“Nosso
prognóstico político e econômico para o Brasil é muito ruim, e a situação
deverá ficar ainda pior quando começarem a surgir os primeiros focos de
rebeldia social inorgânica, movidos pela fome e pela miséria, que crescerão de
forma geométrica no ano de 2020”. O alerta é do sociólogo e cientista político
José Luís Fiori em entrevista ao Tutaméia.
Professor de economia política da UFRJ, ele analisa aqui mudanças geopolíticas
decorrentes da pandemia
por Eleonora de Lucena e Rodolfo
Lucena
no Tutaméia
– Sociedade e Tem Crise na Terra?
Vídeo da entrevista com Fiori no final do texto
Foto Guilheeme Gandofi/Fotos Públicas
“Hoje,
muitos falam de um mundo novo que poderia nascer dessa experiência traumática e
até apostam em mudanças humanitárias do capitalismo. Mas não vejo a menor
possibilidade de que isto aconteça. O próprio avanço da epidemia já está
provocando uma guerra sem quartel entre as nações pelos equipamentos médicos.
Essa guerra deverá seguir e até aumentar depois da epidemia, junto com os
ressentimentos que ficarão dessa megaexperiência de egoísmo coletivo explicito”
Fiori
Para
Fiori, “essa pandemia não produzirá nenhuma grande inflexão geopolítica dentro
do sistema mundial. O que ela fará é acelerar a velocidade das transformações
que já estavam em curso e que seguirão se aprofundando. Essa nova peste está
apenas desvelando o que já existia, mas que ainda estava encoberto pelo que
talvez se pudesse chamar de último véu de hipocrisia do que muitos analistas
chamam de “ordem liberal”, ou de “hegemonia americana” do século 20”.
Autor,
entre outros, de “O Poder Global” (Boitempo, 2007), ele afirma: “O mais
provável é que essa epidemia aumente a desigualdade e a polarização do mundo,
que já vinham crescendo de forma acelerada desde a crise financeira de 2008”.
Ao TUTAMÉIA,
o sociólogo e cientista político traça tendências da geopolítica global e
regional e declara: “A disputa dos EUA com a China e a Rússia já colocou a luta
pelo controle da Amazônia Sul-Americana dentro do mapa geopolítico e econômico
da competição entre as grandes potências econômicas e militares do sistema
mundial. Esse parece ser um processo irreversível”.
A seguir a íntegra da entrevista,
feita por e-mail.
TUTAMÉIA
— QUAL O TAMANHO E QUAIS OS ASPECTOS PRINCIPAIS DA CRISE QUE ESTAMOS VIVENDO NO
MUNDO? JÁ É POSSÍVEL PREVER ALGUMA COISA DO FUTURO? FAZ SENTIDO COMPARÁ-LA COM
A CRISE ECONÔMICA DE 1929? ESSA CRISE TEM ALGUMA COMPARAÇÃO POSSÍVEL?
JOSÉ LUÍS
FIORI — Por
enquanto, a crise que estamos vivendo tem duas grandes causas ou dimensões
fundamentais. Uma é biológica ou epidemiológica, que é a pandemia do novo
coranavírus, que já atingiu mais de 190 países e mais um milhão de pessoas ao
redor do mundo. A outra é econômica ou energética, associada à guerra de preços
e à queda do preço do barril petróleo, que caiu de US$ 70 para US$ 23 o barril
em apenas uma semana, provocando um terremoto financeiro em todo mundo. É a
maior crise da indústria do petróleo dos últimos cem anos, mas ela acabou se
confundindo com a pandemia, que se transformou no fator determinante da queda
da produção e da demanda do óleo em todo o mundo, mas particularmente na China,
nos EUA e na Europa. Por isso, pode-se dizer que a dimensão determinante da
crise mundial, neste momento, é a sua dimensão epidemiológica.
