"É um sintoma de que a esquerda brasileira não é mais capaz de
impor outro horizonte econômico-político e só conhece um horizonte de atuação,
o 'populismo'", escreve Vladimir Safatle,
filósofo e professor na USP, em artigo publicado pelo jornal digital El País no Brasil
por
Vladimir Safatle na revista ihu on-line unissinos – Sociedade
e Brasil pós-golpe 2016
Figura na internet
Este é um
artigo que gostaria de não ter escrito e não tenho prazer algum em fazer
enunciações como a que dá corpo ao título. No entanto, talvez não haja nada
mais adequado a falar a respeito da situação política brasileira atual, depois
de um ano de Governo Jair Bolsonaro e a consolidação de seu
apoio entre algo em torno um terço dos eleitores. Aqueles que acreditavam em
alguma forma de colapso do Governo e de sua base precisam rever suas
análises.
O que
vimos foi, na verdade, outro tipo de fenômeno, a saber, a inoperância completa
do que um dia foi chamado de “a esquerda brasileira” enquanto força opositora.
Não que se trate de afirmar que ela está diante do seu fim puro e simples.
Melhor seria dizer que um longo ciclo que se confunde com sua própria história
termina agora. O pior que pode acontecer nesses casos é “não tomar ciência de
seu próprio fim” repetindo assim uma situação que lembra certo sonho descrito
uma vez por Freud na qual um pai
morto continua a agir como se estivesse vivo. A angústia do sonho vinha do fato
do pai estar morto e nada querer saber disto. Se a esquerda brasileira não
quiser ver sua morte definitiva como destino, seria importante se perguntar
sobre qual é esse ciclo que termina, o que ele representou, quais seus limites.
Signos
não faltaram para tal diagnóstico terminal. Contrariamente ao discurso de que o
Governo Bolsonaro estaria
paralisado, vimos ao contrário a aprovação de medidas até pouco tempo
impensáveis, como a reforma
previdenciária, isso sem nenhuma resistência digna deste
nome. Ou seja, a maior derrota da história da classe trabalhadora brasileira
foi feita sem que anotassem sequer o número da placa do carro responsável pelo
atropelamento. Uma reforma da mesma natureza, mas menos brutal, está a tentar
ser imposta na França. O
resultado é uma sequência de greves e manifestações de vão já para o seu
terceiro mês. Na verdade, o que vimos no Brasil foi o contrário, a saber, governos estaduais pretensamente
de esquerda a aplicarem reformas estruturalmente semelhantes. Como se fosse o
caso de dizer que, no final, governo e oposição comungam da mesma cartilha,
sendo distinta apenas a forma e a intensidade de sua implementação. Fato que já
havíamos visto com o segundo Governo
Dilma e sua guinada neoliberal capitaneada por Joaquim Levy.
Isso é
apenas um sintoma de que a esquerda
brasileira não é mais capaz de impor outro horizonte
econômico-político. Durante todo o ano de 2019, diante de um Governo cujas
políticas visam a retomada, em chave autoritária, dos processos de concentração
de renda, de acumulação primitiva e de extrativismo colonial, não foram poucos
aqueles que esperaram da esquerda brasileira (todos os partidos e instituições
inclusas) a expressão de outro tipo de política. A esquerda governa estados,
municípios grandes e pequenos, mas de nenhum deles saiu um conjunto de
políticas que fosse capaz de indicar a viabilidade de rupturas estruturais com
o modelo neoliberal que nos é imposto agora. Houve época que a esquerda, mesmo
governando apenas municípios, conseguia obrigar o país a discutir pautas sobre
políticas sociais inovadoras, partilha de poder e modificação de processos
produtivos. Não há sequer sobra disto agora.
Talvez
seja o caso de insistir neste ponto porque, como dizia Maquiavel,
o povo prefere um governo ruim a governo nenhum. Não são as qualidades do
Governo Bolsonaro que dão a ele
certa adesão popular. É o vazio, é o fato de não haver nenhuma outra
alternativa realmente crível neste momento. E a razão disso é simples: a
esquerda brasileira morreu, ela tocou seu limite e demonstrou não ser capaz de
ultrapassá-lo. Isso vale tanto para partidos, sindicatos quanto para a classe
intelectual (na qual me incluo). Nossas ações até agora não se demonstraram à
altura dos desafios efetivos. O melhor a fazer seria começar a se perguntar
pela razão de tal situação.
Coloquemos
uma hipótese de trabalho: a esquerda brasileira conhece apenas
um horizonte de atuação, este que atualmente chamaríamos de “populismo
de esquerda”. Foi ele que se esgotou sem que a esquerda nacional
tenha se demonstrado capaz de passar para outra fase ou mesmo de imaginar o que
poderia ser “outra fase”. Entende-se por populismo de esquerda um modelo de
construção de hegemonia baseado na emergência política do povo contra as
oligarquias tradicionais detentoras do poder. Este povo é, na verdade,
produzido através da convergência de múltiplas demandas sociais distintas e
normalmente reprimidas. Demandas contra a espoliação de setores sociais, contra
a opressão racial, contra os legados do colonialismo: todas elas devem convergir
em uma figura que seja capaz de representar e vocalizar esta emergência de um
novo sujeito político.
No
entanto, o caráter nacionalista do populismo permite também a
inclusão de setores descontentes da oligarquia, grupos da burguesia nacional
dispostos a ter um papel “mais ativo” nas dinâmicas de globalização. Assim, o
“povo”, neste caso, nasce como uma monstruosa entidade meio burguesia, meio
proletariado. Uma mistura de JBS Friboi com MST.
