Entrevistado
por Página/12, o pesquisador
sustenta que o segundo turno representa no Brasil “um autêntico plebiscito sobre se (esse país) deve
continuar sendo uma democracia
ou passar a ser uma ditadura de
novo tipo”. Abaixo, explica por que trabalhadores, jovens, setores médios,
afro-americanos, marginalizados, homens e mulheres do povo deram seu voto a um
candidato que grita aos quatro ventos e com orgulho que, caso seja presidente,
suas políticas não serão justamente a favor deles...
por Bárbara
Schijman, no jornal Página/12 e blog LeonardoBOFF.com
- Sociedade e Luta por Democracia no Brasil
Figura na Internet
Eis a entrevista abaixo:
Quais são
para você as razões do triunfo do candidato da ultradireita Jair Bolsonaro no 1º. turno ?
É uma
situação muito complexa porque o Brasil, neste momento, é quase um
laboratório de transformação política conservadora no continente. Não
somente no continente, no mundo. Penso que na primeira década do milênio o Brasil
foi, junto com outros países da América Latina, o país que mais mostrou
as potencialidades de uma transformação progressiva das sociedades altamente
desiguais, altamente discriminatórias, como são todas as sociedades que saíram
do colonialismo europeu. Os avanços foram notáveis, por exemplo, em termos de
fome. Durante tais períodos, as pessoas já não iam dormir com fome. Como dizia Lula, “meu desejo é que as pessoas comam três vezes ao
dia”. E muitas outras políticas que tentaram diminuir a pobreza, ampliar
o acesso à universidade, e também medidas antidiscriminatórias contra a população
negra, que é a maioria, mas que sempre foi uma minoria política. Também
foram conquistados avanços notáveis com políticas afirmativas, de cotas,
para as mulheres. Foi um progresso notável. E então, quase
repentinamente, tudo se derruba, tudo entra em colapso. Depois disto, os
elementos antidemocráticos da sociedade brasileira assumiram a liderança.
Poderíamos dizer que no tempo anterior a lógica democratizante da sociedade brasileira
tinha predomínio sobre a lógica antidemocrática, que é típica de uma sociedade
oligárquica, colonial, muito desigual e discriminatória. Este
desequilíbrio se transforma rapidamente como se fosse um pêndulo, onde as forças
antidemocráticas tomam a liderança.
De que
maneira fizeram isso?
Primeiro,
essas forças antidemocráticas de imediato questionam os resultados eleitorais
de 2014 da ex-presidenta Dilma, e começam de imediato um impeachment
e uma guerra total contra o PT. Esta guerra será realmente muito agressiva porque busca
eliminar rapidamente da memória do povo os benefícios do período anterior, ao
transformar o PT em um grupo de bandidos corruptos que desgraçaram o
país. Levou-se adiante uma demonização do PT terrível nos meios de
comunicação tradicionais, convencionais, sobretudo a partir da TV Globo,
e também nos jornais oligopólios. Foram todos unânimes em demonizar o PT.
Por isso, a narrativa que se impôs foi a narrativa da corrupção. A
partir daí, a narrativa politicamente correta é uma narrativa antipolítica,
contra a corrupção, uma política despolitizada. Temos que lutar contra a
corrupção e para isso é necessário que a polícia e o sistema judiciário atuem,
e a operação Lava Jato é o melhor exemplo de todo este movimento.
Uma primeira observação é que se deu uma espécie de reversão muito rápida e
muito surpreendente para muita gente. O Brasil, país do Fórum Social Mundial (FSM), país do Movimento dos
Sem Terra (MST), considerado o mais importante do continente e do
mundo, repentinamente vê atacadas todas estas conquistas e não reage de maneira
rápida. E isto irá durar até a prisão de Lula. Até Lula ser preso
não vimos um movimento social muito organizado de resistência a este golpe
institucional, e quando a resistência surge é quase uma resistência
negativa, ou seja, uma resistência para pedir a liberdade de Lula, não
mais pelas políticas daquele outro período, mas pela injustiça de sua
condenação. Isto foi uma primeira fase; depois entram em jogo outros fatores.
Quais,
por exemplo?
Acredito
que entraram outros fatores que de alguma maneira transbordaram as intenções
das oligarquias que organizaram o golpe. Eu acredito que muitas delas
organizaram o golpe com a intenção de restaurar a democracia; uma democracia que não ameace seus lucros.
