Há uma parte do sinal que é coincidente, mas as crianças são capazes de
distinguir um pai ou uma mãe carinhosos de progenitores perversos. Vi na minha
prática clínica pessoas que, quando adultas, se bloqueavam ao beijar e não
sabiam de onde vinha esse bloqueio. Mas vem de lá ...
por Juan José Millás*
no El País Brasil – Sociedade, Costumes e Emoções
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2020/08/18/eps/1597741296_801541.html
O gesto é
o novo grande tabu do nosso tempo, por causa da pandemia. Explicamos como ele
funciona por dentro.
Quando eu
era jovem, os beijos na boca eram proibidos pela religião, e agora que estou
mais velho foram proibidos pela ciência. Antes, o castigo era o inferno. Agora,
a pneumonia atípica.
Quem
disse que religião e ciência são incompatíveis?
Bill
Bryson, autor de O corpo: Um guia para usuários, conta que a boca é um
lugar perigoso. E acrescenta: “Morremos engasgados mais facilmente que qualquer
outro mamífero. Na verdade, fomos desenhados para engasgar, o que sem dúvida
parece ser um atributo estranho”.
Beijei na boca pela primeira vez aos 15 anos.
Poucos dias depois, a garota me informou que sua menstruação não vinha. Eu lhe
disse que não era possível, pois não nos tínhamos deitado juntos, ao que ela
respondeu que a saliva tinha propriedades “semânticas”. Certamente quis dizer
“seminais”, porque havia pesquisado numa enciclopédia católica para me
transmitir a notícia com rigor, mas a entendi de todos os modos e acreditei com
convicção durante muito tempo na capacidade fecundativa de qualquer fluido
corporal, sem importar de onde procedesse. A garota e eu pagamos em quantidades
extraordinárias de angústia e pânico por aquele encontro exaustivo de nossas
línguas na escuridão de um cinema de sessão contínua.
Um dia,
já maiores, nos encontramos no ônibus e calhou que estava grávida. Durante uns
segundos de terror pensei que fosse daquele beijo remoto. Nunca mais nos
voltamos a ver, mas às vezes penso nessa criança que não conheço, e que terá
agora 30 ou 40 anos, como se fosse minha.
A
imaginação é um lugar perigoso.
Diz
também Bryson que temos lá dentro, na boca, estrategicamente distribuídas, 12
glândulas salivares com as quais excretamos em torno de um litro e meio de
saliva por dia, por isso engolimos tanta coisa (não só em sentido metafórico):
30.000 litros, literais, ao longo de uma vida média. A saliva, acrescenta, “é
composta fundamentalmente de água e de pequenas quantidades de enzimas que começam
a decompor os açúcares quando ainda se encontram na boca, já que aí se inicia a
digestão dos alimentos”. E a digestão do amante ou da amante, acrescento eu.
Da
língua, por sua vez, observa Bryson que é um músculo singular e exageradamente
sensível, graças às 10.000 papilas gustativas localizadas em suas
protuberâncias (me dá água na boca só de escrever “papilas gustativas”).
Há beijos
de cinema e beijos de romance ou de telenovela, e beijos de canções em geral e
de boleros em particular, e beijos de Judas. Há beijos castos e beijos
voluptuosos, e beijos satânicos e beijos pedófilos, e beijos maternais ou
paternais e fraternos. E aí estão também o beijo do capítulo sete de O jogo
da amarelinha e O beijo da mulher-aranha, e o beijo grego, conhecido
também como anilingus, e o beijo da morte, sei lá eu, que além disso vem
do francês. Há tantos beijos pertencentes ao âmbito pessoal e ao histórico que
seria insensato tentar resumir ou descrever um a um. Viemos de uma cadeia de
beijos: os que se deram por ordem cronológica nossos antepassados desde o
começo dos tempos, como quem passa um bastão, e os que nós demos em nossos
descendentes, e os que eles já andam distribuindo pelo mundo.
Quanto
aos lugares beijáveis, segundo a velha enciclopédia Espasa, destacam-se
a testa, as bochechas, os lábios, as mãos, os pés, os vestidos, os cabelos, as
relíquias, os retratos e as estátuas dos deuses, além da pedra da Caaba, em
Meca. Como vemos, a enciclopédia Espasa, apesar dos seus mais de 100
tomos, ficava devendo ao menos no assunto que nos ocupa: esquecia-se da bunda,
por exemplo.
