Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor detalha
lógicas que constituem o trabalho via plataforma de aplicativos
que, numa espécie de atualização do capitalismo no século XXI, concebem essa forma de exploração das forças de
trabalho
por João
Vitor Santos no IHU Unissinos – Sociedade
e Luta Popular por Direitos
Foto: Públicas/Roberto
Parizotti
Sidnei Machado (Foto: Arquivo
pessoal)
IHU
On-Line – Que avaliação faz da greve dos entregadores que trabalham via
aplicativo de plataforma, realizado no início do mês?
Sidnei
Machado* – A greve de 1º de julho dos entregadores
e motoboys foi muito significativa do ponto de vista da representação
coletiva e, da forma mais ampla, da resistência no conflito coletivo do
trabalho instaurado frente ao modelo de negócios das plataformas digitais.
A minha avaliação é que a convocação do “Breque dos APPs” teve grande êxito
organizativo, a julgar pelas paralisações e protestos em cidades importantes
brasileiras, pela forte repercussão nas redes sociais e pelos impactos
produzidos na entrega de comida.
A
primeira característica notável dessa greve é que os atores que a convocaram
são coletivos horizontalizados em comunidades dispersas, mobilizadas
principalmente em redes sociais – Sidnei Machado
A primeira característica notável dessa greve é que
os atores que a convocaram são coletivos horizontalizados em comunidades
dispersas, mobilizadas principalmente em redes sociais (Facebook, Twitter e
Instagram) e grupos de WhatsApp. Mas o que se observou no Brasil, diferentemente de greves de
entregadores em outros países, é que o movimento teve apoio e impulso
organizativo de centrais sindicais e sindicatos de classe, que chegaram a
mobilizar trabalhadores do setor formal de entregadores nos protestos.
Identifico nessa estratégia uma articulação nova e emergente, um sentido de
solidariedade na luta por direitos dos trabalhadores.
Um segundo elemento da greve, que também contribuiu
para o seu êxito, foi a ampla adesão e solidariedade
de consumidores dos serviços, que usaram as plataformas para criticar as
empresas por meio de avaliações negativas dos serviços. Esse importante apoio
dos consumidores, associado à grande repercussão nas redes socais e uma
cobertura positiva do movimento pela grande mídia, deu um significado de uma greve necessária e legítima.
É possível superar
barreiras legais das plataformas
É prematuro prever os desdobramentos que a greve
terá, mas o balanço do ponto de vista da representação coletiva desses
trabalhadores é muito positivo. A greve demonstrou que é possível superar as
imensas barreiras da ação coletiva
para esses trabalhadores precarizados, que trabalham
dispersos e que competem entre si. Além disso, a greve evidenciou também que há
uma possibilidade concreta de contornar as muitas limitações jurídicas ao
exercício de direitos coletivos desses trabalhadores. Embora não organizados em
sindicatos verticais, no modelo tradicional da
organização sindical, o pleno exercício do direito de greve como expressão da
liberdade sindical e como um direito coletivo fundamental.
Um
segundo elemento da greve, que também contribuiu para o seu êxito, foi a ampla
adesão e solidariedade de consumidores dos serviços – Sidnei Machado
IHU On-Line – O que a paralisação destes
trabalhadores significa neste momento, especialmente em meio à pandemia?
Sidnei Machado – A precariedade
do trabalho mediado por plataformas digitais de entrega já vem
sendo denunciada há anos como protótipo do trabalho precário, sem direitos
trabalhistas, com práticas de abuso das plataformas em tratar entregadores como
meros parceiros. São trabalhadores que permanecem conectados e disponíveis sete
dias por semana, em longas e exaustivas jornadas e a
retribuição é uma tarifa baixa.
Durante a pandemia, o serviço de entregas a
domicílio foi considerado atividade essencial, gerou um aumento de demanda para
essas empresas, que aproveitaram a oportunidade para expandir seus negócios,
contratar um número maior de entregadores. O problema contrastante é que para
os trabalhadores as empresas impuseram condições desfavoráveis durante a pandemia,
fazendo, com isso, exacerbar a precariedade do trabalho e das práticas abusivas
oriundas do poder das empresas de plataformas.