Porque a resistência contra o PT começa quando há uma crise do capitalismo global, uma crise financeira após 2008, uma crise que vinha também de
uma certa atenuação do ritmo de desenvolvimento da China. Há uma crise
de lucros do capital e uma ameaça ao capital financeiro, então, de
imediato, tentam reagir. Não foram os empresários os primeiros a reagir, mas,
sim, o capital financeiro, que irá assumir a liderança. Irá abrir espaços para
forças que estavam latentes em uma sociedade colonial desigual, onde as
mudanças são recentes. Uma sociedade que começou a lutar contra o racismo
apenas dez anos antes; o racismo estava na cabeça das pessoas, inclusive
daquelas que foram beneficiadas por Lula.
Esses
avanços e essas reivindicações não conseguiram construir uma nova cultura
política?
Acredito
que as políticas não foram sustentáveis durante muito tempo para criar outra
cultura. O próprio PT não tentou criar outra cultura cidadã; tentou
criar mais consumidores, mas não uma cultura cidadã ou uma cultura camponesa de
comer coisas saudáveis, por exemplo. Era dinheiro para ir comer comida lixo do fast
food e as comidas todas processadas em detrimento da agricultura camponesa.
Então, esses demônios que foram soltos e que vem de um passado de grandes desigualdades surgiram exatamente na pessoa de Bolsonaro.
Esta corrente está em todo o continente. Vemos de alguma maneira o que acontece
na Argentina, e muito claramente o que passa na Colômbia, que é
muito grave, e de alguma maneira no Equador também. O avanço das forças
democráticas será rapidamente neutralizado por forças antidemocráticas que
estavam adormecidas.
Mas, como
se explica que um setor tão amplo das classes populares tenha apoiado um
candidato que se apresenta abertamente contra as políticas que os beneficiaram?
Primeiro,
as medidas antipopulares do governo após o golpe, que são muito claras, não têm
um impacto imediato na vida das pessoas, como havíamos visto em Portugal e
na Europa com as chamadas políticas de austeridade. Algumas medidas não entram no
bolso das famílias de um dia para o outro. Por exemplo, Temer quer privatizar e eliminar o sistema de saúde,
mas ainda não fez isso, não teve a oportunidade ainda. O que quero dizer é que
os impactos nas famílias, nos bolsos das pessoas, demoram dois ou três anos a
repercutir. Por isso, em uma parte inicial é fácil para os meios de comunicação
convencer as pessoas. Os meios de comunicação foram muito agressivos e levaram
a situação da política para a ética. Não são as medidas que interessam. E ainda
hoje vemos que Bolsonaro não fala de sua política econômica. É a
ética contra a corrupção; os honestos contra os corruptos. Agora, todas
as pessoas estão a favor dos honestos, então se os meios de comunicação
bombardeiam os dias com a luta contra corrupção…
O segundo
fator que entra aqui é a dimensão internacional. No Brasil, e não
somente, atuam os meios de comunicação oligopólicos e as oligarquias locais. Não
se deram conta de que o imperialismo norte-americano estava buscando uma
oportunidade para reverter todas estas políticas progressistas que ameaçavam
seu domínio, que se atenuou um pouco quando os Estados Unidos estiveram
muito preocupados com o Iraque e abandonaram um pouco o continente. Mas,
o golpe de Honduras foi o primeiro sinal de que os Estados Unidos
estavam voltando ao continente. Desde então, em 2012, Fernando Lugo, no Paraguai, e depois Dilma.
Aqui, é possível ver que há outra dimensão imperial muito forte, que não é a
dimensão da imposição militar da ditadura, mas a transformação de uma democracia
nacionalista e desenvolvimentista, mas nacionalista, pela
substituição de uma “nova” democracia, como a chamam agora os militares no Brasil.
Em que
consiste essa “nova” democracia?
É uma
democracia sem Partido dos Trabalhadores, uma democracia amiga dos
mercados e uma democracia que abre toda a economia ao lucro do capital
internacional. Bolsonaro é o símbolo de tudo isto. E agora se torna
claro todo o apoio internacional, do mercado digital, da propaganda digital, a Bolsonaro.
É uma conjunção de trabalho militar e econômico internacional, duas novas
forças que atuam no continente. Os militares com políticas de contrainsurgência
psicossociais: não são armas, são fake news, ferramentas bem treinadas por serviços de
inteligência da Inglaterra e Estados Unidos ao longo dos tempos.
Também há os think tanks dos Estados Unidos, que falam de privatização,
de liberalização. Há, aqui, uma estratégia do continente global do
império em relação a que o Brasil era particularmente importante
neutralizar pelos BRICS. Uma política fundamental.
Daí você
falar do Brasil como um laboratório…
Se vence
a extrema de Bolsonaro, esta corrente irá ganhar um poder enorme, não
somente no continente, mas também na Europa. A Itália será o primeiro alvo desta política
de extrema-direita, que segue também com a Hungria e a Polônia.