Este é o
modelo que a esquerda nacional tentou implementar em sua primeira tentativa de
governar o Brasil: a que termina com o golpe militar contra o Governo João Goulart.
Na ocasião, um dos personagens mais lúcidos de então, Carlos
Marighella, faz um diagnóstico preciso: a esquerda havia
apostado na conciliação com setores da burguesia nacional e com setores
“nacionalistas” das forças armadas dentro de governos populistas de esquerda.
Ela colocou toda sua capacidade de mobilização a reboque de uma política que
parecia impor mudanças seguras e graduais. Ao final, tudo o que ela conseguiu
foi estar despreparada para o golpe, sem capacidade alguma de reação efetiva
diante dos retrocessos que se seguiriam.
A lição
de Marighella não foi ouvida. Tanto que a esquerda brasileira
fará o mesmo erro com o final da ditadura militar e com o advento da Nova
República. A história será simplesmente a mesma: o movimento em direção a um
jogo de alianças entre demandas sociais e interesses de oligarquias locais
descontentes tendo em vista mudanças “graduais e seguras” que serão varridas do
mapa na primeira reação bem articulada da direita nacional.
Nesse
sentido, nossa história segue os passos da história argentina: outro campo de
ensaio do populismo de esquerda. Mas há um diferença substancial aqui. Depois
da experiência ditatorial, a Argentina soube criar um linha de
contenção de impulsos golpistas. Hoje, quase mil pessoas ainda se encontram nas
cadeias argentinas por crimes da ditadura. No Brasil, ninguém foi preso. A
resposta argentina produziu uma linha de contenção, inexistente entre nós, que
permitiu ao peronismo ter ressurreições periódicas. Dificilmente, essa será a
história brasileira daqui para frente, pois o risco de deriva militar é real
entre nós.
Mas há
ainda um outro fator decisivo. O colapso do lulismo não foi seguido apenas de
um golpe parlamentar apoiado em práticas criminosas de setores do poder
judiciário. Ele foi seguido da criação de uma espécie de antídoto à
reemergência do corpo político populista. O que vimos, e agora isto está cada
vez mais claro, foi a emergência de um corpo fascista. Mas o corpo político
fascista é normalmente a versão terrorista e invertida de um corpo político
anterior, marcado pela emergência do povo e pelas promessas de transformação
social. Dessa forma, ele acaba por bloquear sua ressurgência. Já se disse que
todo fascismo nasce de uma revolução abortada. Nada mais justo.
Theodor Adorno um dia descreveu o líder
fascista como uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio (certamente
pensando no Chaplin de O grande ditador). Essa
articulação entre contrários é fundamental. A pretensa onipotência do líder
fascista deve andar juntamente com sua fragilidade. O líder fascista deve ser
“alguém como nós”, com a mesma falta de cerimônia, a mesma simplicidade e
irritação que nós. A identificação é feita com as fraquezas, não com os ideais.
Ele deve ser alguém que come miojo em banquetes presidenciais, que se veste de
maneira desajeitada como alguém do povo. Ele deve a todo momento dizer que está
a combater as elites que sempre governaram esse país (que agora serão os
artistas, as universidades, os “cosmopolitas” e “globalistas”). Ele deve
mostrar que não é alguém da elite política, que na verdade tal elite o detesta.
Pois se trata de criar um antídoto para toda forma de tentativa de recuperar a
produção do povo como processo de emergência de dinâmicas de transformação
social.
Dessa
forma, tudo se passa como se Bolsonaro
fosse uma versão militarizada de seu oposto, a saber, Lula.
Não se trata com isso de afirmar que estamos presos em uma polaridade. Ao
contrário, trata-se de dizer que tudo foi feito para anular a polaridade real,
criando um duplo imaginário. Nunca entenderemos nada das regressões fascistas
se não compreendermos estas lógicas dos duplos políticos. Se há algo que nos
falta é exatamente polaridade. Temos pouca polaridade e muita duplicidade.
O fato é
que tal dinâmica demonstrou-se eficaz. Ela quebrou os processos de
incorporações populistas que foram, até agora, a alma da esquerda
brasileira. Por isso, o que vemos agora é uma esquerda sem capacidade de ação,
pois atordoada com o fato de a direita brasileira ter, enfim, produzido a sua
figura com capacidade de incorporação do povo, agora sem o erro de apostar em
um egresso da elite político-econômica (Collor) ou em alguém sem vínculos orgânicos
com o militarismo fascista (Jânio).
Numa
situação como essa, a esquerda nacional ainda paga o preço de ter sido formada
para a coalizão e para a negociação. Esse é seu DNA, desde a
política de alinhamento do PCB aos ditames
anti-revolucionários do Soviete Supremo. Por isso, ela não sabe o que fazer
quando precisa mudar o jogo e caminhar para o extremo. Sua inteligência não age
nesse sentido, suas estruturas não agem nesse sentido, sua classe política não
age nesse sentido. Seus movimentos de revolta perdem-se no ar por não ter
nenhuma sustentação ou coordenação de médio e longo prazo. Foi assim que ela
morreu. Se ela quiser voltar a viver, toda essa história tem que chegar a um
fim. Ela deverá tomar ciência de seu fim.
http://www.ihu.unisinos.br/596214-como-a-esquerda-brasileira-morreu-artigo-de-vladimir-safatle
A esquerda brasileira esqueceu que é o voto e dinheiro do povo que faz com que os(as) políticas só existem, se existir o povo.
ResponderExcluirAo matar o povo, a esquerda morrerá...