Os germes
e as grandes epidemias têm vida própria e reaparecem através da história com
uma frequência cada vez maior, apesar de o reaparecimento periódico não
obedecer a nenhum tipo de regra ou de ciclo conhecido e previsível. No caso
específico desta última epidemia, não se decifrou ainda o vírus, não se conhece
seu desenvolvimento nem se sabe da possibilidade de que ele tenha recidivas
onde já foi controlado. Portanto, desde logo, partindo de um ponto de vista
estritamente biológico e médico, é muito difícil ainda fazer qualquer tipo de
previsão sobre o futuro dessa primeira grande peste do século 21.
Nesses
momentos de grande medo e imprevisibilidade, é muito comum que se façam
comparações com a intenção de ajudar a pensar e prever o futuro. Mas essas
comparações são sempre limitadas e, às vezes, prejudicam mais do que ajudam,
mesmo quando se restrinjam ao campo econômico. No caso das comparações com
1929, ou mesmo com a crise financeira de 2008, é importante ter presente que
estamos falando, nos dois casos, de crises endógenas da economia capitalista.
Enquanto que, no caso dessa crise atual, estamos falando de uma crise que atinge
a economia capitalista, mas que foi provocada por um fator externo à própria
economia e que não obedece às chamadas “leis econômicas”, mesmo quando possa
provocar um estrago econômico e social equivalente ao das crises econômicas que
foram mencionadas.
Da mesma
forma, é muito comum comparar ou associar as grandes epidemias com as guerras,
como se as duas viessem sempre juntas. Ou, ainda, dizer que as grandes pestes
produzem sempre grandes inflexões, mudanças ou rupturas na trajetória das
sociedades e do próprio sistema mundial. Mas nenhuma dessas teses tem
sustentação empírica ou validez universal. É verdade que, quando as grandes
pestes surgem ou se difundem junto com grandes guerras, elas tendem a ser mais
rápidas e violentas, como foi o caso, por exemplo, da Gripe Espanhola, que se
difundiu logo depois da Primeira Grande Guerra e que matou algo em torno de 50
milhões de pessoas em apenas dois anos, de 1918 a 1920.
No
entanto existem inúmeras outras epidemias que surgiram e se difundiram sem
nenhuma relação com guerras. Como foi o caso, só para citar algumas mais
recentes, da febre amarela, do sarampo, da malária, da varíola, da tuberculose,
ou mesmo a epidemia do HIV, que já infectou mais de 40 milhões de pessoas e
matou mais de 20 milhões em todo o mundo sem ter nenhuma ligação direta ou
causal com grandes guerras.
Da mesma
forma, pode-se dizer, mesmo com o perigo do anacronismo histórico, que a Peste
de Justiniano (527-569), que durou dois séculos e matou mais 100 milhões de
pessoas, teve uma relação muito estreita com o fim do Império Romano. E mesmo
se poderia dizer, talvez com muito maior razão, que a Peste Negra, que matou
metade da população europeia no século 14, teve um papel decisivo no nascimento
do sistema interestatal europeu. O historiador inglês Mark Harrison, da
Universidade de Oxford, sustenta a tese de que foi a Peste Negra que provocou a
centralização do poder dos Estados e sua delimitação territorial, como forma de
controlar e limitar o contágio, difundindo novas práticas higiênicas entre as
populações que ainda viviam sob a servidão feudal.
Acho que
essa tese, aliás, faz todo sentido e ajuda a entender reação “egoísta” dos
Estados nacionais, através dos tempos, toda vez que tiveram que enfrentar
epidemias contagiosas, que se expandem por cima de suas fronteiras
territoriais. Mesmo assim, todas as demais epidemias ou pestes que mencionamos
podem ter provocado grandes avanços médicos ou sanitários, mas não produziram
nenhuma grande ruptura histórica nem alteraram a rota expansiva do sistema
mundial. Ou seja, a crise atual não é da mesma natureza que as crise de 1929 e
de 2008, e não envolverá necessariamente nenhuma grande ruptura histórica.
POR QUE É
MUITO COMUM COMPARAR AS EPIDEMIAS COM AS GUERRAS?