Esse movimento das empresas foi captado em uma
pesquisa da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista - Remir
e da Clínica Direito do Trabalho da UFPR, realizada durante a pandemia, que mostrou precisamente que a
renda desses trabalhadores não aumentou com o crescimento da demanda por
entregas, eles passaram a trabalhar mais e ganhar menos pelas entregas. Sem uma
regulação protetiva pelo Estado e sem respostas adequadas do Poder Judiciário
quando provocado, a precariedade e a exploração a que estão sujeitos esses
trabalhadores não diminuíram no período da pandemia. Pelo contrário, a crise da covid-19 serviu apenas para
acentuar as piores práticas das empresas de entrega, pois há uma percepção
pelos entregadores que as plataformas usam a pandemia para modificar as
condições de trabalho. O estalido da fúria dos entregadores com as plataformas
decorre dessa percepção de abuso das tarifas. A greve se prestou a dar uma
visibilidade maior às duras condições de trabalho desses trabalhadores e das práticas
abusivas.
As
empresas impuseram condições desfavoráveis durante a pandemia, fazendo, com
isso, exacerbar a precariedade do trabalho e das práticas abusivas oriundas do
poder das empresas de plataformas – Sidnei Machado
Mercado paralelo e
precário
Um outro sentido da greve foi o de desvelar o
discurso encoberto pelas novas tecnologias e lançar luz sobre o conflito coletivo
central instalado com as plataformas digitais, que é o seu modelo de uso e
exploração do trabalho que promove o trabalho independente e se dissociam dos direitos do trabalho (contrato de
trabalho, salário mínimo, limite de jornada, férias etc.), instituindo um
mercado de trabalho paralelo e precário. A ocultação da qualificação jurídica
do trabalho visa obstruir a intervenção do Estado, gerando um aumento do poder
empresarial e das assimetrias nas relações de trabalho.
Apesar da greve se apresentar com pauta basicamente
pelo aumento no valor das tarifas e condições de segurança frente à pandemia,
ela representou também uma luta por direitos, direitos de cidadania básicos, associado
claramente a uma postura de resistência à racionalidade da governamentalidade
neoliberal para, ao mesmo tempo, denunciar a degradação da remuneração e o
modelo da falsa independência do trabalho.
Apesar
da greve se apresentar com pauta basicamente pelo aumento no valor das tarifas
e condições de segurança frente à pandemia, ela representou também uma luta por
direitos – Sidnei Machado
IHU On-Line – Como analisa as respostas das
empresas ao movimento brasileiro?
Sidnei Machado – As grandes plataformas digitais continuam com a mesma
estratégia discursiva e de atuação, que está cada vez mais fragilizada. Elas
ficam presas ao discurso de uma economia digital e inovadora, para afirmar
que seus negócios têm um papel de intermediárias entre clientes e prestadores
de serviços. O que é fundamental, e que está subentendido nesse discurso, é a
necessidade que elas têm de aferrar-se à lógica de que os entregadores não são
empregados, mas sujeitos autônomos, microempreendedores. É com essa
narrativa que elas buscam transferir os riscos ligados à atividade ao
entregador e, por isso, não têm alternativas de ação.
Essa estruturação de base do capitalismo de plataformas, vinculada à
mercantilização do trabalho independente, faz com que esses atores econômicos
não criem espaços de diálogo social e de negociação coletiva com os
entregadores, ao menos nos moldes de um modelo democrático de relações de trabalho. As respostas às
demandas do trabalho pelas plataformas em geral são dirigidas aos consumidores
e ao mercado e, por vezes, ao Judiciário e ao Estado, como
prevenção às decisões judiciais dos tribunais e às iniciativas de regulatórias.
iFood foi a única
a se manifestar na greve
Durante a greve de 1º de julho o iFood foi a
única plataforma a fazer uma manifestação formal sobre as demandas dos entregadores,
publicada em seu portal de internet e em forma de propaganda exibida em horário
nobre na TV aberta. No entanto, o conteúdo não foi uma resposta às demandas dos
entregadores, já que elas se limitam a se defender desqualificando as
reivindicações dos entregadores, com apoio em pesquisas internas e, ao mesmo
tempo, reafirmam os valores de seu modelo de negócios, para dizer que valorizam
a flexibilidade de horário e liberdade para compor sua renda e, ainda, que o
entregador é livre para entregar via app quando, como e onde quiser.
