/Sul21)
Gustavo: Eu não sei, porque se pensar
sobre o 7 a 1, por exemplo, vão ter vários depoimentos na hora que as pessoas
diziam “faltou dar um soco num alemão, faltou chutar um alemão”. A
representação da Copa de 1950, o grande drama brasileiro, as pessoas diziam
“isso só aconteceu porque o Bigode não deu um soco no Obdulio Varela”. Acho que
sempre existiu e continua existindo. O problema do Neymar está vinculado à
simulação, ao exagero, à antipatia dele. Eu acho que tem um discurso hegemônico
pelo jogo limpo sim, que antes não existia.
A gente
tem um fenômeno curioso na seleção. A gente tem a troca de um treinador, o
Dunga, de uma característica muito viril, de ganhar a qualquer preço, jogando
mal e coisa e tal, pra um Tite que tem essa polidez toda, um bom falar, às
vezes meio chato. Entre o ganhar de qualquer jeito e o ganhar por merecimento,
a grande lógica do Tite, é mais bonito o segundo. Mas não sei se a gente não
vai querer ganhar com gol impedido, com pênalti que não foi. A gente está
lidando com novas tecnologias, com o VAR (arbitro de vídeo), mas e se a gente
não tivesse esse replay, ia reclamar tanto? É tudo isso junto e combinado, não
é uma explicação única. Então sim, a gente tem uma antipatia ao Neymar, não
porque a gente é mais moralista, mas porque foi ele que fez. A figura do Neymar
como sonegador de impostos, num país que, nos últimos anos, escolheu a
corrupção como adversário, como inimigo. Tem a vinculação de ética? Pode ser,
mas tem o Tite que é o anti-Dunga e do Dunga ninguém gostava. E mais, tem o
acréscimo de tecnologia e não dá mais pra fingir. Se você fingir a câmera vai
pegar e você leva cartão. Ela te dá menos espaço para burlar a regra.
Sul21: O
Wisnik, em seu livro, também cita um comentarista francês, Pascal Boniface, que
dizia que entre as superpotências dos diversos campos, o Brasil no futebol,
seguia sendo o único amado, que fazia as pessoas torcerem por ele. Hoje, isso
parece que mudou. Nas redes sociais, pessoas de outros países torcem mais
contra do que a favor. Por que será?
Gustavo: Saiu uma enquete que, os países
que não tem representante na Copa, ainda torcem para o Brasil. Talvez nos
outros países, aí vou dar um palpite, estejam tomados pela lógica torcedora. O
Brasil é um adversário no jogo. Apesar de eu torcer sempre contra os Estados
Unidos, era e é maravilhoso ver o time de basquete deles jogando. E não sei se
hoje a gente tem um jogo tão bonito e tão diferente quanto a gente tinha antes.
Todos esses torcedores continuam amando o futebol do Ronaldinho Gaúcho, o
drible, a brincadeira. O problema pode ser estético. O jogo do Brasil hoje não
é bonito, nosso time joga muito parecido com times europeus, até porque todos
os jogadores brasileiros jogam na Europa. Hoje, entre os 11 titulares, só o
Fagner não joga na Europa, mas já jogou. Antes, ninguém fazia o que o
Ronaldinho fazia. Tem a ver também como o Brasil como produto de exportação.
Era muito fácil gostar desses queridos que, quando jogam futebol até ganham,
mas não entram em outros lugares. E o Brasil, bem ou mal, esteve como sexta
economia do mundo (não está mais), pleiteou uma cadeira na ONU, tentou se
colocar como um país grande. Talvez a seleção brasileira pudesse ser entendida
como um produto de exportação, como a gente diz, pra gringo ver, como um
produto de venda. Hoje nosso produto é igual ao dos outros.
Sul21: Tu
pesquisas a questão da masculinidade no futebol. Agora, na Copa, a gente viu os
episódios de assédio, alguns protagonizados por brasileiros e sendo
relativizados. No meio do ano, a seleção feminina ganhou o heptacampeonato e
teve pouca repercussão na mídia e entre a torcida. Por que o futebol é um
ambiente masculino?
“O futebol está dentro de uma
cultura machista”. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Gustavo: A seleção feminina jogou a Copa
do Mundo no Canadá e a Marta colocou seus joelhos em gramado sintético. Duvido
que o Messi, Cristiano Ronaldo ou Neymar aceitassem isso. O SporTV, que
transmite a Copa do Mundo, transmitia a Copa do Mundo de mulheres no SporTV2,
porque no 1 passava a série B do Campeonato brasileiro, de futebol masculino.