FIORI — Acho que é uma comparação muito
forte e que pode ser útil para mobilizar as populações e os atores sociais e
econômicos mais importantes para o combate à doença. E, de fato, as grandes
pestes costumam produzir consequências econômicas de curto e médio prazo
parecidas com as das guerras. Além disso, nas grandes epidemias, como nas
grandes guerras, os Estados nacionais são obrigados igualmente a assumir o
comando estratégico do combate ao “inimigo comum”, estatizando atividades
relevantes e implementando políticas econômicas típicas das chamadas “economias
de guerra”.
Mas, ao
contrário das guerras, as epidemias não costumam destruir cidades,
infraestruturas, equipamentos físicos, fábricas ou qualquer outra atividade
econômica. Por outro lado, as guerras envolvem pelo menos dois atores ou
Estados que se consideram inimigos e que têm uma materialidade e uma identidade
emocional que provoca uma imediata solidariedade nacional por cima das próprias
classes sociais. Já as epidemias contagiosas, como a que estamos vivendo, não
têm uma materialidade clara e afetam as classes sociais de um mesmo país de forma
inteiramente diferente, provocando uma reação defensiva de tipo “egoísta”, por
parte dos Estados, das classes e dos indivíduos, sendo muito comum a
estigmatização das grupos sociais mais vulneráveis ou contagiadas. Por fim, e
essa é uma diferença fundamental, nas guerras sempre existem os vencedores e os
perdedores, e cabe ao vencedor impor as regras de sua “paz hegemônica”, que
devem ser acatadas necessariamente pelos derrotados.
No caso
das grandes pandemias, como a que estamos enfrentando, não há vitoriosos e
perdedores nítidos, e não há nenhuma força material que imponha qualquer tipo
de acordo em torno do que poderia ser um eventual plano de reconstrução
coletivo.
Ou seja,
as guerras são muito mais destrutivas, mas as saídas das pandemias são muito
menos solidárias.
Hoje,
muitos falam de um mundo novo, que poderia nascer desta experiência traumática,
e até apostam em mudanças humanitárias do capitalismo. Mas não vejo a menor
possibilidade de que isso aconteça. O próprio avanço da epidemia já está provocando
uma guerra sem quartel entre as nações pelos equipamentos médicos. Essa guerra
dever seguir e até aumentar depois da epidemia, junto com os ressentimentos que
ficarão desta megaexperiência de egoísmo coletivo explicito.
QUAIS SÃO
AS CONSEQUÊNCIAS DESSA CRISE PARA A GEOPOLÍTICA GLOBAL? É CORRETO PENSAR QUE A
CHINA SE CONSOLIDA COMO LIDERANÇA GLOBAL?
FIORI — Essa pandemia não produzirá
nenhuma grande inflexão geopolítica dentro do sistema mundial. O que ela fará é
acelerar a velocidade das transformações que já estavam em curso e que seguirão
se aprofundando. Alguém já disse que é na hora das grandes pestes que a gente
conhece a verdadeira natureza de uma sociedade. Pois também acho que essa nova
peste está apenas desvelando o que já existia, mas que ainda estava encoberto
pelo que talvez se pudesse chamar de último véu de hipocrisia do que muitos
analistas chamam de “ordem liberal”, ou de “hegemonia americana” do século 20.
A
epidemia do novo coronavírus foi identificada na China, no final de dezembro de
2019, mas hoje já está claro que seu epicentro se deslocou para a Europa e os
Estados Unidos e que sua duração não será nunca menor do que seis ou sete
meses, sendo ainda difícil quantificar o tamanho do estrago e da destruição
humana e econômica desses países. Mas ninguém tem dúvida que, se ela se
estender para o Sul, terá um efeito muito maior e devastador sobre a população
e a economia dos países “periféricos” da África, do Oriente Médio e da América
Latina. E, depois que a epidemia passar ou for controlada, como sempre
acontece, serão as grandes potências que se recuperarão na frente, começando
pela China e pelos Estados Unidos.
Nesse
sentido, o mais provável é que essa epidemia aumente a desigualdade e a
polarização do mundo, que já vinham crescendo de forma acelerada desde a crise
financeira de 2008. E deve acentuar a nova virada nacionalista do sistema
interestatal, que já vinha se manifestando desde o início do século 21 e que
assumiu alta velocidade depois que os Estados Unidos de Donald Trump mandaram
para o espaço as suas antigas convicções multilateralistas e globalistas,
começando pela sua própria política econômica.