O que se constata é que o iFood, e outras
plataformas que silenciaram durante a greve, não têm interesse em dialogar
diretamente com os entregadores – Sidnei Machado
O que se constata é que o iFood, e outras plataformas que
silenciaram durante a greve, não têm interesse em dialogar diretamente com os entregadores.
Elas continuam a se valer de suas estruturas de poder para defender a
estruturação do negócio e confiam muito na sua capacidade de controle do
processo do trabalho e na potencialidade de evitar a resistência coletiva dos entregadores.
IHU On-Line – Quais transformações o trabalho por
plataforma impõe aos trabalhadores e ao mundo do trabalho? E como as compreende?
Que consequências geram?
Sidnei Machado – As plataformas
são um modelo de negócios, estrategicamente importantes para o capitalismo global. Quando surgiram havia
muitas teses e hipóteses em torno do caráter disruptivo para o trabalho
vinculado geralmente à revolução tecnológica. Há muitas disputas conceituais
sobre o conceito de plataformas, se representam um capitalismo de vigilância ou um capitalismo de plataformas, mas isso não
contribuiu decisivamente para compreender como elas de fato funcionam.
As
plataformas são um modelo de negócios, estrategicamente importantes para o
capitalismo global – Sidnei Machado
Nos últimos anos, uma série de pesquisas empíricas
importantes têm contribuído para uma compreensão mais refinada e profunda do
funcionamento das plataformas, desconstruindo o grande mito associado à
revolução tecnológica e da suposta neutralidade tecnológica no gerenciamento
das plataformas. Essas pesquisas têm demonstrado que as plataformas
reconfiguram substancialmente a natureza do trabalho e isso é que ofusca as
questões sobre emprego, condições de trabalho, qualificação jurídica do
trabalho, proteção social e relações coletivas de trabalho, para mencionar
alguns temas nucleares. Do meu ponto de vista de jurista, a questão da relação
de emprego é central para as plataformas.
No modelo das plataformas, o que se constata como
singularidades na organização do trabalho são essencialmente o seu modelo
de seleção de trabalho e os mecanismos de controle e avaliação dos prestadores
de serviços. As plataformas não são corporações hierarquizadas, na medida em
que elas atuam pelo gerenciamento algorítmico que possibilita gerar muitos
dados e mapear completamente a atividade de uma multidão de trabalhadores e
controlar essa atividade. É na organização e gerenciamento do trabalho nas
plataformas que reside o seu caráter disruptivo, pois fica ofuscada a relação
empregado e empregador pela governança digital. A coordenação triangular de
poder entre cliente, plataforma digital e trabalhador cria confusão, espaços
não regulados e zonas cinzentas. Aqui é que o trabalho subordinado clássico se
vê eclipsado, fazendo que se gerem muitas assimetrias entre trabalho e
plataformas.
A coordenação triangular de poder
entre cliente, plataforma digital e trabalhador cria confusão, espaços não
regulados e zonas cinzentas – Sidnei Machado
Biopolítica soft para dominação dos entregadores
O
conhecimento do funcionamento desse gerenciamento tem demonstrado, no entanto,
que a tecnologia não é mera mediadora, ela faz prescrições, cria cálculos e
métricas sofisticadas e, também, promove mecanismos de incentivos de
recompensas, a exemplo de tarifas dinâmicas e bonificações para os
entregadores, para fortalecer a relação com os prestadores. É algo próximo
daquilo que apropriadamente John
Cheney-Lippold denominou de biopolítica
soft.