Encontro-me
com o paleoantropólogo Juan Luis Arsuaga no terraço de um bar, onde, após
soltarmos as máscaras e pedirmos umas cervejas, lhe pergunto se o beijo tem
alguma explicação a partir da antropologia.
— E da
anatomia — me responde. — Porque somos uma espécie de mamífero com lábios
grossos, pelo avesso, desenhados precisamente para o beijo.
— Somos
os únicos?
— Nós e
as vacas da Disney, às quais os desenhistas põem beiços para humanizá-las.
— Sei.
— A
história natural do lábio é apaixonante. Nós temos o lábio superior contínuo,
enquanto os cães e os gatos, por exemplo, têm dois lábios superiores divididos
por um septo. Podemos passar a língua de um lado ao outro da própria gengiva ou
da gengiva do amante — acrescenta, enquanto faz em si mesmo o gesto que descreve.
— O
chimpanzé e o gorila não têm septo?
— Não,
mas tampouco têm os lábios pelo avesso e o nariz projetado.
— Mas o
nariz projetado é um estorvo para o beijo.
— Não
acredite nisso. O beijo tem um componente olfativo muito importante.
— Os
chimpanzés não se dão beijinhos?
— Um
pouco. Mas o beijo na boca e com língua é exclusivamente humano e certamente é
o resultado de uma ritualização.
— O que
significa isso?
— Que
começa como um ato em que se transfere a comida já mastigada à criança depois
do desmame, e depois se transforma em um gesto de amantes. E como se trata de
um gesto transcendental, a anatomia se adapta ao gesto.
— Daí os
lábios grossos e pelo avesso?
— Exato.
O processo é o seguinte: a mãe passa a comida, já meio digerida, da sua boca
para a da criança. Digamos que se trata de uma papinha natural. Mais tarde, a
namorada e o namorado brincam de passar coisas um para o outro. Depois nem
sequer passam nada, mas fazem o gesto de se passarem. Esse comportamento
ritualizado afeta o órgão: o lábio engrossa.
— E
desaparece o septo do lábio superior.
— Não, o
septo já tinha desaparecido. O lábio engrossa porque desapareceu o beijo ligado
da alimentação e começa a se manifestar como base do cortejo amoroso.
— Vem-me
à memória uma canção que dizia: “Me dê a fumaça da sua boca, que assim eu fico
louca”.
—Fumando
espero, de Sara Montiel — confirma Arsuaga. — Os amantes brincam de passar
a fumaça do cigarro de uma boca para a outra.
—Outros
brincam de passar uma bala ou um cubinho de gelo.
— Ou um
chiclete. É isso aí.
—O
estranho é que esse lugar tão beijado, a boca, seja um dos extremos do tubo
digestivo.
— E
relacionado, portanto, com a alimentação.
— É mais
curiosa então a prática do beijo grego, que deve ser como fechar o círculo,
como fazer uma viagem ao redor da digestão.
— Claro,
o natural é chupar tudo. Além do mais, o traseiro está cheio de terminações
nervosas.
— E
quando dizemos a um bebê que queremos engoli-lo de tanto beijo, há aí uma
reminiscência canibal?
— Há
muito de alimentação, sim, tudo é alimentação.
Arsuaga
tira da sua mochila um livro intitulado Amor y odio, de Irenäus
Eibl-Eibesfeldt, onde aparecem ilustrações de um pigmeu adulto, sentado sobre
um elefante recém-caçado, que distribui com a boca tiras de gordura entre as
bocas abertas (e famintas) de seus companheiros.
—Vou te
emprestar este livro — diz — que é muito interessante. Não deixe de ler o
capítulo intitulado Ritos vinculadores.
— Ritos
vinculadores?
— Se você
for à praia neste verão, note como os namorados se espanam.
— Os
namorados não se espanam, tocam-se os cabelos.
— Sim,
mas o gesto é o de espanar. Esse é um exemplo clássico de gesto que perdeu sua
antiga função para se ritualizar. Nos ritos do amor há muito do comportamento
materno-infantil. No comportamento humano, como na evolução dos órgãos, há
muito de bricolagem. Com frequência, um comportamento que tinha uma função é
aproveitado para outra.
— Dê um
exemplo de bricolagem orgânica.
— O
martelo e a bigorna originalmente, nos répteis, eram parte da articulação da
mandíbula, e hoje nós os usamos para ouvir. Na evolução, se aproveita o que há.
— Certo.
Voltemos aos lábios.