A Rússia
deverá sofrer um novo baque econômico com a epidemia e com a crise da indústria
do petróleo, mas isso não afetará a sua nova posição como grande potência
militar dentro do sistema mundial.
Na União
Europeia, por sua vez, a pandemia deve apenas acelerar e, quem sabe, concluir o
processo de implosão ou desintegração do seu projeto unitário, que já vinha se
decompondo desde a crise de 2008 e que entrou alta rotação depois do Brexit.
E a China
seguirá o curso do seu projeto expansivo programado para a metade do século 21,
aproveitando as oportunidades e brechas abertas pela decomposição europeia,
pela desvinculação norte-americana da antiga utopia da ordem liberal e da
economia globalizada.
A aposta
do poder americano nesse momento está inteiramente depositada na manutenção da
sua supremacia no campo da moeda, no das finanças e no do controle naval de
todos os mares e oceanos do mundo. Nesse ponto, não há que ter ilusões: o
epicentro da crise de 2008 foi nos EUA. Mas, depois da crise e durante a
segunda década do século 21, foi o país que mais cresceu entre os considerados
desenvolvidos, chegando a aumentar sua participação no PIB mundial de 23% para
25%. Na mesma década, os EUA aumentaram seu poder financeiro global junto com
sua capacidade de utilizar sua moeda e seu mercado financeiro para hostilizar
seus inimigos e concorrentes. Nesse período, o mercado de capitais americano
aumentou 250%, ficando com 56% da capitalização financeira global.
Os
grandes bancos americanos dominam hoje as finanças globais mais do que em 2010.
Cerca de 90% das transações financeiras globais são feitas em dólar. Ou seja,
não há nada que impeça que os EUA superem essa nova crise e recuperem
rapidamente sua capacidade econômica e financeira global, na frente de todos os
demais países desenvolvidos –com exceção, talvez, da China.
Ou seja,
olhando para a frente, há que colocar essa pandemia dentro de uma trajetória
mundial de grandes transformações que já estavam em curso, incluindo a
competição e o conflito entre China e Estados Unidos, que devem aumentar em
escala exponencial depois da epidemia, sobretudo se Donald Trump for reeleito.
NO
ESTOPIM DA CRISE NO CAMPO ECONÔMICO ESTÁ TAMBÉM A DISPUTA PELO MERCADO DE
PETRÓLEO. COMO ESSA LUTA DEVE EVOLUIR? QUAIS DEVEM SER OS PAPÉIS DA RÚSSIA, DA
ARÁBIA SAUDITA, DA CHINA E DOS EUA?
FIORI — A pressão sobre os preços e os
níveis de produção mundial de petróleo já vinha se acentuando desde antes da
epidemia e se materializou na ruptura das negociações da OPEP+ e no início da
guerra de preços entre Rússia e Arábia Saudita. Não há dúvida, no entanto, de
que a pandemia do coronavírus e a consequente queda da demanda mundial de
óleo foram decisivos para que o preço do petróleo caísse de US$ 70 para US$ 25
o barril, dando início à maior crise da indústria petroleira nos últimos cem
anos, segundo muitos especialistas da área.
Não se
sabe ainda por quanto tempo se prolongarão a epidemia e o baque da economia
mundial, nem tampouco se sabe o tamanho e a duração da recuperação econômica
depois do fim da pandemia. Mas uma coisa é certa: se os preços do petróleo se
mantiverem nos níveis atuais, eles terão um impacto muito grande sobre a
geoeconomia mundial do petróleo.
A
indústria americana do shale oil teria que ser protegida pelo governo ou
quebraria. E, neste caso, os EUA perderiam a posição que conquistaram nos
últimos três anos, de maior produtor mundial de petróleo. Esses preços
afetariam também a capacidade fiscal da Rússia e da Arábia Saudita e atingiriam
em cheio os países petroleiros que trabalham com altos custos de produção, como
é o caso do Irã, da Venezuela, do Iraque, da Nigéria etc.