Todo esporte é masculino. Pierre de Coubertin, quando criou os jogos olímpicos
modernos, ele fez uma atividade para homens e o esporte como um todo constrói
valores de masculinidade. Os homens que jogam futebol podem se querer mais
homens por isso. Se você não sabe jogar futebol, se você não gosta de jogar
futebol, você tem algum problema de masculinidade. As mulheres, quando jogam,
tendem a ser chamadas de “menos mulheres”. Em cada cultura, quando o esporte é
importante para ela, é um esporte de homens.
Com isso
a gente tem o jogo jogado por homens, a imprensa esportiva que é masculina, os
torcedores que são homens (ainda que tenha um aumento das mulheres e isso é uma
grande conquista). Num ambiente 100% masculino, comportamento mais brutos, mais
viris, são autorizados, os homens se dão esse direito. Se um homem diz que
gosta de futebol, outro diz pra ele: “que bom, qual teu time”. Se uma mulher
diz que gosta, perguntam qual a regra do impedimento, a escalação de 1923 do
Juventus da Moca no returno, porque a mulher precisa provar. Quando os
torcedores dizem que é uma brincadeira, que não é violência, o mais grave é que
eles não estão necessariamente mentindo. Eles aprenderam assim. O machismo, que
não é exclusividade do futebol, é da sociedade, nos autoriza a insultar
mulheres, a fazer piadas, provocações inadequadas.
Por mais
que a gente esteja vendo esses fenômenos horríveis, posso olhar pra isso como
“copo meio cheio” também. Posso dizer que em 2014, 2010, 2006 aconteceu também
e a gente nem reportava isso, porque as mulheres também entendiam que era assim
mesmo e aceitavam. A gente tem que pensar que o futebol está dentro de uma
cultura machista, tem um reforço porque é entendido como um ambiente exclusivo
masculino, que faz com que essas manifestações sejam autorizadas, como em
outros lugares não seriam. O que os brasileiros disseram na Rússia, não posso
dizer num ambiente de trabalho.
Sul21: E
as consequências disso? Uma pesquisa recente mostrou que o número de ligações
ao 180 (número para denunciar casos de violência contra mulher) aumenta em dias
de jogo de futebol, por exemplo.
Gustavo: É isso, é um país violentíssimo,
onde a cada 11 minutos uma mulher é estuprada. Quando você naturaliza o
machismo, em qualquer contexto, o futebol não é o único, mas é um importante,
entra junto nesse contexto e naturaliza porque “é brincadeira”. Mesmo que você
“esteja só brincando”, você está dizendo que pode estuprar uma mulher, que ela
é uma cadela, uma vagabunda, que ela não pode reclamar. Para esse ministro, que
é um imbecil, talvez dignidade seja para seres humanos e talvez pra ele
mulheres ainda não sejam humanas (o ministro do Turismo, Vinicius Lummertz, disse que episódios de assedio na Copa foram
exagerados porque “ninguém foi assassinado”). Porque, sempre que a gente
está discutindo homofobia, racismo, machismo, nós estamos falando de direitos
humanos e não há no mundo, ninguém, que seja contra os direitos humanos.
O
problema dos reacionários é quem eles entendem como humanos. Conversando com os
torcedores, se isso era xingamento ou brincadeira – eu parto da hipótese de que
é o primeiro, eles, o segundo – o que acontece é que, mesmo quem está
acompanhando, está entendendo que existe uma diferença muito importante entre
homens e mulheres, entre homens brancos e homens não-brancos, entre
heterossexuais e não-heteros. Mesmo que seja brincadeira, você está ensinando
que as mulheres são menos, que elas não são sujeitos, que eles podem ter
propriedade sobre seus corpos. Quando você faz piada sobre mulheres, você
diminui as mulheres e ensina isso às crianças. O exemplo mais clássico que
existe é quando uma mulher é abordada de forma inadequada numa festa e o
sujeito que fez a abordagem, quando vê que ela está acompanhada, pede desculpa
ao acompanhante.
Sul21: A
questão do racismo também está nessa Copa. Entre todos os técnicos, há apenas
um negro (do Senegal), os narradores seguem se referindo às seleções africanas
como “fisicamente fortes”, “futebol tático fraco”.
