Professor emérito da Universidade
de Yale, nos EUA, Frank Snowden analisa perspectivas de enfrentamento ao
coronavírus
por Praveen Sahai* no Brasil de Fato | Nova Delhi (Índia) | - Sociedade e vacinas contra a coronavirus
Características da covid-19 não
são propícias para o desenvolvimento de uma vacina eficiente e segura em curto
prazo - Ariana Drehsler / AFP
Mais de
cem pesquisas para desenvolvimento de vacinas contra o coronavírus estão em andamento, a maioria nos
Estados Unidos, na Europa e na China. Apesar das notícias animadoras divulgadas
por laboratórios privados sobre a evolução dos testes, é improvável que a
humanidade consiga erradicar a covid-19, que já matou mais de 400 mil pessoas
em todo o planeta.
Essa
hipótese foi analisada na última semana pelo professor Frank Snowden, referência mundial em história da
medicina, em conversa com o Brasil de Fato para uma reportagem sobre o fim das pandemias. Abaixo, a
entrevista está disponível na íntegra.
O entrevistado
Autor do
livro Epidemics and Society (em português, “Epidemias e sociedade”),
lançado em 2019, Frank Snowden é
professor emérito da Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Há dez anos, ele
ministrou o curso “Epidemias na sociedade ocidental desde 1600”, aberto à
comunidade. Somadas, as 26 aulas do curso têm mais de mil horas e estão disponíveis em inglês na internet.
O
conhecimento de Snowden sobre doenças
infecciosas não vem apenas dos livros. O pesquisador, que sobreviveu a um surto
de cólera em 1973, foi diagnosticado com o coronavírus durante uma viagem de
pesquisa à Itália, há três meses.
Aos 73
anos, Snowden recuperou-se da
covid-19, mas as medidas de isolamento impedem a retomada da pesquisa. A
entrevista ao Brasil de Fato foi concedida por vídeo durante a quarentena do
historiador em Roma, capital italiana.
Confira a
entrevista:
Brasil de
Fato: O isolamento horizontal, adotado em quase todos os países como forma de
conter a disseminação da covid-19, foi rejeitado por parte da população
brasileira. Um dos argumentos é que a humanidade sobreviveu a várias pandemias
sem, supostamente, tomar medidas extremas ou fazer grandes quarentenas.
Esses
mesmos grupos sugerem que haveria algum tipo de conspiração ou intenção oculta
por trás dessas medidas. Como você recebe esse tipo de afirmação?
É um
absurdo. Simplesmente não é verdade que essas medidas seriam inéditas e que o
mundo nunca teria experienciado isso.
É só
olhar para a história. O livro Diário do Ano da Peste [1722], de
Daniel Defoe, relata um lockdown [bloqueio total] muito mais longo e
rigoroso do que estamos vendo hoje, no caso do coronavírus. Medidas tomadas
durante a gripe espanhola [1918-1920] também incluíam quarentenas, bloqueios.
Enfim, há vários precedentes na história.
Essas
afirmações se dão em um contexto de rejeição à ciência. Pessoas estão se
recusando a adotar medidas de saúde pública que foram desenvolvidas ao longo de
séculos.
O
distanciamento social, os rastreamentos e os testes são as defesas que temos
contra essa doença. Se não adotarmos esse tipo de medida, abriremos caminho
para um desastre sanitário e, ironicamente, para uma crise econômica muito mais
duradoura. Porque, se não fizermos lockdown agora, será necessário fazer
no futuro – a não ser que essas pessoas queiram morrer.
É
importante lembrar que o lockdown é algo fundamentalmente temporário.
Não vamos ficar trancados para sempre. A ideia é mitigar o contágio por
determinado tempo, não para voltarmos ao que éramos antes, mas para repensarmos
e redefinirmos nossas cidades, nossos sistemas de saúde, para podermos propor
alternativas mais seguras.
É isso
que a Organização Mundial da Saúde [OMS], o Centro de Controle e Prevenção de
Doenças dos Estados Unidos e a União Europeia recomendam. Eu não quero dizer
que a Itália é um modelo, mas ela é um exemplo de que é possível retomar as
atividades gradualmente, com base nos critérios sugeridos por profissionais de
saúde.
