As manifestações “arremetem
contra a ordem da desigualdade, que os governos do ciclo progressista anterior
não desativaram de forma efetiva, e da pobreza —que de fato diminuiu no ciclo
anterior, mas que voltou a crescer progressivamente depois de 2008, e de forma
muito acelerada após 2015”, afirma a pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), Ailynn Torres
por Javier Lafuente
no El País e revista ihu
on-line – Sociedade e Resistência dos Povos ao Avanço das Grandes
Empresas
Protesto no Chile. Reprodução: twitter
As
expectativas frustradas dinamitaram a paciência de milhões de
latino-americanos. Os protestos
na região mais desigual do planeta se repetem num ritmo vertiginoso, do Haiti ao Chile;
da América Central aos
Andes. Buscar uma explicação
simples para uma região como duas dezenas de países e mais de 600 milhões de
habitantes seria ilusório, apesar do empenho de muitos em tentar construir uma
espécie de primavera latino-americana — num continente onde, como se não
bastasse, as estações brilham por sua ausência — ou armar um complô orquestrado
pela Venezuela,
que, apesar de mal poder se manter de pé, agora teria a capacidade de
desestabilizar quase todo o continente. A frustração de milhões de desejos, o
questionamento de modelos econômicos como o neoliberalismo e o desencanto com
os políticos, sem importar a ideologia, são combustíveis comuns em todos os
países para acender as labaredas que não parecem dispostas a se apagar no curto
prazo.
A América Latina é um caldeirão de
protestos num mundo que se tornou uma “cartografia a ser decifrada”, nas
palavras do jornalista e historiador Pablo
Stefanoni. Em alguns casos,
porque a qualidade de vida piora, como na Argentina e
no Equador;
também no Chile e,
há anos, no Brasil, onde também foram frustradas as expectativas de uma classe
média à qual se incorporavam cada dia mais pessoas.
As
mobilizações desses países, e as menos midiáticas dos estudantes da Colômbia e as do Haiti, não podem
ser entendidas se não olharmos também para os coletes amarelos franceses, os protestos
de Hong Kong
e, mais recentemente, os do Líbano.
Mas as explosões sociais fazem parte da paisagem política latino-americana há
décadas e viveram seu auge no final dos anos noventa e início deste século. “Há
toda uma cultura de mobilizações que funciona como um mecanismo de pressão para
exigir a ampliação de direitos e uma redução das históricas injustiças
sociais”, explica Luciana Cadahia, pesquisadora do Centro de Estudos Avançados Latino-Americanos
nas Humanidades e Ciências Sociais (CALAS-Andes).
Os
protestos atuais surgem num contexto de desaceleração e crise econômica. A América Latina saiu praticamente ilesa
da crise global de
2008, mas agora é a região mais atingida. Segundo as
previsões do Fundo Monetário
Internacional (FMI),
organismo que, por outro lado, volta a estar na mira de quase todos os
protestos, a região crescerá 0,2%, quase nada na prática. Em menos de um ano, a
previsão caiu de 1,4% para 0,6% (há 90 dias). Ao mesmo tempo, espera-se que as
economias asiáticas cresçam em média 5,9% e as africanas, 3,2%.
Embora
cada país tenha suas características específicas, o fim do auge das
matérias-primas (commodities) sobrevoa a incerteza econômica. “Em algumas
partes, o que se esgota é o neoliberalismo; em outras, os projetos
nacionais-populares têm um problema de fundo que a região não pode abordar, que
é o modelo de desenvolvimento. Inclusive na guinada à esquerda, os avanços
foram redistributivos, políticas sociais que democratizaram o consumo. Não
houve mudanças profundas, nem econômicas nem institucionais”, afirma Stefanoni.
A
desigualdade de renda diminuiu desde 2000, mas hoje um em cada 10
latino-americanos (10,2%) vive na extrema pobreza. Em 2002, havia 57 milhões de
pessoas em situação de carestia extrema na região. Quinze anos depois, a cifra
subiu para 62 milhões. Em 2008 foram 63 milhões, segundo a Comissão Econômica das Nações Unidas para a
América Latina e o Caribe (Cepal).
“Um dos denominadores comuns são as expectativas frustradas, a precariedade das
pessoas que haviam recuperado algo e que agora veem como os seus desejos e
sonhos se perdem. Isso exacerbou uma enorme fúria”, diz Arturo Valenzuela,
subsecretário de Estado para América Latina durante a Administração de Barack Obama.