Por isso,
é muito provável que se siga uma nova crise da dívida soberana dos países
dependentes da exportação do petróleo, como no caso quase imediato do Equador e
do México, mas também do Iraque e da Nigéria, entre outros. Nesse momento, tudo
leva a crer que as negociações, que foram retomadas, acabem levando a um
acordo. Mas não é provável que os novos preços sejam superiores aos US$ 35 o
barril. Mesmo esse preço seria insuficiente para alterar a situação do petróleo
americano e, muito mais, dos países que dependem inteiramente da sua exportação
de óleo.
Seja como
for, as perspectivas pela frente são muito ruins para a indústria do petróleo
como um todo e, como efeito derivado, para todo o mercado financeiro mundial e
norte-americano em particular, envolvido até o pescoço com as cadeias de
investimento e pagamento da indústria do óleo e com a própria valorização do
petróleo como ativo financeiro.
OS
EUA SE MOVIMENTAM NESSE MOMENTO NO CARIBE. UMA INVASÃO NORTE-AMERICANA NA
VENEZUELA É UM CENÁRIO POSSÍVEL? QUAIS AS CHANCES DE ESSA INVESTIDA SER BEM
SUCEDIDA? COMO REAGIRIAM CHINA E RÚSSIA NESSA HIPÓTESE? QUAL SERIA O PAPEL DO
BRASIL?
FIORI — No início do mês de março,
publicamos um artigo com William Nozaki anunciando essa possibilidade através
de um raciocínio e de um argumento deduzido a partir de várias evidências que
pareciam ainda desconectadas. Mas hoje essa ameaça já se materializou, com o
cerco naval da Venezuela em nome do combate ao tráfico de drogas que acontece
sobretudo na Colômbia e no México. Já se falou de defesa da democracia, de
necessidade humanitária, de combate ao comunismo etc. Mas agora se trocou pelo
combate ao tráfico de drogas para o mercado consumidor norte-americano. Os
motivos alegados já são a essa altura inteiramente irrelevantes. O que importa
é a decisão e a ação norte-americana, do seu bloqueio naval, das suas sanções
comerciais e da tentativa de estrangulamento financeiro da economia e do Estado
venezuelano.
Creio que
a invasão militar direta ainda é improvável –e, se ocorrer, será através de
bombardeios navais. Antes disto, entretanto, os EUA apertarão o cerco cada vez
mais para provocar pânico e aumentar o estresse psicológico do governo e da
população venezuelana, inclusive com o boicote à capacidade médica venezuelana
de combate na epidemia do coronavírus.
Creio que
Rússia e China manterão seu apoio ao atual governo venezuelano, mas não sei
calcular sua capacidade de bloquear ou desativar esse tipo de guerra que os
americanos estão promovendo. Do ponto de vista militar e estratégico, a
Colômbia é muito mais importante do que o Brasil. As bases americanas já estão
instaladas no território colombiano e a fronteira entre a Colômbia e a
Venezuela é mais extensa e ativa do que a fronteira brasileira.
Nesse
momento, o Brasil não tem capacidade militar nem financeira para enfrentar a
Venezuela. Mas com certeza lhe será destinado um papel que o comprometa nessa
ação, como fechar a fronteira sul da Venezuela, ou controlar e intervir
na Bolívia e no Equador, que completam o quadro geopolítico junto com o Peru,
da Amazônia Sul-Americana _e onde é muito provável que ocorram novas revoltas
populares, na sequência da epidemia. A disputa dos EUA com a China e a Rússia
já colocou a luta pelo controle da Amazônia Sul-Americana dentro do mapa
geopolítico e econômico da competição entre as grandes potências econômicas e
militares do sistema mundial. Esse parece ser um processo irreversível.
Os novos
acordos militares entre o Brasil e os EUA, negociados pelo governo Temer e
completados pelo atual governo brasileiro, como no caso do recente acordo
RDT&E, que foi assinado pelas autoridades brasileiras diretamente dentro do
Comando Sul das Forças Armadas dos EUA para a América Latina e o Caribe,
inscrevem-se diretamente dentro dessa estratégia americana, à qual o Brasil
agora está inteiramente subordinado. Amplos setores das FFAA brasileiras
acreditam e apostam na possibilidade de que esses novos acordos possam
transformar o Brasil numa espécie de “protetorado militar” dos EUA, com acesso
a algumas tecnologias militares mais avançadas, que são entregues a alguns
aliados mais estreitos dos EUA.