Se os democratas brasileiros conseguirem vencer esta corrente antidemocrática
de extrema-direita, será um sinal muito poderoso para todo o continente de que
esta gente não é invencível, e de que a internet não faz tudo. É nisto que
estamos. É uma situação muito dramática, porque neste momento, no Brasil,
se joga o destino da democracia no continente, e no mundo de alguma maneira.
Acredita
que Bolsonaro realmente levaria à prática o que sustenta seu discurso radical?
Penso que
se Bolsonaro vencer será ainda pior do que diz, porque as medidas serão
brutais e haverá resistência popular. E como existirá resistência, os militares
já estão dizendo que é preciso manter a paz no país, e manter a paz para eles é
reprimir. Bom, de fato, a repressão já está nas ruas. Os grafites que aparecem
nos banheiros das universidades dizem que, se Bolsonaro vencer, a
universidade será Columbine (em alusão ao massacre da Escola
Secundária de Columbine), ou seja, um massacre na universidade. É muito
preocupante porque para os mercados financeiros não interessa que Bolsonaro
seja racista, sexista ou homofóbico, porque o que querem é
ver como irá regular a economia. Sempre com a ideia de que quando começar a
crescer a economia, tudo será melhor. Como fizeram de fato com a Argentina,
que agora está sob o comando do Fundo Monetário Internacional (FMI). Tentaram fazer
o mesmo com os portugueses e não funcionou. Sabemos que é uma ilusão, como
sabemos disso na Europa. Tentaram dizer o mesmo aos portugueses e não
funcionou, mas a Grécia ainda está lutando.
Realmente,
acredito que com Bolsonaro passaremos a um momento muito difícil, e não
sei se a democracia sobrevive no Brasil. Com Haddad não seria fácil também, porque os fascistas estão
soltos nas ruas neste momento, e não terão os militares ao seu lado, estão do
lado de Bolsonaro. Por outro lado, se algo fatal ocorresse com Bolsonaro,
seu vice-presidente é general. Ou seja, os militares estão seguros. Não se fala
da doença de Bolsonaro, há um mistério enorme. Se algo lhe ocorrer, tem
um vice que é ainda mais agressivo em seu discurso. Esta lógica dos militares,
de retornar à política por via democrática, é o que me preocupa. A Argentina,
de alguma maneira, eliminou essa possibilidade através de uma transição em que
os militares foram para a prisão. No Brasil não. No Brasil, os
militares condicionaram a transição até hoje. Agora dizem que não são cidadãos
de segunda classe e que querem intervir na política. E estão fazendo isso
através de Bolsonaro e seu vice.
O que
acontece com os partidos de esquerda brasileiros?
Acredito
que no Brasil a unidade das esquerdas poderia ter sido diferente
do que foi, e talvez um candidato como Ciro Gomes pudesse ser melhor candidato que Haddad,
porque a demonização do PT foi muito forte. Ciro Gomes foi
ministro de Lula, mas não era do PT. Pela situação, acredito que
neste momento a luta não é “esquerdas do mundo, unidos”, mas “democratas do
mundo, unidos”. Se a extrema-direita chega à presidência, o que irá
criar não é um fascismo de tipo antigo, mas um fascismo de tipo novo,
isto é, reduzir a democracia ao mínimo, com muita exclusão social e muita
repressão. É por isso que há duas coisas em Bolsonaro muito importantes:
o terror e a ideologia. As duas são fortes. O regime pode ser formalmente
democrático, mas a sociedade é cada vez mais fascista. Dissemina-se um fascismo
social e se impulsiona a lógica da guerra civil.
Sustenta
que “a tragédia de nosso tempo é que a dominação está unida e a resistência
está fragmentada”. Considera que isto explica, em parte, o presente do Brasil?
O drama é
que o caso brasileiro mostra muito claramente que a direita se serve da
democracia, mas não quer servir à democracia. Se lhe é útil bem, mas
demonizam, fazem golpes e a podem destruir. Por isso disse que as esquerdas em
sua pluralidade são as que podem garantir, neste século reacionário que temos,
a defesa das democracias. Mas, a força das forças de direita é tão
grande que as esquerdas têm uma dificuldade enorme para discutir suas
diferenças e buscar uma alternativa. Neste momento, vemos no Brasil que todos
se juntam para defender Haddad, que é correto, mas é preciso fazer isso
sem condições. Não é de se esperar que haja uma renovação ou repensar as
esquerdas neste contexto, porque é preciso defender o mínimo, que é a
democracia. Necessitamos que a esquerda defenda a democracia, e para a defender
eficazmente, a esquerda tem que se transformar. Tem que se articular com os movimentos
sociais antissexistas e antirracistas, os sindicatos têm que
estar unidos com os outros movimentos, e os partidos têm que se tornar movimentos
com democracia participativa interna, que é a única que nos pode defender da
corrupção, porque a corrupção foi muito grande dentro do PT. Uma coisa é
a corrupção para fazer campanha política e outra coisa para ter um apartamento,
como se disse do caso de Lula, que é necessário provar judicialmente.