“Eu vou a estádio desde o final
da década de 1980 e sempre aconteceu” (casos de racismo). Foto: Guilherme
Santos/Sul21
Gustavo: Físicas, ingênuas, violentas.
Todos os jogadores africanos jogam na Europa. A Copa é um confronto entre as
confederações, até acaba suscitando discursos éticos, mas se parar para olhar,
nos Jogos Olímpicos, isso também acontece. Sempre tem alguém pra dizer que os
negros correm mais a curta distância. Só que a competição não é entre negros e
brancos, mas entre atletas de alto rendimento. Isso está dentro das ideias
pré-concebidas. Num confronto entre duas equipes , o futebol autoriza isso, ler
o confronto sempre de A contra B, ver que joga contra, nunca com, analisar os
dois times de forma separada, não pelo enfrentamento. Nessa diferenciação, se
tem uma seleção europeia e uma africana, onde a gente vai buscar os elementos
para descrevê-las? Na cultura. Não vamos buscar no que eles estão jogando. É o
que gente fala nas violências do futebol. Eu tive a oportunidade, durante a
pesquisa, de acompanhar duas vezes a torcida do Grêmio brigando com a
arbitragem. Uma vez com uma árbitra assistente, que marcou corretamente um
escanteio contra o Grêmio, num jogo contra o Vitória da Bahia, e ela virou
“puta”, “vagabunda”, “vadia”. No mesmo campeonato, o Grêmio jogou contra o
Cruzeiro e um bandeirinha homem, corretamente, marcou um pênalti contra o
Grêmio, porque a bola bateu no braço do zagueiro e o juiz não tinha visto. Ele
virou “viado”. Digamos que seja “só brincadeira”, por que eles não foram xingados
de “ladrão”, “burro”, “idiotas”? A gente busca elementos que estão de fora.
Sul21: No
Brasil, os debates de maior repercussão que a gente teve sobre racismo, nos
últimos anos, estiveram ligados ao futebol. O que faz com que ele consiga isso?
Gustavo: O futebol no Brasil é muito
importante. Não sei se deveria ser tanto, pra mim é, mas eu quero que as
pessoas que não dão bola para ele tenham direito de não achar isso. É a única
prática cultural em que o Brasil é o melhor do mundo, indiscutivelmente, então
tem esse tamanho e muito espaço de mídia. Tem muita televisão, câmera,
holofote, todo mundo grande olha para um estádio de futebol. Mesmo assim,
alguns podem achar que a gente começou a ter problemas de racismo em 2014. Não
é verdade, em 2014, a gente começou a dizer que não poderia mais acontecer. Eu
vou a estádio desde o final da década de 1980 e sempre aconteceu. Eu tendo a
ser um otimista, posso imaginar que essa série de violências que a gente tem
visto agora, podem ser, nesse primeiro momento, uma novidade positiva, porque a
gente está vendo práticas naturalizadas e dizendo que elas não podem continuar
assim.
Sul21:
Todas as questões que falamos até agora são de fora do campo. O que dentro dele
explica que o futebol tenha tudo isso catalisado?
Gustavo: Tem sociólogos, que usam uma
justificativa que eu acho um pouco conservadora, que falam da simplicidade do
jogo. É um jogo fácil, você adapta ele de qualquer maneira, qualquer um pode
jogar, porque, por exemplo, bola no chão é só chutar, mesmo que você seja muito
ruim, é um movimento um pouco mais natural. Mas eu tenho uma hipótese, um pouco
diferente do que eu ouço majoritariamente, que o futebol produz uma coisa que
os outros esportes não produzem,que é o torcedor de futebol. Isso me parece
fundamental. Os diálogos sobre futebol nivelam pessoas e aproximam. Essa figura
do torcedor faz com que ele procure o jogo, acompanhe seu time, ele é fiel,
permanente. Assistir alguns jogos do Grêmio é de um sofrimento estético…Eu não
esqueço um Gre-Nal, que foi 0 a 0, eu estava fora do país na época, terminou o
jogo e eu pensei “quem vai devolver essas duas horas que eu perdi?”, porque foi
horrível. A gente se mobiliza e não tem nenhuma garantia e continuamos
seguindo. O torcedor de futebol é uma figura sui generis, não só entre
esportes, mas inclusive, na vinculação com outros elementos culturais, outros
espetáculos. É o torcedor de futebol que dá a permanência. O Renato Gaúcho,
maior ídolo do Grêmio, somando os anos de jogador e técnico deve ter uns dez
anos de clube. O Grêmio tem 115 anos de existência, eu tenho 35 anos de Grêmio,
meu pai tem 65 anos de Grêmio. Quem faz isso continuar é o torcedor. Acho que
essa figura ajuda a explicar porque o futebol é um fenômeno tão diferente.
