O Congresso Nacional decidiu atribuir, através
dos partidos de oposição, a renda básica de emergência por causa da covid 19 à
parte mais carente de sua população e, em poucas semanas, o país percebeu que a
parte mais carente da população é, direta e indiretamente, 60% dos cidadãos
por Víctor
David López, no site Pública e
revista ihu on-line – Sociedade e Pobreza no Brasil
Foto revista ihu on-line 17.nov.2017
A renda
básica de emergência,
aprovada graças à ação das organizações da sociedade civil, acabou sendo de 600 reais por mês, fixada apenas por três
meses, até o momento. O Governo
Federal elaborou o orçamento
pensando que o universo da população que se registraria para o saque seria
aqueles já inscritos em alguns programas sociais em andamento, como o Bolsa Família, e os inscritos no
denominado Cadastro Único. Equivocaram-se
muito. Começaram a aparecer brasileiros do nada.
Ao ser
aberto o prazo de solicitação, surgiram mais de 20 milhões de pessoas que nunca
tiveram uma conta bancária. Entre eles, 13 milhões de habitantes que não
estavam em nenhum tipo de registro, seja ele qual for, e a metade deles sem acesso
à internet, imprescindível, a princípio, para baixar o aplicativo móvel, que é
usado para se inscrever no programa. Intermináveis filas começaram a
envergonhar o país, com multidões nas portas da Caixa Econômica Federal, uma instituição bancária pública,
responsável pelo pagamento desse auxílio.
No total,
cerca de 60 milhões de habitantes terão acesso direto à renda básica de emergência no Brasil.
Esse número, analisado no âmbito dos núcleos familiares, alcança cerca de 130
milhões de brasileiros, 60% da população, atualmente em torno de 210 milhões.
“Encontramos
mais de 21 milhões de pessoas invisíveis, muito mais do que imaginávamos”,
reconheceu Onyx Lorenzoni,
ministro da Cidadania, em uma reunião com parlamentares, em 7 de maio. “Essa
também foi uma das razões para buscar o complemento orçamentário, para que
todos pudessem receber o primeiro pagamento”.
Um mês e
meio depois da aprovação da medida, a Caixa Econômica Federal confessa que
existem ainda entre 6 e 8 milhões de pessoas aguardando o primeiro pagamento
mensal dessa renda básica de
emergência. São aqueles que, até o dia de hoje, continuam fazendo fila para
regularizar sua situação. “Uma minoria barulhenta”, segundo o presidente
brasileiro Jair Bolsonaro. “Uns realmente têm
razão, outros se equivocaram e outros não têm direito”, disse o presidente, na
quinta-feira passada, em pronunciamento com Pedro Guimarães,
presidente da Caixa Econômica Federal.
“Nós,
sim, imaginávamos, é o retrato da desigualdade no Brasil”, afirma para essa
reportagem Sheila de Carvalho,
advogada, ativista de direitos humanos e membro da equipe de coordenação da
campanha da sociedade civil pela renda básica de emergência. “Estamos falando de uma população que em
sua maioria vive abaixo do salário mínimo”.
O mais
impactante é que esses números, que são perturbadores, podem ser ainda maiores,
já que outra parte dos cidadãos que precisam ficaram de fora por não atender
aos requisitos. Tatiana Lima,
jornalista e pesquisadora social, explica à agência
de notícias Pública que
o registro exclui aqueles que superaram em 2018 - porque tinham um contrato de
trabalho - o nível de renda que eram obrigados a apresentar na declaração de
renda, mas que durante 2019 e 2020 possam ter ficado desempregados. “A rua é um
mecanismo de sobrevivência. Os desempregados vão às ruas e montam uma barraca
para vender alguma coisa, ou vendem nos ônibus, trens e metrô”. Também é
impossível convencê-los a ficar em casa resguardados da covid-19, apesar de já serem
contados oficialmente 168.331 casos confirmados e 11.519 mortes.
O número
de cidadãos que precisa dessa ajuda aumentaria ainda mais se levarmos em conta
trabalhadores com contratos, mas com recursos limitados, levando em
consideração o salário mínimo mensal, 1.045 reais, e a escassa proteção social
para o trabalhador no Brasil.
No Brasil só existe o curto prazo
Em um
seminário recente, um dos onze juízes do Supremo Tribunal Federal,
Gilmar Mendes, tentava expressar um sentimento
generalizado no país: “A dificuldade do Governo
em encontrar esses chamados invisíveis, que sequer estavam nos cadastros
governamentais, isso nos enche de vergonha”, admitiu. “É realmente uma chaga
que precisamos banir”.
Como se o
escárnio não fosse suficiente, alguns trabalhadores com dívidas anteriores
estão vendo essa renda básica de
emergência embargadas em suas contas correntes, algo que o Governo garantiu que não aconteceria.
A Comissão
Nacional de Justiça publicou uma resolução a esse respeito para
cancelar esses embargos em plena pandemia.
As
dificuldades de acesso a essa renda
urgente, as multidões nas portas
da Caixa Econômica Federal,
os milhões de pessoas que ficaram de fora deste programa e os constantes apelos
de Bolsonaro para retomar a
atividade normal, em meio à explosão da pandemia no Brasil, faz com que Tatiana
Lima qualifique a postura do
Governo Federal como “uma política de morte”. Uma maneira qualquer de
decidir “quem vai viver e quem vai morrer”, levando em consideração que metade
da população brasileira é negra e pobre. “É o que Achille Mbembe, escritor
camaronês, define como necropolítica”.
Diante de
tal magnitude dos obstáculos, o futuro brasileiro só conhece o curto prazo. O
médio e o longo prazo são impenetráveis. “É muito importante que o Poder
Legislativo e o Poder Judiciário monitorem a implementação desse benefício para que
seja efetivo e que consigamos ter um mínimo de economia girando nos próximos
meses”, destaca Sheila de Carvalho.
Na sua opinião, a próxima medida nesse curto prazo deveria ser, quase com a
mesma urgência com que foi tratada a renda básica de emergência, “a ampliação da medida para além de três
meses, porque três meses não serão suficientes”. Lutarão para que cheguem até
dezembro e, a partir de então, terão que encadear outras lutas.
Publicação no site Publica: 12/maio/2020
Tradução: Cepat
http://www.ihu.unisinos.br/598882-as-interminaveis-filas-da-desigualdade-social-envergonham-o-brasil
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