Agora, que houve corrupção, houve corrupção.
A
esquerda deve dizer “corrupção zero”. Não pode haver um governo de esquerda com
um mínimo de corrupção. E aqui há uma esperança porque Haddad é dentro
do PT o político que representa o mais honesto. Nesta renovação da qual
falo, é preciso discutir as diferenças e unir as esquerdas e o que é comum sem
deixar de ter as identidades, como estamos fazendo em Portugal. Está se
tentando a união das esquerdas, mas sabemos que as condições defensivas tornam
isso muito difícil. Agora, no Chile, há uma Frente Ampla (FA);
é interessante. Ou seja, estão tentando unir outra base. É um processo
histórico longo. Nós somos impacientes, mas a história tem muita paciência.
Diz-se
que no Brasil a Igreja Evangélica saiu para apoiar abertamente Bolsonaro.
Ela pode ser considerada um ator com capacidade de mobilizar massas?
A Igreja
evangélica na Argentina e Brasil são duas fases do mesmo
processo. Avança sempre por questões que tem a ver com a família, a
sexualidade, o aborto, etc. Contudo, quando tem bastante poder, toma
uma posição política global, já não é o aborto, é o candidato mais fascista e
mais reacionário que possam imaginar. E vemos isso agora na fase mais avançada
das igrejas evangélicas no Brasil, que disseram muito claramente
que estão por trás de Bolsonaro e o financiam, o promovem. Ou seja, já
não é uma política de orientação sexual, de direitos das mulheres,
ou direitos reprodutivos, agora é a política global que expõe claramente
seu alvo fundamental: uma economia neoliberal, aberta e à disposição dos
Estados Unidos. As igrejas evangélicas estão muito ligadas às
igrejas evangélicas dos Estados Unidos, como na África, são elas
as missionárias do neoliberalismo global e obviamente, por implicação,
do imperialismo norte-americano. Começam por questões não políticas, a
família, a concepção, por exemplo, até chegar a um momento em que adquirem
força e dizem “este é o candidato”, e então entram diretamente na política.
O que
acontece com a Igreja Católica?
A Igreja
Católica ficou paralisada em todo este processo. Muito tardiamente, agora
com o Papa Francisco, tenta animar a dizer, ao menos, que não se
deve votar em Bolsonaro, ou que se deve votar para defender a
democracia. Contudo, a Igreja Católica está desarmada. Isto foi um
processo histórico que vem desde o Papa João Paulo II em desarmar a Teologia da Libertação e armar a Teologia da
Prosperidade. A primeira era católica, a segunda é evangélica. Caiu a
primeira, subiu a segunda. As pessoas precisam de religião, a católica se
fragilizou nos bairros e na periferia, e as evangélicas entraram.
A poucos
dias do segundo turno no Brasil, mais esperança que medo, ou mais medo que
esperança?
Mais medo
que esperança. O que é necessário notar é que o Brasil está testando
instrumentos que possam ser úteis ao mundo em geral. Por exemplo, acabam de
fazer um pedido internacional ao Google e Facebook sobre o WhatsApp. Mostrou-se claramente que somente 8% da rede
de WhatsApp que foi por Bolsonaro veiculou verdades, 8%,
comprovado por análises de técnicas bem executadas no Brasil. Então,
solicitaram ao Facebook e a Zuckerberg que limitem as
possibilidades de ampliação disto, mas o Facebook e o WhatsApp
estão dizendo que é muito tarde, que não é possível; não querem fazer isso. Na
Índia, quando aconteceu a onda de massacres por culpa de notícias falsas que
correram por WhatsApp, este pôde limitar a divulgação das notícias
falsas. O Brasil é uma prova fabulosa para isto, e muito inquietante. Como
diria o grande poeta português Fernando Pessoa, é um tempo de
inquietação, que irá passar. Mas, é preciso dizer às pessoas que estão na luta,
lutem. Há energias da sociedade brasileira que estão emergindo agora. Vão me
dizer, tarde demais? Não sei… Veremos.
*Boaventura de Sousa Santos (Coimbra, Portugal, 1940) é uma
das vozes mais autorizadas dentro da sociologia jurídica e uma referência
indiscutível no pensamento político e social contemporâneo.
Tradução: Cepat
Fonte: IHU 23/11/18
https://leonardoboff.wordpress.com/2018/10/24/brasil-democracia-ou-ditadura-de-novo-tipo-boaventura-de-s-santos/
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