Ao perguntar se há fascismo na Lava Jato, o
que se pretende é refletir sobre o processo histórico mais amplo do qual o MPF
(Ministério Público Federal) tornou-se protagonista. No fascismo histórico,
havia boas intenções no esforço de eficientização dos processos sociais. Pode
haver boas intenções na autonomização da Lava Jato e em sua institucionalização
na forma de uma fundação privada. Mas há claro desrespeito às regras
constitucionais da gestão da vida democrática
por Wilson Rocha F.
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- Sociedade e Ministério
Público e o fascismo
A
pergunta é grave, porque lança um anátema sobre a mais significativa ação do
Ministério Público no combate à corrupção. Se a resposta é afirmativa e parte
de um membro da instituição, o caso é gravíssimo, porque se atribui sempre
algum nível de credibilidade à fala do insider. E a gravidade do
libelo poderá lançá-lo a um ostracismo impiedoso. Feitas as contas, vamos à
tarefa.
O
fascismo é um fenômeno complexo, que sofreu os males de sucessivas
apropriações, filiações, mutações e desdobramentos. Embora seja a Itália o
berço do fascismo, foi a ascensão de Hitler na Alemanha que fez do fascismo um
fenômeno mundial. Não havia racismo no arco-íris confuso de ideias políticas
que Mussolini mobilizou. E não era possível antever as câmaras de gás em sua
fala carismática. Mas a filiação de Hitler ao fascismo é um consenso histórico,
responsável talvez pela carga semântica marcadamente negativa que gravita em
torno da expressão.
Os
múltiplos fascismos que pulularam no mundo tornam difícil a tarefa de discernir
um ideário comum, embora, com certa facilidade, pudéssemos apontar, na década
de 1930, os regimes de inspiração fascista. Não se tratava de uma forma de
organização do estado, tampouco de uma teoria política. Era retoricamente
revolucionário porque prometia uma radical transformação da sociedade, embora
conservador em sua promessa de assegurar às classes altas e médias a manutenção
da ordem e da moral tradicionais. Ensina Hobsbawm, em Era dos extremos,
que “os fascistas eram os revolucionários da contra-revolução: em sua
retórica, em seu apelo aos que se consideravam vítimas das sociedade, em sua
convocação a uma total transformação da sociedade”; “denunciavam a emancipação
liberal […] e desconfiavam da corrosiva influência da cultura moderna,
sobretudo das artes modernistas” (p. 121).
Portanto, embora se trate de um fenômeno datado
historicamente – em sentido estrito, o fascismo refere-se ao regime político
inaugurado por Mussolini na Itália dos anos 1920 – há desdobramentos posteriores
que mantém um núcleo semântico essencial, caracterizado pelo nacionalismo, pelo
antiliberalismo e pelo anticomunismo. Na prática, expressava-se como um
movimento de massas, articulado em torno de uma liderança política carismática
que dispensava a institucionalidade política representativa. Retenho aqui a
imagem essencial do fascismo: o machado envolto por um feixe de varas. Uma
imagem simplificadora e unificadora da sociedade, direta e firmemente atada ao
Estado, sem corpos intermediários ou subsidiários, inteiramente mobilizada ou
instrumentalizada como ferramenta de poder.
As corporações tradicionais ralharam diante da
ascensão fascista, exatamente pela dispensa de sua intermediação na construção
do poder estatal. Registra Hobsbawm que “o único grupo que realmente
lançou uma revolta contra Hitler – e foi consequentemente dizimado – foi o
velho exército prussiano aristocrático” (p. 131). Sob o nazismo, o
sistema de justiça adaptou-se à nova realidade política, substituindo o
brocardo “nullum crimen sine lege” pela assustadora fórmula “nullum crimen sine
poena”, sinalizando uma expansão do punitivismo estatal, em prejuízo dos
princípios liberais clássicos.
Dito isso, a aproximação da Lava Jato com o fascismo
certamente guarda dificuldades. Além do distanciamento histórico, há na
atualidade um conjunto de atores e instituições inédito. Contextualizando, no
limiar do século XXI, o neoliberalismo reformulou a administração pública
impondo-lhe métricas de eficiência com pouca permeabilidade democrática. O
ativismo do poder judiciário foi fomentado e, depois, aperfeiçoado em complexos
processos de planejamento estratégico. A autonomização do judiciário foi
tolerada na medida em que percebida como um instrumento de eficientização do
próprio estado. Novos tempos, certamente.
