Reconhecer os limites do que foi a experiência
do outro e mesmo das outras gerações, para seguir compondo movimento
por Lucia
Serrano Pereira * no Sul 21 – Sociedade e Dramas do Ser
Foto no Sul21
Encontro
com o livro que junto a este título acrescenta: fragmentos sobre trauma,
memória e herança. Tem leituras que ajudam a acompanhar nossos tempos, as
questões que se apresentam, com as quais lidamos, e se tornam nossas
companheiras por trechos do caminho, mais permanentes ou mais contingenciais.
Aqui,
três termos de grande concentração. Trauma, memória e herança. E que foram
reunidos de forma muito particular, ao mesmo tempo íntima, familiar e coletiva.
Daniel, jovem estudante vive no Brasil e viaja a Israel, onde nasceu, para um
intercâmbio. Estando lá se organiza uma excursão temática sobre a Shoah para a
Polônia, estudantes de vários países.
Seus avós
vivem em Israel, e ele vai visitá-los. Morando no Brasil desde a infância, só
havia encontrado os avós por duas vezes, desde então. Ao final da viagem, 2008,
o re-encontro.
Até então
a Shoah, a II Guerra, eram assuntos importantes, relevantes. Mas nos seminários
de preparação à incursão na Polônia acontece algo que reverbera em outro ponto.
Ouve um testemunho, uma senhora idosa que fala de sua infância polonesa, da
passagem pelos campos de concentração, e por fim, da libertação. E lhe ocorre
que nunca tinha escutado justamente a história de seus avós, eles mesmos
sobreviventes da Shoah. E é o que pede a eles. Para sua surpresa dizem que não
podem ajudá-lo, que estavam velhos e já não se lembravam dos detalhes. Por que
esta resposta? Como entendê-la?
Ele
insiste e Izhak e Miriam terminam por entregar umas gravações, vídeos que
haviam feito há anos por encomenda de um programa de pesquisa americano.
Começam a assistir na TV, o mal-estar entre eles se instalando. Daniel decide
então copiar os vídeos para assistir no Brasil. E quando chega de volta
descobre que havia trazido apenas telas pretas, sem nada. Nem áudio, nem
imagem. Frustração.
É só em
2014, acompanhando o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que retorna às
questões da memória e dos efeitos traumáticos, desta vez relativos aos efeitos
que se mantém nas famílias dos desaparecidos políticos, daqueles que
atravessaram os tempos da ditadura. Nova volta. Decide retomar então a busca
dos testemunhos dos avós. Encontro com as narrativas do trauma, que ao mesmo
tempo dizem e lidam com a impossibilidade de transmitir aquilo que ficou
paralisado, coagulado, truncado em suas histórias de vida.
E o
trabalho acontece, agora testemunho, leituras, pesquisa. Outro momento.
“O que?
Vocês ainda estão vivos?” – fragmento de um dos testemunhos – é a pergunta que
Izhak recebe quando volta à sua casa, ao fim de tudo, da guerra. “A primeira
pergunta que eu simplesmente não soube responder”, ele diz.
Daniel busca
a transmissão.
E salta
do livro, como efeito do traçado a questão/efeito: o que é tornar-se um
herdeiro? Como pensar o trabalho de herdar? Como é possível herdar?
Perguntas
que abrem uma complexidade viva, ativa, pulsante.
Herdar
como operação subjetiva. Como movimento que faz furo nas fixações. Como poder
encontrar de que modo podemos estar imbricados no traumático que concerne às
histórias vividas pelos outros. Herdar pelo desejo de escutar e de acolher, e
mesmo de se reconhecer parte disso. Para que seja possível recompor não um
passado ou algum tipo de retorno (impossível, de qualquer modo), mas novas
possibilidades de viver.
Herdar
para não nos sentirmos tão sozinhos e para que possamos transmitir. Romper com
a “cadeia de transmissões interrompidas” oferecendo outro rumo, diferente do
que incorporar e repetir.
“O lugar
do herdeiro, em sua transitoriedade e instabilidade, é construído justamente
nos espaços vazados que caracterizam o testemunho e a herança”, vai concluindo
Daniel.
O que
fica como apontamento importante: é preciso “abrir espaço” para herdar. Posição
ativa que passa por suportar as brechas incertas, incompletas, das narrativas
que se transmitem; aceitar o que de sintomático também vem na transmissão (
para poder fazer algo com isso); reconhecer os limites do que foi a experiência
do outro e mesmo das outras gerações, para seguir compondo movimento.
(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da
Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura
Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
https://www.sul21.com.br/colunas/coluna-appoa/2018/11/voces-ainda-estao-vivos/
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