A vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno
significará a detonação simultânea de três bombas-relógio que estão descritas abaixo, e dificilmente a
democracia brasileira sobreviverá à destruição que causarão
por Boaventura de Souza Santos para Midia
Ninja – Sociedade e Luta Democrática Brasileira
29.09.2018 – #EleNão em São Paulo. Fotos: Márcia Zoet /foto do illumina
A
democracia brasileira está à beira do abismo. O golpe institucional que se
iniciou com o impeachment da Presidente Dilma e prosseguiu com a injusta prisão
do ex-presidente Lula da Silva está quase consumado. A consumação do golpe
significa hoje algo muito diferente do que foi inicialmente pensado por muitas
das forças políticas e sociais que o protagonizaram ou dele não discordaram.
Algumas
dessas forças agiram ou reagiram no convencimento genuíno de que o golpe visava
regenerar a democracia brasileira por via da luta contra a corrupção; outros
entendiam que era o modo de neutralizar a ascensão das classes populares a um
nível de vida que mais tarde ou mais cedo ameaçaria não apenas as elites mas
também as classes médias (muitas delas produto das políticas redistributivas
contra as quais agora se viravam).
Obviamente,
nenhum destes grupos falava de golpe e ambos acreditavam que a democracia era
estável. Não se deram conta de que havia três bombas-relógio construídas em
tempos muito diversos mas podendo explodir simultaneamente. Se tal ocorresse, a
democracia revelaria toda a sua fragilidade e possivelmente não sobreviveria.
A
primeira bomba-relógio foi construída no tempo colonial e no processo de independência, foi
acionada de modo particularmente brutal várias vezes ao longo da historia
moderna do Brasil mas nunca foi eficazmente desativada. Trata-se do DNA de uma
sociedade dividida entre senhores e servos, elites oligárquicas e povo ignaro,
entre a normalidade institucional e a violência extra-institucional, uma
sociedade extremamente desigual em que a desigualdade socioeconômica nunca se
pôde separar do preconceito racial e sexual. Pese embora todos os erros e
defeitos, os governos do PT foram os que mais contribuíram para desativar essa
bomba, criando políticas de redistribuição social e de luta contra a
discriminação racial e sexual sem precedentes na história do Brasil. Para a
desativação ser eficaz seria necessário que essas políticas fossem sustentáveis
e permanecessem por várias gerações a fim de a memória da extrema desigualdade
e crua discriminação deixar de ser politicamente reativável. Como tal não
aconteceu, as políticas tiveram outros efeitos mas não o efeito de desativar a
bomba-relógio. Pelo contrário, provocaram quem tinha poder para a ativar e a
fazê-lo quanto antes, antes que fosse tarde de mais e as ameaças para as elites
e classes médias se tornassem irreversíveis. A avassaladora demonização do PT
pelos média oligopolistas, sobretudo a partir de 2013, revelou a urgência com
que se queria pôr fim à ameaça.
A segunda
bomba-relógio foi
construída na ditadura militar que governou o país entre 1964 e 1985 e no modo
como foi negociada a transição para a democracia. Consistiu em manter as Forças
Armadas (FFAA) como último garante da ordem política interna e não apenas como
garante da defesa contra uma ameaça estrangeira, como é normal nas democracias.
“Último” quer dizer em estado de prontidão para intervir em qualquer momento
definido pelas FFAA como excepcional. Por isso, não foi possível punir os
crimes da ditadura (ao contrário da Argentina mas na mesma linha do Chile) e,
pelo contrário, os militares impuseram aos constituintes de 1988 28 parágrafos
sobre o estatuto constitucional das FFAA. Por isso, também muitos dos que
governaram durante a ditadura puderam continuar a governar como políticos
eleitos no congresso democrático. Apelar à intervenção militar e à ideologia
militarista autoritária ficou sempre latente, pronta a explodir. Por isso,
quando os militares começaram a intervir mais activamente na política interna
nos últimos meses (por exemplo, apelando à permanência da prisão de Lula) isso
pareceu normal dadas as circunstâncias excepcionais.
A
terceira bomba-relógio foi construída nos EUA a partir de 2009 (golpe institucional nas
Honduras) quando o governo norte-americano se deu conta de que sub-continente
estava a fugir do seu controlo mantido sem interrupção (com excepção da
“distração” em Cuba) ao longo de todo o século XX. A perda de controlo continha
agora dois perigos para a segurança dos EUA: o questionamento do acesso
ilimitado aos imensos recursos naturais e a presença cada vez mais preocupante
da China no continente, o país que, muito antes de Trump, fora considerado a
nova ameaça global à unipolaridade internacional conquistada pelos EUA depois
da queda do Muro de Berlim.