A crise capitalista iniciada em 2008 fez crescer a
insatisfação social e estimulou novas formas de ação política, com forte
questionamento das instâncias tradicionais de representação. Novas formas de
mediação social desafiaram os mecanismos tradicionais de intermediação
política. Entra aqui o fenômeno radicalmente novo das redes sociais. No sistema
de justiça, o mural da repartição, o edital, as portarias tornaram-se
anacrônicos diante da velocidade e dos baixos custos das redes sociais. Para o
Ministério Público, moldado constitucionalmente para a defesa da ordem
democrática, tornou-se sedutor atravessar o caminho das representações
tradicionais – partidos políticos e parlamento, sobretudo – para construir
diretamente com o corpo social novos consensos democráticos. A burocracia bem
formada, situada no topo da Administração, não resistiu à tentação e foi às
ruas.
O capital institucional acumulado em décadas de
atuação comprometida com a promoção de direitos não dispensou a instituição de
fazer promessas revolucionárias para mobilizar as massas, a principal delas, o
fim da corrupção. A promessa – efetivamente revolucionária – arregimentou
setores heterogêneos da sociedade e o desiderato cumpriu-se com o
fortalecimento dos setores da instituição encarregados da persecução penal e do
combate à corrupção.
Até aqui, poder-se-ia discutir o acerto da
estratégia, a efetividade dos instrumentos propostos ou os limites a serem
observados pelo Ministério Público em sua interlocução direta com a sociedade.
Mas não haveria que se falar em fascismo. A Lava Jato, embora ensaiasse, não
havia ainda lançado um esforço sistemático de mobilização popular. A virada
ocorre com o projeto das “Dez medidas contra a corrupção”. Tratava-se de um
projeto de lei redigido nos gabinetes do Ministério Público Federal, mas
apresentado à sociedade como um projeto de lei de iniciativa popular.
Lançada pela Lava Jato, a iniciativa é encampada
pela cúpula da instituição e corre o Brasil financiada com recursos do
Ministério Público Federal. Servidores públicos receberam incentivos funcionais
para colher assinaturas em diversos espaços sociais. Procuradores da República
viajaram pelo país divulgando o projeto de lei. Projeto de lei apresentado como
de iniciativa popular, mas elaborado por funcionários públicos, divulgado em
campanhas oficiais de marketing, com coleta de assinaturas financiada com
recursos públicos. O paradoxo era evidente, mas também era conveniente.
Tratá-lo como um projeto de iniciativa popular amarfanhava legitimidade à
proposta e incrementava o capital institucional em meio a uma cruzada contra
poderosos. Havia guerreiras e guerreiros sinceramente devotados na infantaria.
Mas não houve cálculo estratégico. O Congresso Nacional acusou a manobra.
Figura na
internet
Não teço comentários sobre o conteúdo da proposta,
apenas chamo a atenção para o flerte com uma estratégia fascista: a promessa
revolucionária, a mobilização das massas, o apagamento da distinção formal e
essencial entre Estado e sociedade. Não faltou o personalismo de um herói, o
apelo aos valores tradicionais, o medo da classe média frente à crise
econômica, os escândalos de corrupção desencadeados por um governo de esquerda.
O avanço da operação policial-judicial proporcionou méritos concretos no
combate à criminalidade, comparáveis aos de Mussolini. Ensina Hobsbawm que o
fascismo foi “o único regime italiano a conseguir suprimir a Máfia
italiana e a Camorra napolitana” (p. 131). A promessa da Lava Jato,
para além das vicissitudes democráticas e contratempos históricos, estava
lançada: doravante, não haverá crime sem pena.
No caso mais recente da fundação anunciada a partir
do acordo dos membros da Lava Jato com a Petrobrás, duas questões chamam a
atenção. Primeiro, a criatividade institucional. Segundo, a justificativa de que
a nova entidade será gerida pela sociedade, em benefício da sociedade.
Há perigosas contradições no desenho institucional
proposto. O item 2.4.1, (i), do acordo, prevê um desenho institucional que leve
em consideração a autonomia de sua gestão em relação a grupos ou pessoas
ligadas à política partidária. O item 2.4.6, por sua vez, reforça o fechamento
da fundação ao modelo de representatividade democrática prescrito pela
Constituição Federal quando estabelece que “não poderá atuar na fundação, em
qualquer função, pessoa filiada a partido político ou que tenha sido filiada
nos último 5 (cinco) anos, podendo o estatuto ampliar esta restrição”.
Já o item 2.4.1, (ii), pretende garantir a
legitimidade da proposta por meio da pluralidade institucional de sua gestão,
da transparência quanto ao critérios para tomada de decisões e pela ampla
consulta e participação social.