Voltar ao
ritmo anterior, neste momento, não deixa de ser uma aposta, mas é possível
fazer isso sem simplesmente sair às ruas adotando as mesmas práticas de antes
da pandemia. Essa é a fórmula do desastre – no Brasil, nos Estados Unidos, onde
quer que seja.
Esse tipo
de retomada desastrada aconteceu, por exemplo, na gripe espanhola. Na
Filadélfia [cidade dos EUA], as pessoas organizaram uma grande celebração para
festejar a volta dos soldados [da Primeira Guerra Mundial], e isso resultou em
um dos surtos mais graves do país.
São
situações absurdas, que me fazem lembrar daquela famosa frase atribuída a
Albert Einstein: “A maior prova de insanidade é continuar fazendo a mesma coisa
esperando resultados diferentes”.
Jair Bolsonaro participa de ato
com apoiadores no dia 31 de maio de 2020; uma das demandas era o fim do
isolamento horizontal / Evaristo Sá / AFP
Na
abertura do seu curso na Universidade de Yale, o senhor diz que as epidemias
são tão decisivas para os rumos da história quanto as guerras ou revoluções,
porque provocam rupturas irreversíveis.
Que precauções devemos ter ao olhar
para o passado e comparar a covid-19 com outras doenças pandêmicas, como
HIV/Aids ou gripe espanhola, por exemplo?
Não há
muitas similaridades entre covid-19 e HIV/Aids. Os modos de transmissão são
completamente diferentes. Uma aproximação possível são os estigmas criados em
torno das duas doenças.
No caso
do HIV, isso se deu desde o epicentro, na África do Sul. Nos Estados Unidos
também, os homossexuais se tornaram alvos, foram considerados culpados pela
direita evangélica, como se a doença fosse um castigo divino.
Isso continua
até hoje. Assumir a homossexualidade em várias partes do continente africano é
um grande tabu, que leva as pessoas a não procurarem médicos e a não procurarem
tratamento para sua doença. Eles ficam paralisados, e essa postura paralisa o
sistema público como um todo.
No caso
da covid-19, os estigmas também estão presentes. O caso mais evidente é o dos
Estados Unidos, porque membros do alto escalão apontam o dedo e dizem que é uma
“doença chinesa”, um “vírus chinês”.
O estigma
é uma pandemia à parte, paralela à da covid-19, que dificulta a ação dos
trabalhadores da saúde pública. Se os nacionalistas na Europa dizem que é uma
doença de imigrantes, se outros países decidem tratar como uma doença de
chineses ou asiáticos, isso desvia a atenção e atrapalha as medidas de
enfrentamento às causas reais da pandemia.
Infelizmente,
a covid-19 não reúne as características necessárias para o desenvolvimento de
uma vacina eficiente em curto prazo
Outro
problema é a violência contra asiáticos pelo mundo. As pessoas que acreditam ou
difundem esses estigmas sequer fazem distinção entre etnias, não querem saber
se o outro é coreano ou vietnamita. Então, já há casos de crianças sendo
agredidas, pessoas insultadas no metrô de Nova York. Hoje, muitos descendentes
de asiáticos têm medo de pegar metrô ou só se sentem seguros viajando em grupo.
Tudo
isso, a exemplo do HIV e várias doenças na história, dificulta a tarefa de
contenção da covid-19. Aqui na Itália, por exemplo, a ânsia de tentar culpar
alguém tem levado a uma grande caça ao paciente zero, ou seja, quem teria
trazido a doença ao país. Aliás, os indícios levam a crer que o primeiro
infectado seja de origem alemã, e não chinesa, o que não deixa de ser uma
ironia.
Mas, para
além dessa questão do estigma, Aids e covid-19 são muito diferentes e
requerem planos de contenção distintos.