Sul21:
Ano passado, um apresentador de TV, Tiago Leifert, fez um texto na revista GQ criticando os jogadores de futebol
americano que se ajoelhavam durante o Hino dos Estados Unidos em protestos
contra Donald Trump, dizendo que “evento esportivo não era lugar de
manifestação política”. O que tu achas disso?
Gustavo: Tiago Leifert faz
entretenimento, não jornalismo esportivo e não tem problema nenhum nisso. Só
que tem uma coisa que a gente aprende logo quando começa a se envolver com
política. A gente aprende que só não acredita que política existe aquele que
está confortável com a situação da forma como está. Quando o Tiago Leifert diz
isso, o texto dele é extremamente político, porque não há ambiente sem
política. Só que é uma política hegemônica, de uma cara que é apresentador de
entretenimento no maior canal de televisão do país, que tem uma hegemonia que a
gente nem sabe quanto nos custa, e como ele está bem adaptado, tudo bem. Quem
acredita de verdade que não existe machismo? Homens. Quem acredita de verdade
que não existe racismo? Brancos. Quem acredita de verdade que não existe
homofobia? Heterossexuais. Como para eles é tudo tão naturalizado, eles são a
norma. Quero terminar otimista essa conversa, sempre se dizia que futebol e
política não se misturavam. Apesar de ela sempre ter estado presente, sempre se
disfarçava com essa frase. Quando a gente começa a dizer que algo não está bom,
é porque a gente está mexendo com o futebol e eu não sei o que vai acontecer.
Sendo parte dessa geração iludida com a constante progressão do
desenvolvimento, eu não posso mais ser ingênuo, de achar que essas coisas vão
ser sempre pra melhor. Acho que a gente colocou uma bola no meio de campo e tem
que jogar esse jogo.
“Estamos
vivendo um cenário de polaridades muito pesadas no país”. Foto: Guilherme
Santos/Sul21
Sul21:
Alguns jogadores de futebol já se manifestam no campo da política partidária.
Ronaldo apoiou Aécio Neves (PSDB), Ronaldinho Gaúcho declarou simpatia a Jair
Bolsonaro (PSL) e se filou ao seu partido. A Copa muda algo? Qual será a marca
deixada por ela?
Gustavo: Acho que o resultado dentro de
campo não. O professor Arlei Damo, da Antropologia da UFRGS, escreveu um texto,
“Que venha a Copa”, porque qual era o entendimento
dele? Nós estamos vivendo um cenário de polaridades muito pesadas no país, com
interrupção de diálogo, onde a gente está transformando pequenas diferenças em
desigualdades irreconciliáveis. A gente não está ouvindo, está só falando para
os mesmos, sem nenhuma possibilidade de conversa. Eu ainda acho que a maioria
das pessoas está em silêncio, que estaria disposta a conversar, mas não
encontra onde. A Copa do Mundo poderia ser boa nesse sentido, porque a gente
está um pouco extasiado e vamos ganhar 30 dias. Com a Copa, a gente ganhou 30 dias
mais perto da eleição, porque em algum momento, eu temi que a gente não
chegasse ao cenário eleitoral e agora isso fica mais difícil de acontecer.
Outra coisa, a Copa é uma diversão. Os coxinhas e petralhas, amarelos e
vermelhos, não podem nos roubar a alegria. Vamos gritar gol sim e nos abraçar
com as pessoas que a gente costumava abraçar, porque daqui a pouco, nessa
dicotomia política, a gente não vai poder mais. Ser feliz também é um ato de
resistência. Tomara que a Copa do Mundo nos dê 15 dias de felicidade.
https://www.sul21.com.br/entrevistas-2/2018/07/o-futebol-nunca-foi-o-opio-do-povo-diz-pesquisador-que-estuda-masculinidade-no-esporte/
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