O
problema central é que a falta de compreensão dessas práticas não tem permitido
a explicação dessa nova relação entre o clássico binômio subordinação e autonomia, que longe de
serem noções opostas, se articulam no trabalho gerido pelas plataformas. Essa
incompreensão de como operam os controles pela governança digital, que se vê
presente em grande número de decisões judiciais, resulta no encolhimento da
proteção social pela desconexão entre trabalho e direitos.
IHU On-Line – Em que medida a atuação dessas
empresas digitais reconfigura as relações de poder e direitos humanos no mundo
do trabalho?
Sidnei Machado – É fundamental
pensar as plataformas a partir de um quadro mais amplo de generalização da precariedade do trabalho para o qual as plataformas
concorrem como fenômeno de transformações no modelo de emprego, fatores que
colocam novos desafios de como proteger esse trabalho, assegurar direitos
individuais e coletivos. Paralelamente, há o movimento de desregulação da proteção social do trabalho, com reformas
legislativas que reforçam o trabalho por conta própria, em grande parte
promovendo a liberdade individual
e a liberdade contratual.
Na perspectiva da regulação do trabalho e de suas
categorias jurídicas construídas pelo entorno do modelo fordista, as
plataformas estão dentro de um quadro de desmantelamento do contrato de
trabalho – Sidnei Machado
Então, na perspectiva da regulação do trabalho e de suas categorias
jurídicas construídas pelo entorno do modelo
fordista, as plataformas estão dentro de um quadro de desmantelamento do
contrato de trabalho. Essa combinação de circunstâncias da crise do trabalho
gera um ambiente de “tempestade perfeita” a favor do negócio das plataformas.
IHU On-Line – Quem são os trabalhadores por
plataforma no Brasil? O que difere um motorista de aplicativo de um entregador
de delivery?
Sidnei Machado – Não há dados
precisos no Brasil de quem são e
quantos são os trabalhadores de plataformas. O que se sabe é que é um setor em
ampla expansão e correspondem aos trabalhos mediados por algoritmos e baseado
em plataformas. Alguns estudos começam a estratificar esse trabalho por
tipologias, por nível de habilidade ou por natureza do trabalho produzido, por
exemplo.
Sobre o trabalho de motoristas de aplicativos, a
exemplo do Uber, já se tem um conhecimento maior do
modelo de gerenciamento do trabalho dos condutores. Já as peculiaridades do
trabalho do entregador, o que chamam de delivery, têm sido objeto de estudos mais recentes, ainda em
desenvolvimento. Ambos são trabalhos mediados por plataformas. A primeira
diferença é que o motorista de aplicativo atua no setor de transporte urbano
privado de passageiros, enquanto o entregador está vinculado ao setor de
transporte de mercadorias.
A
atividade do motorista parceiro foi regulada em 2012 no Brasil, como modalidade de transporte urbano dentro da Política Nacional de Mobilidade Urbana.
Para o motofretista e motoboy houve a
regulamentação em 2009, mas ela não abrange o entregador de aplicativo. Do
ponto de vista do gerenciamento do trabalho há muitas singularidades, mas ambos
têm em comum o conflito sobre a qualificação jurídica do trabalho.
IHU On-Line – Quais são as maiores fragilidades
desse trabalho por plataformas?
Sidnei Machado – A principal
problemática é que as plataformas não promovem um trabalho decente, na medida
em que se recusam a associar o trabalho a direitos, à proteção social.
Transferem aos trabalhadores os riscos e custos do negócio e deixam o
trabalhador sem direitos e sem proteção social, ou
seja, vulnerável socialmente. Isso é absolutamente indesejável e insustentável
socialmente, porque o trabalho em plataforma está muito longe de um trabalho
bem remunerado, livre e autônomo.
Então, a vulnerabilidade desse trabalho é a
ausência de reconhecimento do seu correto status jurídico de um trabalho
assalariado. Esse modelo cria uma erosão no Estado Democrático de Direito,
que bem ou mal temos previsto na Constituição,
que articula trabalho, democracia econômica e direitos de cidadania. O modelo
das plataformas fragiliza o trabalho como valor e promoção de cidadania, em
nome dos interesses do mercado, ou seja, da mercantilização do trabalho. Por isso a fragilidade
conceitual do trabalho por plataformas e a sua pretensão de tornar o trabalho
mera mercadoria, fora de um modelo de direitos do trabalho de base democrática,
que contemple direitos individuais e coletivos.