Mas,
nesse caso, não fica claro para que serviriam essas armas. Seria ridículo
imaginar que elas fossem suficientes para defender o país do ataque das grandes
potências militares do sistema mundial. E, nesse caso, elas só seriam “úteis”
contra os vizinhos mais fracos da América Latina, o que seria uma tragédia para
as futuras gerações brasileiras. Além disso, seria importante que esses
militares que não têm a representação da sociedade brasileira para tomar uma
decisão dessa gravidade lembrassem, por um minuto que fosse, que o Iraque
também foi armado pelos EUA para lutar contra o Irã, e depois foi inteiramente
destroçado pelos próprios EUA.
QUAIS OS
IMPACTOS DA CRISE SOBRE A ECONOMIA? O ATUAL ARRANJO PRODUTIVO DA CHAMADA
GLOBALIZAÇÃO (COM FRAGMENTAÇÃO DA PRODUÇÃO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO) PODE
RESISTIR A ESSA HECATOMBE?
FIORI — Seus impactos imediatos serão
devastadores. A epidemia do coronavírus não se destaca por sua taxa de
mortalidade, que é bem menor do que a de muitas outras grandes epidemias. Ela
se destaca pela velocidade do seu contágio e sua expansão universal. Ela foi
identificada na China, no final do mês de dezembro de 2019, e em três meses já
atingiu quase 200 países e mais de um milhão e meio de pessoas. Uma peste
velocíssima e que é já praticamente universal, sem que se consiga prever o seu
tempo de desenvolvimento futuro.
Alguns
especialistas falam em seis a sete meses, outros em dois a três anos, mas seu
impacto econômico foi quase instantâneo, atingindo a oferta e a demanda, com
uma queda da produção e aumento vertiginoso do desemprego em quase todos os
países do mundo, seguindo-se da quebra das grandes cadeias globais de produção
e de pagamento ao redor do mundo, com efeito imediato sobre os circuitos
financeiros de todo o mundo. Hoje, as perspectivas futuras já são muito
ruins, mas elas podem piorar ainda mais, dependendo da duração da epidemia e da
paralisia econômica dos EUA. E dependendo da profundidade de seu impacto sobre
a economia europeia. E, sobretudo, sobre o sistema monetário europeu, que está
ameaçado de naufragar junto com a própria União Europeia.
Não se
deve esquecer que, se esse “apagão” econômico do Ocidente se prolongar, ele
acabará dificultando também a recuperação da economia chinesa, que ficará
temporariamente afastada dos grandes mercados consumidores de sua produção
industrial. O FMI está revendo suas previsões a cada semana, mas já não tem
dúvidas de que em 2020 a economia mundial terá uma grande recessão, com
altíssimas taxas de desemprego, muito pior do que na crise de 2008.
Para os
EUA em particular, estão prevendo uma queda do PIB neste ano que deverá ser o
dobro da que ocorreu naquela grande crise. E a própria China está revendo para
baixo suas previsões iniciais para sua economia, que já eram muito ruins para
eles e para todo mundo.
A única
pergunta que permanece sem resposta é sobre a duração provável desse baque
econômico. Alguns falam em um semestre; outros em até três anos; no caso da
maioria dos países mais pobres, já se fala da década de 2020 como uma década
inteira perdida.
MUITOS
TÊM APONTADO QUE A CRISE VAI ENTERRAR AS IDEIAS NEOLIBERAIS E QUE O ESTADO
VOLTARÁ A SER CONSIDERADO COMO ESSENCIAL NA CONDUÇÃO DO ENFRENTAMENTO DA CRISE.
ISSO FAZ SENTIDO?