A
pandemia mais comparável à do novo coronavírus é a da gripe espanhola. Ambas
são facilmente transmitidas pelo ar e exigem ações muito parecidas dos indivíduos
e do sistema público: uso compulsório de máscaras, medidas de isolamento e lockdown,
higienização das mãos, proibição das aglomerações, criação ou adaptação de
hospitais especialmente para pacientes dessas doenças.
No caso
da gripe espanhola, além das medidas sanitárias que foram adotadas globalmente,
há indícios de que o vírus sofreu uma mutação que o tornou menos letal.
Mesmo
assim, a pandemia durou três anos e matou entre 50 e 100 milhões de pessoas. A
covid-19 pode ter níveis semelhantes de duração e letalidade?
A gripe
espanhola parecia ser socialmente mais neutra que a covid-19. Ou seja, ela se
espalhava quase que igualmente entre as classes, e não desproporcionalmente
entre os pobres, como vemos hoje.
Se
olharmos para os Estados Unidos, por exemplo, onde existe uma relação entre
pobreza e etnicidade, vemos que afro-americanos que contraem covid-19 têm maior
taxa de mortes. Isso não acontecia na gripe espanhola, mesmo com as
desigualdades nas condições de moradia e acesso à água.
A
covid-19, claro, pode afetar qualquer um, mesmo quem pertence às elites da
sociedade. Boris Johnson [primeiro-ministro do Reino Unido], membros do alto
escalão do governo Bolsonaro, atores de Hollywood, jogadores de futebol e até
príncipes foram infectados. Mas, proporcionalmente, as taxas de mortes são
maiores em regiões pobres, onde o acesso à saúde é mais difícil.
Os
Estados Unidos, por exemplo, não têm um sistema de saúde robusto que permita
atender a todos. Isso é um problema. Quem vive em regiões pobres precisa
trabalhar e está exposto ao vírus, e o sistema de saúde não consegue nem
monitorar quantos estão infectados porque eles não acessam o serviço público.
Internacionalmente,
a situação se repete. Isso não era claro quando a doença apareceu, mas está
cada vez mais evidente. Pobreza e vulnerabilidade fazem disparar os casos e as
mortes por covid-19.
As
favelas de Mumbai, na Índia, são um caso emblemático e catastrófico. Falar em
distanciamento social para quem dorme em um quarto de 5 m² com outras dez
pessoas, em um calor de 38 °C, sem ventilação, não faz o menor sentido.
Lá e em
várias favelas pelo mundo, famílias vivem aglomeradas, e mesmo da porta para
fora não há como manter distanciamento. A densidade populacional é enorme. Em
Mumbai, para completar, não há abastecimento regular de água, há muitos casos
de tuberculose, fome, desnutrição, e tudo isso torna os moradores mais
vulneráveis à covid-19.
Então,
não sabemos quanto tempo ela vai durar, e qualquer estimativa de mortes
dependerá das medidas tomadas globalmente. A meu ver, pela experiência que
temos de outras pandemias, não vejo condições para a covid-19 ser controlada em
breve.
É
provável que os países ricos superem a doença antes, enquanto regiões
empobrecidas conviverão com altos índices de letalidade por mais tempo?
Posso
dizer que sim, mas com uma ressalva. As condições sociais nas favelas do Rio de
Janeiro, na Argentina, na Índia, na África Subsaariana, reúnem uma série de
fatores que podem propiciar uma explosão da doença, de maneira violenta e por
longo tempo.
A ressalva
que faço é em relação às políticas terríveis conduzidas em países como os
Estados Unidos e o Reino Unido. É possível prever um efeito rebote, com novos
surtos nessas localidades. Embora possamos afirmar que as taxas de mortalidade
seriam menores do que nos outros países que mencionei, não há elementos para
dizer que eles estarão entre os primeiros a superar a doença.
Pessoalmente,
considero que levará anos para resolvermos esse problema.
Laboratórios
vêm divulgando notícias animadoras sobre a evolução de testes para fabricação
de vacinas contra a covid-19.
O que a história da medicina nos diz sobre a
possibilidade de erradicação de uma doença pandêmica por meio de vacinação?