IHU
On-Line – Como se dá a representação coletiva e o exercício de negociação
coletiva por trabalhadores de plataformas digitais?
Sidnei
Machado – A representação coletiva e sindical dos
trabalhadores em plataformas digitais é um grande desafio. Há muitos obstáculos
para a correta adequação do modelo organizacional das plataformas digitais ao modelo clássico de representação coletiva.
O trabalho em plataformas digitais em muitos
aspectos se assemelha aos modelos clássicos de trabalho, mas é problemático o
acesso desses trabalhadores aos direitos coletivos de representação coletiva e
aos direitos derivados da liberdade sindical e da negociação coletiva.
Do lado dos sindicatos, há um dilema sobre a
estratégia dessa representação. Os sindicatos
têm a responsabilidade de defender os empregos tradicionais no mercado de
trabalho e seus direitos e, por isso, avaliam os riscos de organizar os novos
trabalhadores precários, externalizados e contratados basicamente por tarefas,
num espaço totalmente desregulado. Os sindicatos
compreendem também as dificuldades práticas da representação. No mercado desregulado das plataformas,
inexiste o contrato de trabalho e, nesse espaço, os sindicatos estão totalmente
excluídos da representação coletiva. Além disso, as
empresas de plataformas digitais, dispersas e ocultas por seu próprio modelo de
negócios, não se consideram empregadoras, o que revela uma imensa dificuldade
de entrar nessas empresas.
Os sindicatos têm a responsabilidade de defender os
empregos tradicionais no mercado de trabalho e seus direitos e, por isso,
avaliam os riscos de organizar os novos trabalhadores precários – Sidnei
Machado
O desafio da representação também aparece pelo
modelo da organização sindical brasileira, ainda delimitado pela noção de
“categoria profissional”. Como justificar a “categoria” de trabalhadores por plataformas?
A base de representação também é problemática, pois essas plataformas são um
ente deslocalizado e difuso, de difícil identificação e localização, não raro
organizadas com distintas identidades opacas e ocultas.
Dificuldades da defesa jurídica e mobilizações dos
entregadores
Na representação coletiva há também
o impasse frente à heterogeneidade cada vez maior desses contratos de serviços,
com características de uma atividade intermitente e independente, que de tempos
em tempos vincula o trabalhador ao empregador ou ao cliente. A perda do sentido
de pertencimento ao coletivo gera dificuldades para unificar o interesse
coletivo heterogêneo e fragmentado e, também, para mobilizar e organizar de
maneira eficiente a representação.
A
despeito dos muitos impasses de representação coletiva,
a ação coletiva dos trabalhadores em plataformas digitais é movimento em
ascensão no Brasil e em diversos
países. Consta-se que o movimento nas redes sociais de coletivos organizados é
crescente. Em diversos Estados
foram criados sindicatos, principalmente no setor de transporte de passageiros
e de entregas a domicílio. Os sindicatos de aplicativos quanto às
associações têm atuações bastante similares, de natureza preponderantemente
assistencial, com o fornecimento de serviços, e não se identifica em seus
estatutos ênfase na representação coletiva dos trabalhadores.
A
despeito dos muitos impasses de representação coletiva, a ação coletiva dos
trabalhadores em plataformas digitais é movimento em ascensão no Brasil e em
diversos países – Sidnei Machado
Os grupos de redes sociais de auto-organizações, em
regra não formais, sem grande hierarquia, atuam como fonte de informações, com
possibilidade de mobilizações pontuais para reivindicar melhoria nas condições básicas de trabalho, a exemplo de
demandas por melhor atendimento da plataforma e de aumento de remuneração.