— Segundo
Desmond Morris, autor de O macaco nu, nossos antepassados copulavam por
trás pela simples razão de que a vulva, nos mamíferos quadrúpedes,
encontrava-se na parte posterior. Quando passamos à cópula frontal por causa da
postura bípede, a orientação da pélvis mudou, e a vulva se orientou
ventral-frontalmente. Não totalmente dorsal nem totalmente ventral, mas se
deslocou, e o sexo se tornou cara a cara. Então muda tudo, porque você tem uma
relação mais pessoal, vê a expressão do outro e seus lábios ficam ao alcance
dos seus. De certo modo, os lábios da vulva passam a ser os lábios do rosto. Os
lábios da mulher e do homem, os lábios pelo avesso e redondos, são uma réplica
dos lábios da vulva, do sorriso vertical, como se costuma dizer. Os do rosto
são uma vulva horizontal, por isso se incham. Pense: em que zona do rosto os
cirurgiões plásticos mais se divertem?
—
Compreendo.
Conto a
Diego Figuera, que é psiquiatra e psicanalista, que eu beijava muito os meus
filhos quando os tirava do banho.
— Mas
certamente — acrescento — não se lembram, do mesmo modo que eu não recordo os
beijos da minha mãe.
— Antes
dos quatro anos — responde — nossa memória consciente não recorda nada, ou
muito pouco, mas nosso corpo, sim. O tato, para o bem ou para o mal, é
fundamental na primeira etapa do ser humano, e o beijo é uma parte do tato,
quase uma continuação da carícia. A pele nos transmite uma informação muito
complexa a respeito de como nos amaram. Isto já foi muito estudado pela teoria
do apego.
— O beijo
do carinho e do sexo são diferentes?
— Há uma
parte do sinal que é coincidente, mas as crianças são capazes de distinguir um
pai ou uma mãe carinhosos de progenitores perversos. Vi na minha prática
clínica pessoas que, quando adultas, se bloqueavam ao beijar e não sabiam de
onde vinha esse bloqueio. Mas vem de lá.
— Como
distinguir o beijo de Judas de um beijo de amor?
— Quem é
beijado os distingue em algum nível da sua consciência.
— Antes
você se referia ao “apego”. O que é?
— É a necessidade
inata dos seres humanos de nos vincularmos a figuras de referência afetiva e de
cuidados para seguirmos adiante desde o começo da vida. Nascemos com a
necessidade vital de nos apegarmos às pessoas encarregadas de nos proteger e de
nos ensinar como regular nossas emoções.
— De onde
sai esta teoria?
— Foi
formulada por John Bowlby a partir dos anos sessenta, e agora é uma evidência
científica. Sei bastante a respeito, atualmente sou o presidente da seção
espanhola da Internacional do Apego e escrevemos sobre o assunto. Estamos
desenhados para nos apegar a alguém, assim como um filhote de pato por sua mãe.
Precisamos que alguém nos alimente, mas que nos proteja emocionalmente também.
Nosso sistema de proteção emocional é ensinado: ensinam-nos a beijar as mães,
os pais, os tios…
Diego
Figuera e eu nos encontramos também no terraço de um bar, nos comunicando
através das máscaras até que nos trazem nossos pedidos. Quando deixa seu rosto
descoberto, observo a grossura de seus lábios. Desde a minha conversa com
Arsuaga, interessam-me todas as bocas, justamente agora que costumam andar
tampadas.
— Então —
observo — poderíamos dizer que o beijo tem duas vertentes, uma de caráter
físico, e outra de caráter psicológico, que talvez se misturem. O que acontece,
de um ponto de vista e do outro, quando duas pessoas se beijam?
—Não é
fácil estabelecer uma fronteira entre o físico e o psicológico, porque temos
uma maneira mais holística de entender, à luz da teoria da complexidade. Você
dá um beijo e ocorre uma tempestade de oxitocinas e endorfinas que têm seu
correlato emocional. Quando você beija ou é beijado, o corpo percebe e reage
com grande tensão em décimos de segundo, tanto frente ao beijo do inimigo como
do amigo. O beijo tem tanto significado em nossa cultura que é aquilo sobre o
que mais informação prévia desejamos ter. Por isso é tão diferente o beijo de
uma mãe, o de Judas, o amoroso, o do ficante de uma noite, o que busca uma
reconciliação…
— Há
beijos que fazem mal?