A bomba
começou então a ser construída, não apenas com os tradicionais mecanismos da
CIA e da Escola Militar das Américas, mas sobretudo com novos mecanismos da
chamada defesa da “democracia amiga da economia de mercado”. Isto significou
que, além do governo dos EUA, a intervenção poderia incluir organizações da
sociedade civil vinculadas aos interesses econômicos dos EUA (por exemplo, as
financiadas pelos irmãos Koch). Portanto, uma defesa da democracia condicionada
pelos interesses do mercado e por isso descartável sempre que os interesses o
exigissem. Esta bomba-relógio mostrou que já estava operacional no Brasil a
partir dos protestos de 2013. Foi melhorada com a oportunidade histórica que a
corrupção política lhe ofereceu. O grande investimento norte-americano no
sistema judicial vinha do início dos anos de 1990, na Rússia pós-soviética e
também na Colômbia, entre muitos outros países.
Quando a
questão não é de “regime change”, a intervenção tem de ser despolitizada. A
luta contra a corrupção é isso. Sabemos que os dados mais importantes da
operação Lava-Jato foram fornecidos pelo Departamento de Justiça dos EUA. O
resto foi resultado da miserável “delação premiada”.
O juiz
Sergio Moro transformou-se no agente principal dessa intervenção imperial. Só
que a luta contra a corrupção por si só não seria suficiente no caso do Brasil.
Era suficiente para neutralizar a aliança do Brasil com a China no âmbito dos
BRICS, mas não para abrir plenamente o Brasil aos interesses das
multinacionais. É que, em resultado das políticas dos últimos quarenta anos (e
algumas vindas da ditadura), o Brasil teve até há pouco imensas reservas de
petróleo fora do mercado internacional, tem duas importantes empresas públicas
e dois bancos públicos, e 57 universidades federais completamente gratuitas. Ou
seja, é um país muito longe do ideal neoliberal, e para dele o aproximar é
preciso uma intervenção mais autoritária, dada a aceitação das políticas
sociais do PT pela população brasileira. E assim surgiu Jair Bolsonaro como
candidato “preferido dos mercados”.
O que ele
diz sobre as mulheres, os negros ou os homossexuais ou a tortura pouco
interessa aos “mercados”, desde que a sua política econômica seja semelhante à
do Pinochet no Chile. E tudo leva a crer que será porque o seu economista-chefe
tem conhecimento direto dessa infame política chilena. O político de
extrema-direita norte-americano Steve Bannon apoia Bolsonaro, mas é apenas o
balcão da frente do apoio imperial. Os analistas do mundo digital estão
surpreendidos com a excelência da técnica da campanha bolsonarista nas redes
sociais. Inclui micro-direcionamento, marketing digital ultra-personalizado,
manipulação de sentimentos, fake ews, etc. Para quem assistiu na semana passada
na televisão pública norte-americana (PBS) ao documentário intitulado “Dark
Money”, sobre a influência do dinheiro nas eleições dos EUA, pode concluir
facilmente que as fakenews (sobre crianças, armas e comunismo, etc.) no Brasil
são tradução em português das que o “dark money” faz circular nos EUA para
promover ou destruir candidatos. Se alguns dos centros de emissão de mensagens
estão sediados em Miami e Lisboa é pouco relevante (apesar de verdadeiro).
A vitória
de Jair Bolsonaro no segundo turno significará a detonação simultânea destas
três bombas-relógio. Dificilmente a democracia brasileira sobreviverá à
destruição que causarão.
Por isso,
a segunda volta é uma questão de regime, um autêntico plebiscito sobre se o
Brasil deve continuar a ser uma democracia ou passar a ser uma ditadura de tipo
novo. Um livro meu muito recente circula hoje bastante no Brasil. Intitula-se
“Esquerdas do Mundo, uni-vos!” Mantenho tudo o que digo aí, mas o momento
obriga-me a um outro apelo mais amplo: Democratas brasileiros, uni-vos! É certo
que a direita brasileira revelou nos últimos dois anos um apego muito
condicional à democracia ao alinhar com o comportamento descontrolado (mas bem
controlado noutras paragens) de parte do judiciário, mas estou certo de que
largos sectores dela não estarão dispostos a suicidar-se para servir “os
mercados”. Têm de unir-se ativamente na luta contra Bolsonaro. Sei que muitos
não poderão recomendar o voto em Haddad, tal é o seu ódio ao PT. Basta que
digam: não votem em Bolsonaro. Imagino e espero que isso seja dito publicamente
e muitas vezes por alguém que em tempos foi um grande amigo meu, Fernando
Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil e, antes disso, um grande sociólogo e
doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra, de quem eu fiz o elogio.
Todos e todas (as mulheres não vão ter nos próximos tempos um papel mais
decisivo para as suas vidas e a de todos os brasileiros) devem envolver-se
ativamente e porta-a-porta. E é bom que tenham em mente duas coisas. Primeiro,
o fascismo de massas nunca foi feito de massas fascistas, mas sim de minorias
fascistas bem organizadas que souberam capitalizar nas aspirações legítimas dos
cidadãos comuns a viverem com um emprego digno e em segurança. Segundo, ao
ponto que chegamos, para assegurar uma certo regresso à normalidade democrática
não basta que Haddad ganhe, tem de ganhar por uma margem folgada.
* Boaventura de Sousa Santos - professor e sociólogo
português, pensador crítico da esquerda mundial.
http://midianinja.org/boaventurasousasantos/democratas-brasileiros-uni-vos/
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O comentário será analisado para eventual publicação no blog