FIORI — Num primeiro momento, como em
todas as situações de guerra, ou de grandes catástrofes, o Estado será obrigado
a centralizar o comando e o planejamento sanitário e econômico do país e levar
à frente uma política econômica “heterodoxa” de aumento expressivo dos seus
gastos e de multiplicação do dinheiro disponível para as pessoas e as empresas.
Mas nada disso garante que depois da crise os países mantenham essa mesma
política de cunho mais fortemente keynesiano.
As
grandes potências deverão rever as estratégias de globalização de suas cadeias
produtivas.
A Rússia,
a China e alguns países europeus procurarão aumentar seus graus de liberdade
com relação ao sistema financeiro e monetário norte-americano. E todos deverão
aumentar o grau de proteção mercantilista de seus territórios e de sua
economia.
Os países
periféricos e mais fracos, pelo contrário, deverão enfrentar as “dívidas da
epidemia”, com a volta radicalizada a suas políticas anteriores de austeridade
fiscal e de venda acelerada do patrimônio público na “bacia das almas”, na
busca impossível do “equilíbrio perdido”.
Não é
improvável que nesse momento se multipliquem as revoltas sociais ao redor do
mundo e a mudança de governos nos países que ainda mantenham a prática de fazer
eleições periódicas e regulares, na década de 2020.
É
POSSÍVEL PREVER UMA CRISE FINANCEIRA QUE RESULTE NUM ENCOLHIMENTO DESTE SETOR
NA ECONOMIA MUNDIAL?
FIORI — Se a epidemia e a recessão
econômica se prolongarem, é muito provável que tenhamos uma crise financeira
mais grave pela frente, apesar de os governos e os bancos centrais dos países
mais ricos terem reagido de forma bastante rápida, mais rápida do que em 2008.
Nesse momento é do interesse direto dos EUA e do Fed repetir o que fizeram
naquela última crise financeira, assegurando liquidez em dólares para os BCs
das principais economias capitalistas dependentes do seu sistema financeiro.
Seja como
for, não devemos nunca esquecer a lição fundamental do historiador Fernand
Braudel, sobre a história do capitalismo: na origem do capitalismo, na primeira
a hora de sua existência, se estabeleceu uma relação muito estrita entre os
príncipes e os banqueiros e, desde então, eles permanecem unidos, numa espécie
de casamento indissolúvel, através de toda a história capitalista. Tudo indica
que seguirão juntos e inseparáveis, se defendendo mutuamente e mantendo
seus espaços relativos de poder, até o fim da história capitalista, se é que
ela terá um fim.
O GOVERNO
BRASILEIRO TEM SE MOSTRADO INEPTO NO ENFRENTAMENTO DA CRISE. O QUE É POSSÍVEL
PREVER SOBRE OS DESDOBRAMENTOS DA CRISE NO PAÍS DO PONTO DE VISTA SANITÁRIO,
SOCIAL E ECONÔMICO?
FIORI — A epidemia apenas explicitou o
que já se sabia: que o Brasil é presidido nesse momento por um cidadão
inteiramente desequilibrado, inepto e ignorante. E que a economia brasileira
está nas mãos de um pequeno financista, que só tem uma única ideia fixa na sua
cabeça. E, por isso, não consegue entender, pensar e reagir de forma um pouco
mais inteligente e eficiente frente ao tamanho da crise que o país está
enfrentando. Na verdade, não se trata de um governo; se trata de um amontoado
de pessoas reunidas pelos seus medos, suas fobias e seus ódios ao petismo, ao
lulismo, à China, ou seja lá ao que for.
Ou seja,
um governo inteiramente despreparado e sem comando e, portanto, incapaz de
enfrentar uma crise dessas proporções. Foram lentos e estão divididos frente à
epidemia e mal conseguem se mover no plano econômico para fazer o que todos os
governos do mundo estão fazendo. Ou seja, emitir e distribuir o dinheiro
indispensável para que as pessoas –sobretudo os desempregados e subempregados–
e as empresas possam seguir comprando, pagando e cumprindo seus compromissos
financeiros durante a paralisia inevitável da atividade econômica e durante a
longa recessão que teremos durante muito tempo.
