A normalidade da exceção. A atual pandemia não é uma
situação de crise claramente contraposta a uma situação de normalidade. Desde a
década de 1980 – à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão
dominante do capitalismo e este se foi sujeitando mais e mais à lógica do setor
financeiro – o mundo tem vivido em permanente estado de crise. Uma situação
duplamente anômala...
por Boaventura de Souza Santos * no Sul 21 – Sociedade e Ser Humano Frágil Mediante o Excepcional
Imagem _ “Criança geopolítica
observando o nascimento do homem novo” (1943), Salvador Dalí
Existe um
debate nas ciências sociais sobre se a verdade e a qualidade das instituições
de uma dada sociedade se conhecem melhor em situações de normalidade, de
funcionamento corrente, ou em situações excepcionais, de crise. Talvez os dois
tipos de situação sejam igualmente indutores de conhecimento, mas certamente
permitem-nos conhecer ou relevar coisas diferentes. Que potenciais
conhecimentos decorrem da pandemia do coronavírus?
A normalidade
da exceção. A atual pandemia não é uma
situação de crise claramente contraposta a uma situação de normalidade. Desde a
década de 1980 – à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão
dominante do capitalismo e este se foi sujeitando mais e mais à lógica do setor
financeiro – o mundo tem vivido em permanente estado de crise. Uma situação
duplamente anômala. Por um lado, a ideia de crise permanente é um oxímoro, já
que, no sentido etimológico, a crise é por natureza excepcional e passageira e
constitui a oportunidade para ser superada e dar origem a um melhor estado de
coisas. Por outro lado, quando a crise é passageira, ela deve ser explicada
pelos fatores que a provocam. Mas quando se torna permanente, a crise
transforma-se na causa que explica tudo o resto.
Por
exemplo, a crise financeira permanente é utilizada para explicar os cortes nas
políticas sociais (saúde, educação, previdência social) ou a degradação dos
salários. E assim impede que se pergunte pelas verdadeiras causas da crise. O
objetivo da crise permanente é não ser resolvida. Mas qual é o objetivo deste
objetivo? Basicamente, são dois os objetivos: legitimar a escandalosa
concentração de riqueza e impedir que se tomem medidas eficazes para impedir a
iminente catástrofe ecológica. Assim temos vivido nos últimos quarenta anos.
Por isso, a pandemia vem apenas agravar uma situação de crise a que a população
mundial tem vindo a ser sujeita. Daí a sua específica periculosidade. Em muitos
países, os serviços públicos de saúde estavam há dez ou vinte anos mais bem
preparados para enfrentar a pandemia do que estão hoje.
A
elasticidade do social. Em cada época histórica, os modos dominantes de viver (trabalho,
consumo, lazer, convivência) e de antecipar ou adiar a morte são relativamente
rígidos e parecem decorrer de regras escritas na pedra da natureza humana. É
verdade que eles se vão alterando paulatinamente, mas as mudanças passam quase
sempre despercebidas. A irrupção de uma pandemia não se compagina com tal tipo
de mudanças. Exige mudanças drásticas. E, de repente, elas tornam-se possíveis
como se sempre o tivessem sido. Torna-se possível ficar em casa e voltar a ter
tempo para ler um livro e passar mais tempo com os filhos, consumir menos,
dispensar o vício de passar o tempo nos centros comerciais, olhando para o que
está à venda e esquecendo tudo o que se quer mas só se pode obter por outros
meios que não a compra. A ideia conservadora de que não há alternativa ao modo
de vida imposto pelo hipercapitalismo em que vivemos cai por terra. Mostra-se
que só não há alternativas porque o sistema político democrático foi levado a
deixar de discutir as alternativas. Como foram expulsas do sistema político, as
alternativas irão entrar cada vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela
porta dos fundos das crises pandêmicas, dos desastres ambientais e dos colapsos
financeiros. Ou seja, as alternativas voltarão da pior maneira possível.
A
fragilidade do humano. A rigidez aparente das soluções sociais cria nas classes que tiram mais
proveito delas um estranho sentimento de segurança. É certo que sobra sempre
alguma insegurança, mas há meios e recursos para os minimizar, sejam eles os
cuidados médicos, as apólices de seguro, os serviços de empresas de segurança,
a terapia psicológica, as academias de ginástica. Este sentimento de segurança
combina-se com o de arrogância e até de condenação para com todos aqueles que
se sentem vitimizados pelas mesmas soluções sociais. O surto viral interrompe
este senso comum e evapora a segurança de um dia para o outro. Sabemos que a
pandemia não é cega e tem alvos privilegiados, mas mesmo assim cria-se com ela
uma consciência de comunhão planetária, de algum modo democrática. A etimologia
do termo pandemia diz isso mesmo: todo o povo. A tragédia é que neste caso a
melhor maneira de sermos solidários uns com os outros é isolarmo-nos uns dos
outros e nem sequer nos tocarmos. É uma estranha comunhão de destinos. Não
serão possíveis outras?