— Claro,
os que são dados sob uma aparência de amor e são na verdade de corrupção. O
beijo do padre pedófilo no seminário, por exemplo, se ressignifica quando você
tem 15 ou 16 anos. Então você compreende que seu conteúdo era muito diferente
da sua aparência.
— O beijo
evoca em alguma medida a etapa da amamentação?
— A
sucção do peito em uma relação de criação agradável favorece a erotização e o
aumento de conexões nos lábios. De fato, uma prática erótica comum, tanto se
você for heterossexual como homossexual, consiste em chupar os mamilos do amante
ou da amante.
— Além
disso, ao beijar na boca, como ao mamar, você recebe os fluidos do outro.
— Sim, e
é importante que gostemos do cheiro e do sabor dessa saliva.
— É
curioso também que o beijo se pratique com um dos extremos do aparelho
digestivo.
— Claro,
porque existe uma relação entre beijar e comer.
— O
cinema, a literatura e as canções estão cheios de beijos.
— Mas as
marcas que esses beijos deixam são mais culturais. As verdadeiramente duras são
as que vêm da experiência direta. Por isso, beijar os filhos é, além de um ato
de amor, um ato de responsabilidade. Sou contra campanhas como uma recente da
Ralph Lauren, em que um homem dá um beijo na boca do seu filho de uns três
anos.
— É muito
ambíguo, não?
—
Normalmente você não beija uma criança na boca.
— Há
famílias em que essa prática acontece até determinada idade.
— E
depois podem vir os problemas. Quando essas crianças chegam à adolescência,
ressignificam o beijo na boca. Muitas vezes acontece por um afã de modernidade,
de esnobismo, sem levar em conta as consequências que podem ter mais adiante.
— E
agora, com a pandemia da covid-19, como engolimos que o mesmo beijo que nos
dava a vida seja o que nos faça adoecer?
— Com
dificuldade. Nisso nós, os médicos, somos mais rigorosos, porque vimos o horror
nos hospitais. Outro dia comemorei meu aniversário com os amigos e quando
entravam em casa o primeiro impulso era de nos beijarmos. Reprimíamo-nos,
claro, mas depois do primeiro vinho as pessoas relaxam, porque temos essa
necessidade inata de beijar.
— É mais
forte a necessidade que a proibição?
— Mais
forte, sim. Só conseguiremos não nos beijar na base do medo ou da
responsabilidade.
— Se a
proibição se prolongar, o beijo chegaria a ser mitificado?
— Poderá
adquirir um significado novo. Quem neste tempo se atrever a beijar viverá isso
como algo de muito amor pelo outro. Eu te beijo e assumo que você pode me
contagiar.
— Eu te
beijo e assumo que você pode me matar.
— É um
modo mais trágico de dizê-lo. Com a pandemia, o beijo vai adquirir uma conotação
muito potente de lealdade, de amor, de adesão, algo também como o beijo dos
mafiosos.
— O que
acontece agora quando um médico se vê obrigado a fazer uma respiração boca a
boca? O que pode mais, a responsabilidade ou o medo?
— Pois mais de um pensaria duas vezes,
porque o medo é livre, e os médicos têm passado muito medo durante os piores
dias da pandemia. Nós nos sentimos vulneráveis, pensamos que podíamos nos
contagiar entre nós. Houve uma guerra terrível sobre quem se atrevia a se meter
com esse assunto sem uma boa proteção, sabendo o risco que corríamos. Houve
gente com coragem que beijava os doentes ou pegavam na mão deles para
acompanhá-los nos momentos mais difíceis. Os médicos, neste sentido, temos sido
mais preconceituosos que o pessoal de enfermaria.
— Como se
explica?
profissionalismo
passa também pelo contato afetivo. Nós somos mais técnicos. Se agirmos certo
tecnicamente, já fizemos a nossa parte.
— Os
enfermeiros e as enfermeiras beijam. É um bom título.
— Beijam
e tocam…
Depois de
nos despedirmos sem nos tocar, pego o metrô de volta para casa e, enquanto me
observo no reflexo escuro da janela do vagão, penso que também o olhar adquiriu
um novo significado com o complemento da máscara: entre os viajantes, nos
olhamos como se, a ponto de nos afogarmos, a água já chegasse à beirada dos
olhos.
Publicação El País: 25.ago.2020
*Juan José Millás (Valência, Espanha, a 31 de janeiro de 1946) é um escritor e
jornalista espanhol
Artigo interessante, que desvenda tabus e esclarece significados e elucida questões simbólicas.
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