Diferentemente de organizações de outros países que reivindicam o
reconhecimento da relação de trabalho — a exemplo do Sindicato Free Riders, da Espanha,
e do Riders Union Bologna, na Itália — esses grupos não se organizam com esse objetivo
central. Os grupos organizados em redes sociais surgem basicamente daqueles que
exercem a mesma tarefa (entrega de comida, por exemplo) e as suas
reivindicações são muito específicas (problema de comunicação com a plataforma,
por exemplo).
Desafios da defesa junto à justiça
Não há
registro de experiências no Brasil de atuações visando ao estabelecimento de processo de negociação coletiva, ou mesmo a
reivindicação do estabelecimento de um código de conduta pelas plataformas digitais, com padrões de
trabalho justo, que poderia reforçar as melhores práticas na relação entre
plataformas digitais e seus prestadores de serviços. Até este momento as
iniciativas de representação e ação coletiva não reivindicam o modelo de
representação tipicamente sindical, embora haja ações com iniciativas de
resistência e denúncias.
Certamente que uma efetiva representação coletiva pode ter impacto na melhoria das condições
de trabalho desses trabalhadores. Apesar das dificuldades, são muitos os
possíveis espaços de intervenção via representação, a exemplo de temas de
remuneração, tempo de trabalho, formação profissional, proteção à saúde e
segurança.
IHU
On-Line – Como as instituições públicas, em especial o Judiciário, têm tratado
das questões trabalhistas relativas aos trabalhadores de plataformas? O quanto
já se avançou em termos de entendimentos e proteção dessas pessoas e no que
ainda é urgente que se avance?
Sidnei
Machado – Não há
regulação do trabalho em plataformas no Brasil e, também, não se avançou no
debate público sobre a necessidade de regulação. Há projetos de lei
apresentados no parlamento brasileiro; contudo, eles não avançaram, em grande
medida pelo contexto político desfavorável no país, marcado por uma dinâmica de
crescente desregulação do trabalho. É preciso lembrar que o Ministério do Trabalho foi extinto no Brasil pelo presidente Jair Bolsonaro, que nos retirou a
possibilidade de alguma mediação pública para esse conflito com as plataformas.
Não há regulação do trabalho em
plataformas no Brasil e, também, não se avançou no debate público sobre a
necessidade de regulação – Sidnei Machado
A
instituição pública que tem se destacado nesse tema é o Ministério Público do
Trabalho. Com um ativo
grupo de procuradores, muito vinculado à pesquisa acadêmica, tem impulsionado o
debate público do trabalho das plataformas com publicações
de estudos técnicos, ao mesmo tempo que inicia uma estratégia de judicialização
do conflito coletivo sobre a qualificação jurídica do trabalho e garantia de um
trabalho digno e seguro. Durante a pandemia, o Ministério Público do Trabalho promoveu diversas ações contra as
plataformas com o objetivo de garantir renda mínima aos trabalhadores.
O problema é que o Poder Judiciário,
em especial os tribunais do trabalho, não tem dado respostas adequadas e
esperadas ao conflito coletivo. O desenvolvimento da jurisprudência brasileira
ainda se mostra muito resistente à qualificação jurídica dos serviços prestados
por meio de plataformas digitais. A despeito de que
não há um precedente jurisprudencial forte e consolidado sobre o tema a
orientar os juízes, as decisões judiciais proferidas nos últimos, em sua
maioria relativas ao caso dos motoristas da Uber, que promoveram alguma
repercussão, tendem a dar ênfase aos elementos de autonomia do motorista, a sua
liberdade de escolha de aceitar e cancelar viagens, para afastar o
reconhecimento da relação de emprego.
Debate internacional sobre plataformas
O debate
judicial das plataformas, que tem interesse em diversos países, está centrado
na resposta adequada sobre dois problemas nucleares. O primeiro deles é sobre o
caráter de intermediário das plataformas e, o segundo, a natureza independente
e autônoma do trabalho. Nos EUA, Inglaterra, França e Espanha os tribunais já proferiram importantes decisões contrárias
às plataformas Uber e outras plataformas de
entrega. Nesses quatro países, as decisões conseguiram demonstrar que as
plataformas não têm um mero papel de intermediárias e que os trabalhadores não
são independentes, mas integrantes da organização das plataformas.