Os fins
não justificam os meios. O abrandamento da atividade econômica, sobretudo no maior e mais
dinâmico país do mundo, tem óbvias consequências negativas. Mas tem, por outro
lado, algumas consequências positivas. Por exemplo, a diminuição da poluição
atmosférica. Um especialista da qualidade do ar da agência especial dos EUA
(NASA) afirmou que nunca se tinha visto uma quebra tão dramática da poluição
numa área tão vasta. Quererá isto dizer que no início do século XXI a única
maneira de evitar a cada vez mais iminente catástrofe ecológica é por via da
destruição massiva de vida humana? Teremos perdido a imaginação preventiva e a
capacidade política para a pôr em prática?
É também
conhecido que, para controlar eficazmente a pandemia, a China acionou métodos
de repressão e de vigilância particularmente rigorosos. É cada vez mais
evidente que as medidas foram eficazes. Acontece que a China, por muitos
méritos que tenha, não tem o de ser um país democrático. É muito questionável
que tais medidas pudessem ser acionadas ou acionadas com igual eficácia num
país democrático. Quer isto dizer que a democracia carece de capacidade
política para responder a emergências? Pelo contrário, The Economist
mostrava no início deste ano que as epidemias tendem a ser menos letais em
países democráticos devido à livre circulação de informação. Mas como as
democracias estão cada vez mais vulneráveis às fake news, teremos de
imaginar soluções democráticas assentes na democracia participativa ao nível
dos bairros e das comunidades e na educação cívica orientada para a
solidariedade e cooperação, e não para o empreendedorismo e competitividade a
todo custo.
A guerra
de que é feita a paz. O modo como foi inicialmente construída a narrativa da pandemia nos
media ocidentais tornou evidente a vontade de demonizar a China. As más
condições higiênicas nos mercados chineses e os estranhos hábitos alimentares
dos chineses (primitivismo insinuado) estariam na origem do mal.
Subliminarmente, o público mundial era alertado para o perigo de a China, hoje
a segunda economia do mundo, vir a dominar o mundo. Se a China era incapaz de
prevenir tamanho dano para a saúde mundial e, além disso, incapaz de o superar
eficazmente, como confiar na tecnologia do futuro proposta pela China? Mas terá
o vírus nascido na China? A verdade é que, segundo a organização Mundial de
Saúde, a origem do vírus ainda não está determinada. É, por isso, irresponsável
que os meios oficiais do EUA falem do “vírus estrangeiro” ou mesmo do
“coronavírus chinês”, tanto mais que só em países com bons sistemas públicos de
saúde (os EUA não são um deles) é possível fazer testes gratuitos e determinar
com exatidão os tipos de influenza ocorridos nos últimos meses. Do que sabemos
com certeza é que, muito para além do coronavírus, há uma guerra comercial
entre a China e os EUA, uma guerra sem quartel que, como tudo leva a crer, terá
de terminar com um vencedor e um vencido. Do ponto de vista dos EUA, é urgente
neutralizar a liderança da China em quatro áreas: o fabrico de telemóveis, as
telecomunicações da quinta geração (a inteligência artificial), os automóveis
elétricos e as energias renováveis.
A
sociologia das ausências. Uma pandemia desta dimensão causa justificadamente comoção mundial.
Apesar de se justificar a dramatização é bom ter sempre presente as sombras que
a visibilidade vai criando. Por exemplo, os Médicos Sem Fronteiras estão a
alertar para a extrema vulnerabilidade ao vírus por parte dos muitos milhares
de refugiados e imigrantes detidos nos campos de internamento na Grécia. Num
desses campos (campo de Moria) há uma torneira de água para 1300 pessoas e
falta sabão. Os internados não podem viver senão colados uns aos outros.
Famílias de cinco ou seis pessoas dormem num espaço com menos de três metros
quadrados. Isto também é Europa – a Europa invisível.
(*) Sociólogo, diretor do
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2020/03/virus-tudo-o-que-e-solido-se-desfaz-no-ar-por-boaventura-de-sousa-santos/
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