Segundo o
próprio Ministério da Saúde, a epidemia no Brasil está recém na sua primeira
fase e deve se agravar em maio e junho, chegando até no mínimo a setembro. Além
disso, o contágio epidêmico parece ainda não ter alcançado as populações mais
pobres e marginalizadas das grandes cidades brasileiras –São Paulo e Rio de
Janeiro, em particular. Sabidamente, o Brasil está entre as sociedades mais
desiguais do planeta e isso o torna extremamente vulnerável frente à uma
epidemia contagiosa que, quando alcançar as populações e as comunidades mais
pobres, terá um efeito devastador.
Hoje, os
governadores dos Estados têm atuado de forma mais eficiente do que o governo
federal. Mas logo à frente o problema será alimentar a população de
desempregados e miseráveis de todo o país, sobretudo de suas grandes cidades. E
aqui não há como se enganar: os prognósticos para um país tão desigual e sem
governo são os piores possíveis.
É
POSSÍVEL QUE BOLSONARO POSSA SAIR DO GOVERNO EM MEIO A ESSA CRISE? POR IMPEACHMENT?
POR GOLPE? OU POR ALGUM OUTRO ARRANJO QUE AINDA NÃO VISLUMBRAMOS?
FIORI — Depois de um ano de pirotecnias
verbais e gestuais, esse senhor não se sustenta mais por si mesmo. Ele foi
instalado na Presidência da República por uma operação política, jurídica e
militar, nacional e supranacional bem sucedida. Mas ele é inteiramente incapaz
de governar ou mesmo de tomar alguma decisão um pouco mais difícil e que
demande um nível intelectual um pouco mais elevado. Sua inépcia pessoal e sua
total ignorância o impedem de saber o que fazer frente a situações desse tipo.
Ele é uma
espécie de boneco mecânico que foi programado para fazer sempre a mesma coisa,
como se fosse um boneco que só sabe cuspir e que reage frente a tudo sempre da
mesma maneira, cuspindo em qualquer circunstância. Isso já estava claro desde o
início, mas ficou muito mais visível no momento em que em que ele foi obrigado
a enfrentar uma situação que não estava prevista no seu programa e começou
então a dizer bobagens e fazer agressões a esmo. Só que, nesse caso, ameaçando
a vida dos próprios brasileiros.
Frente a
uma pandemia mundial, ele já não tem como jogar bananas, dizer palavrões,
agredir quem quer que seja. Sua única habilidade de paranoico agressivo ficou
inteiramente fora de foco. Assim mesmo, o mais provável é que esse senhor siga
sentado na cadeira presidencial por inteira falta de alternativa de seus
principais sustentadores: os financistas de plantão e os generais aposentados
que o cercam.
Por isso,
esse senhor deverá seguir onde está e fazendo as suas asnices diárias que nos
envergonham como brasileiros. E o país deverá seguir desgovernado a despeito da
junta militar que cuida do capitão, mas não tem comando direto sobre a
hierarquia das Forças Armadas. Hoje existem poucos economistas que queiram
substituir o pequeno ministro de uma ideia só, porque o desastre econômico já vai
muito avançado para que alguém queira pagar a conta e ficar com o abacaxi na
mão. E, portanto, o nosso prognóstico político e econômico para o Brasil é
muito ruim, e a situação deverá ficar ainda pior quando começarem a surgir os
primeiros focos de rebeldia social inorgânica, movidos pela fome e pela
miséria, que crescerão de forma geométrica no ano de 2020.
AS
OPOSIÇÕES TERÃO FORÇA POLÍTICA PARA AGIR NESSE QUADRO?
FIORI — Força política é uma coisa que se
conquista no dia a dia, com a capacidade de saber o que dizer e saber o que
fazer frente aos grandes desafios e oportunidades que se abrem na hora das
grandes crises. Ninguém é forte de antemão. Na hora das grandes catástrofes
muitas fronteiras se desfazem. Como dizia o poeta Antônio Machado, em plena Guerra
Civil Espanhola: nessas horas, “o caminho se faz ao caminhar”.
Publicado no Tutaméia em : 10 de abril de 2020
https://tutameia.jor.br/prognostico-e-ruim-e-vai-piorar-diz-fiori/
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