“Os
atuais protestos populares estão muito vinculados com o modelo econômico que,
desde os anos noventa, tentam implementar uma e outra vez na região”, diz Cadahia, que, como outros analistas
consultados, vê nos diferentes tipos de ajustes dos Governos um dos
denominadores comuns dos protestos.
“Os Estados têm o papel de proteger um modelo econômico que não gera fontes de
trabalho nem necessita diminuir lacunas de desigualdade. De modo que deixam de
investir em aspectos fundamentais como a educação e a tecnologia. As
instituições se deterioram, as desigualdades crescem, e cada cidadão começa a
sentir o mal-estar quando descobre como piora sua a vida cotidiana, o seu dia a
dia”.
Nesse
sentido, a acadêmica e feminista cubana Ailynn Torres considera que as
manifestações “arremetem contra a ordem da desigualdade, que os governos do
ciclo progressista anterior não desativaram de forma efetiva, e da pobreza —que
de fato diminuiu no ciclo anterior, mas que voltou a crescer progressivamente
depois de 2008, e de forma muito acelerada após 2015”, afirma a pesquisadora da
Faculdade Latino-Americana de Ciências
Sociais (Flacso).
A
autoridade da classe política ficou em evidência nas últimas semanas, ainda que
a demanda por novas lideranças venha se manifestando há meses, ou mesmo anos. A
fonte de instabilidade é total, como ilustra Stefanoni. “No Chile, menos de 50% dos eleitores votaram na última
eleição; na Bolívia,
metade do país acredita que houve fraude no pleito; no Equador, o sucessor de [Rafael] Correa deu uma guinada significativa em suas alianças e discursos
ideológicos; no Brasil, as pessoas votaram com um dos favoritos (Lula) preso e acusado de corrupção; no
Peru, todos os presidentes
acabaram na cadeia pelo caso Odebrecht,
e um se suicidou".
Não se
trata de interpretar, pois, o mal-estar no eixo esquerda/direita. O último Latinobarômetro já apontava nessa
linha. Para 75% das pessoas, há uma percepção de que se governa para poucos e
que os Governos não defendem os interesses da maioria. Segundo o estudo, apenas
5% consideram que existe democracia plena; 25% acham que há pequenos problemas;
45%, grandes problemas; e 12% acreditam que não se pode chamar de democracia o
que se vê hoje em dia. Além disso, a média de quem considera democrática a América Latina é de 5,4 numa escala de 1 a 10.
O
desprestígio dos governantes não significa necessariamente um desencanto com a
política, pois as sociedades latino-americanas estão mais do que politizadas. Valenzuela destaca a necessidade de
implementar uma série de reformas políticas que ainda não foram conseguidas.
“Há presidentes que são minoritários e se acham majoritários, que não têm
depois o apoio do Congresso. Tudo isso gera uma paralisia e uma crise de
representação”, explica o ex-funcionário do Governo dos EUA.
Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo, sente que “os
números contam uma história e as elites econômicas e políticas estão contentes
com esses números, mas a experiência das pessoas é outra”. Stuenkel cita como exemplo os protestos de
2013 no Brasil, muito similares em sua origem aos do
Chile da semana passada. “O que vimos é uma consequência de uma sociedade muito
desigual, não só do ponto de vista econômico. É preciso ver por onde se movem
as elites, com quem se relacionam. Também é preciso lembrar que a elite
intelectual —jornalistas, analistas, entre os quais me incluo— não antecipou
isso. É uma prova de que a elite financeira, política e intelectual da América
Latina não tem sido capaz de monitorar e entender o que acontece na sociedade”.
O exemplo
mais paradigmático desse distanciamento —além da cegueira autocrata de Nicolás Maduro, que tende a negar a realidade há anos— talvez tenha sido
dado nos últimos dias pelo presidente do Chile.
Sebastián Piñera
passou de uma situação em que celebrava o oásis no qual seu país (supostamente)
estava para outra em que a panela de pressão explodia. Após dizer que estavam
em guerra contra um inimigo todo-poderoso, ele saudou as manifestações que,
justamente, exigem sua renúncia e a de todos os seus ministros. Ailynn Torres, em consonância com outros analistas e acadêmicos
consultados, mostra-se cautelosa em relação ao que virá. “Os resultados são
incertos e talvez não sejam muito mais claros quando a etapa aguda terminar. O
que está em jogo vai muito além; os povos sabem disso, e os Governos
também".
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/593834-a-desigualdade-mobiliza-a-america-latina
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