Ora, os itens 2.4.1, (i) e 2.4.6 colidem
frontalmente com o item 2.4.1, (ii), quando excluem da pluralidade institucional
pretendida para a gestão da nova fundação grupos ou pessoas ligadas a partidos
políticos. Vale lembrar que os partidos políticos destinam-se a assegurar, no
interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a
defender os interesses definidos na Constituição Federal, conforme artigo 1o.,
da Lei n. 9.096/95. Atento às entrelinhas
do Acordo, vê-se que Lava Jato não apenas exclui os partidos políticos,
agremiações centrais da vida democrática brasileira, mas pretende exatamente
criar legitimidade em razão desta exclusão. O equívoco é tremendo.
Trata-se
novamente de um flerte com o fascismo? Aproximações são possíveis, na linha
do já exposto em relação ao projeto de lei iniciado pelo MPF. Justifico. O
princípio da legalidade é provavelmente a maior contribuição do liberalismo
clássico à democracia moderna. Ao prescrever a lei como meio e limite da ação
estatal, o princípio da legalidade liberta o indivíduo do arbítrio, do capricho
e das boas intenções – às vezes pouco refletidas – do gestor público. Por regra
de cautela e por amor à democracia, é necessário cautela ao inovar. Quando a
inovação surge sem esteio na lei, labora para afastar-se de controles
institucionais democráticos e, ainda por cima, tem um forte componente de
fortalecimento corporativo, acende-se a luz amarela.
Figura na
internet
A soma de recursos públicos envolvidos é
vultosíssima e sua destinação a uma fundação privada exorbita as prescrições
legais. A medida viola o princípio da legalidade e, portanto, os pressupostos
teóricos do liberalismo político clássico. Doutro lado, falar em nome da
sociedade, do povo ou da nação é sempre um ato solene, cercado de formalidades
materiais e formais. Pretender a realização do princípio democrático por meio
de referências pouco claras a “organizações da sociedade civil” não é
suficiente, sobretudo quando evidenciada a atuação destas organizações
subordinada aos poderes da corporação, no caso, do Ministério Público.
Bom, mas isso
é fascismo? Pode-se dizer que houve
no fascismo um grande esforço para dar a volta nos mecanismos formais de
representação democrática, consolidando poderes que exorbitavam os limites da
lei e feriam a democracia, em prol de transformações favoráveis no tecido
social. Tudo foi feito em favor da sociedade. As vicissitudes e
contratempos do regime democrático foram preteridas em prol da eficiência das
instituições, segundo a visão privilegiada de um chefe. Dizia-se na Itália que
“Mussolini fez os trens rodarem no horário”.
Por fim, para bem entender como o fascismo pode
imiscuir-se em projetos inovadores de engenharia social, vale dizer que ele não
é uma ideologia. Segundo Hobsbawm, “a teoria não era o ponto forte de
movimentos dedicados às inadequações da razão e do racionalismo e à
superioridade do instinto e da vontade”. A suposta banalização de seu uso
não constitui um erro teórico, mas é expressão de sua natureza imprecisa e
difusa. A identificação de suas características em fenômenos políticos
contemporâneos demonstra a não superação da realidade histórica que marcou seu
nascimento. Hoje, como na década de 1930, crises econômicas que ameaçam o status
quo de grupos estabelecidos fazem emergir movimentos ao mesmo tempo
reformistas e regressivos, que desafiam a democracia liberal.
A autocontenção é a maior virtude de quem exerce
parcela do poder soberano. O fascismo, em suas múltiplas aparições,
manifesta-se como estratégias inovadoras de expansão do poder, verdadeiramente
criativas, capazes de contornar os meios tradicionais e, às vezes, precários
pelos quais se manifesta a democracia liberal, em prol da aceleração do tempo
histórico. Impelidos pelo clamor popular, pessoas e instituições podem
contribuir com o avanço do fascismo das mais variadas formas. O indiferentismo
técnico é um dos instrumentos mais trágicos de ação do fascismo, porque cega o
indivíduo acerca das consequências mediatas ou imediatas de suas ações,
dispensando-o de sua responsabilidade ética perante os seus semelhantes.
Ao perguntar
se há fascismo na Lava Jato, o que se pretende é refletir sobre o processo
histórico mais amplo do qual o Ministério Público Federal tornou-se
protagonista. No fascismo histórico, havia boas intenções no esforço de
eficientização dos processos sociais. Pode haver boas intenções na
autonomização da Lava Jato e em sua institucionalização na forma de uma
fundação privada. Mas há claro desrespeito às regras constitucionais da gestão
da vida democrática. O fascismo é plenamente moderno ao propor a superação
das velhas regras do jogo político democrático pela velocidade da relação
direta e pessoal de um líder ou uma instituição com “a sociedade”. Sem
paramentos, partidos políticos ou liturgia.
Havia fascismo antes das câmaras de gás.
*Wilson Rocha Fernandes Assis é Procurador
da República em Goiás
https://jornalggn.com.br/artigos/wilson-rocha-ha-fascismo-na-lava-jato/
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