Eu acredito que a intensificação do conflito coletivo dos entregadores com as
plataformas provocará uma evolução na jurisprudência brasileira. A meu ver,
chegou a hora de haver uma regulamentação das plataformas digitais na via
legislativa, que seja capaz de enfrentar essas novas realidades, qualificando
os entregadores como trabalhadores
assalariados.
IHU
On-Line – Na UFPR, o senhor trabalha com uma clínica jurídica de direito do
trabalho. Gostaria que detalhasse esse projeto, destacando como atuam e quais os
maiores desafios no que diz respeito a direitos fundamentais do trabalho.
Sidnei
Machado – Na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná temos uma
rica experiência com os projetos da Clínica
de Direito do Trabalho. A Clínica é um projeto de extensão universitária
e de pesquisa acadêmica. A atuação se dá por projetos com temas de direitos
humanos do trabalho, em casos paradigmáticos e de impacto social relevante. A
equipe do projeto é constituída por graduandos e pós-graduandos da faculdade e
voluntários selecionados anualmente, sob a minha coordenação como professor.
Os projetos são desenvolvidos em parceria com
órgãos públicos e associações. A metodologia da Clínica Jurídica e da advocacia de interesse público, que tem
inspiração em modelos de ensino clínico do direito, são as chaves do projeto. O
pressuposto é de intervenção em casos reais paradigmáticos que são gerem uma
demanda de pesquisa jurídica sobre reconfigurações jurídicas e novos direitos e
que permitam uma atuação jurídica em casos judiciais ou legislativos. Com isso,
a Clínica consegue associar e
integrar ensino, pesquisa e extensão.
Clínica dos Entregadores por Plataformas Digitais
Um dos projetos em andamento na Clínica, iniciado de 2019, é a Clínica dos Entregadores por Plataformas
Digitais. Esse projeto surgiu a partir de uma demanda apresentada à
Universidade por um grupo de entregadores da Plataforma Loggi que haviam sido excluídos da plataforma depois de
terem feito uma paralisação em Curitiba
por melhores condições de trabalho. O caso clínico dos
entregadores, como denominamos, gerou um estudo e depois uma denúncia no Ministério Público do Trabalho - MPT,
que instaurou um inquérito civil.
A grande lição do projeto foi o
imenso aprendizado que tivemos com a experiência dos relatos dos trabalhadores
– Sidnei Machado
Para desenvolver o projeto, fizemos um termo de
cooperação técnica com o MPT com
objetivo de fornecer subsídios com estudos jurídicos. Esse projeto teve um
desenvolvimento de muitas atividades de pesquisa com a finalidade de
compreensão do conflito analisado e, ao mesmo tempo, para entender o complexo funcionamento das plataformas. Fizemos
relatórios de dezenas de trabalhadores, realizamos audiência pública, diversos
seminários acadêmicos. Desenvolvemos uma pesquisa empírica, com um questionário
estruturado, cujos resultados têm sido a base das nossas atuações. O projeto
hoje está numa segunda fase, de pesquisa já mais avançada, com a produção de
artigos acadêmicos dos resultados dessas intervenções. A grande lição do
projeto foi o imenso aprendizado que tivemos com a experiência dos relatos dos
trabalhadores.
*Sidnei
Machado é
professor adjunto de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito e do Programa
de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná - UFPR. Também é
colaborador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR. Tendo realizado
pós-doutorado na Université Paris Nanterre, na França, lidera o Grupo de
Pesquisa Clínica de Direito do Trabalho CDT-UFPR. Entre os livros mais recentes
publicados, destacamos Direito do trabalho
e democracia: reflexões a partir da reforma trabalhista no Brasil de 2017
(Porto Alegre: Editora Fi, 2019) e A
exposição ao amianto e sua proteção jurídica (Curitiba: Kairos, 2014).
Publicado na IHU Unissinos: 08 Julho 2020
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/600717-a-greve-dos-entregadores-e-uma-nova-forma-de-organizacao-na-luta-dos-trabalhadores-entrevista-especial-com-sidnei-machado
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