O
presidente [dos EUA] Donald Trump está falando em desenvolver vacinas “na velocidade
da luz”, mas não é assim que a ciência opera. Se for esse o imperativo,
corre-se o risco de violar precauções de segurança, e tudo o que não precisamos
é uma vacina que mate mais pessoas.
Eu diria
que, infelizmente, a covid-19 não reúne as características necessárias para o
desenvolvimento de uma vacina eficiente em curto prazo. Aliás, é preciso deixar
claro que ela não será erradicada.
A única
doença pandêmica erradicada até hoje foi a varíola [em 1980], e isso foi
possível porque não havia hospedeiro animal. Agora, temos uma doença
transmitida por animais, o que sugere que ela pode voltar a ser transmitida.
Então, para ficar claro: não vamos erradicar a covid-19.
Outro
elemento é que as doenças que propiciam o desenvolvimento ágil de vacinas são
aquelas que produzem uma imunidade robusta e duradoura em quem as contrai e
sobrevive. Não é o caso da covid-19, pelo que se sabe até agora.
Portanto,
a tarefa de desenvolver uma vacina eficiente é muito mais complicada e talvez
não seja possível. Ou, se for possível, talvez tenhamos uma vacina com eficácia
de 20% ou 30%.
Outra
diferença para a varíola diz respeito ao rastreamento de pacientes ou ao
controle do número de infectados. Era fácil saber quem tinha varíola, por causa
dos sintomas. Por outro lado, a maioria dos pacientes de covid-19 são
assintomáticos.
Em
relação à distribuição, também há sinais de que será difícil garantir acesso
global à vacina. O nacionalismo já começa a se sobrepor à ideia de cooperação
internacional, dificultando o trabalho da OMS.
Tudo leva
a crer que o número de doses será limitado, e o acesso a elas dificilmente não
estará sujeito à capacidade de pagamento. Países ricos e pessoas de alta renda
terão, certamente, acesso desproporcional a vacinas.
Outro
aspecto que podemos prever é que os movimentos antivacina espalhados pelo mundo
tendem a dificultar a tarefa de distribuição. Eles tendem a espalhar a ideia de
que a vacina da covid-19 aumenta a mortalidade ou causa outras doenças. Isso
pode ter consequências terríveis, a depender da capacidade de convencimento
dessas campanhas.
Se as
doenças pandêmicas raramente são erradicadas, como é que as pandemias chegam ao
fim?
Essa é
uma questão difícil. Geralmente, existe uma ilusão de que a doença "chegou
ao fim", o que reflete certa ignorância científica. Vou usar a Aids
como exemplo.
Hoje, as
pessoas podem viver anos com o vírus HIV, devido à descoberta do
antirretroviral. Mas ele não representa a cura. A expectativa de vida ainda é
consideravelmente menor e muitos seguem transmitindo a doenças para outras
pessoas.
A doença
não terminou. Hoje, estamos presenciando um novo surto na Flórida [costa leste
dos EUA], particularmente, e outros estados. É, mais uma vez, um problema
relacionado à pobreza. Muitos imigrantes ilegais contraem o vírus e não
procuram ajuda porque correriam o risco de serem descobertos e deportados.
Mas, se
você conversar com pessoas nos EUA, a maioria vai dizer que o vírus HIV foi
erradicado no país. Isso é muito mais uma forma de pensar do que uma realidade
objetiva. O vírus segue sendo transmitido, as pessoas estão adoecendo e
morrendo. Quando isso acontece, não podemos considerar que a doença chegou ao
fim. Sabemos que isso também acontece na África do Sul, por exemplo, ou em
Botsuana, mas lá as pessoas estão cientes disso e não têm a ilusão de que ela
terminou.
* Praveen Sahai escritor e autor indiano
Publicação Brasil de Fato: 07 de Junho de 2020 às 08:48
Edição: Vivian Fernandes
Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2020/06/07/covid-19-nao-sera-erradicada-afirma-especialista-mundial-em-historia-da-medicina
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O comentário será analisado para eventual publicação no blog