São cinco
as condições principais para que o Brasil, o mais tardar em 2022, possa pôr
democraticamente um fim ao pesadelo infernal do bolsonarismo, segundo hipótese
de Boaventura Santos
por Boaventura Souza Santos no Público – Sociedade e Luta Popular por Resgate da Democracia
Foto promulgação lei áurea _
imagem na internet
O Brasil está numa encruzilhada existencial de uma
dimensão difícil de imaginar. É o país do mundo com um dos maiores desastres humanitários causados pela pandemia.
O Brasil tem cerca de 2,8% da população mundial, mas tem 13,9% das mortes por
covid-19. É o país que viveu dois graves atentados à democracia e ao primado do
direito num curto espaço de tempo: o golpe jurídico-político contra a Presidente Dilma Rousseff, em 2016, e a grotesca
manipulação judicial-política que levou à condenação sem provas do ex-Presidente Lula da Silva, em 2018, até hoje o mais
popular Presidente da história do Brasil.
É o país governado por um Presidente, Jair
Bolsonaro, que ganhou as eleições depois de o seu rival ter sido ilegalmente
neutralizado e, mesmo assim, com a ajuda de uma avassaladora avalanche de notícias falsas. É o país
governado por um Presidente não só manifestamente incompetente para exercer o
cargo, como também pró-fascista (defensor da ditadura militar, que governou o
país entre 1964 e 1985, e da tortura de opositores democráticos, e que chega a
pôr sob vigilância defensores dos direitos humanos, por alegadas actividades… anti-fascistas);
é ainda cúmplice activo do genocídio em curso no Brasil contra a população
indígena e contra a população em geral. É o único governante do mundo que
continua a negar a gravidade da situação pandémica e recusa declarar luto nacional
pela morte de tantos milhares de brasileiros. Um governante que faz propaganda
de um produto sem comprovação científica da sua eficácia, a cloroquina, produzida por um empresário bolsonarista, a quem
o governo adquiriu um stock suficiente para abastecer o país durante 18
anos a um preço seis vezes superior ao preço por que comprou o mesmo
medicamento no ano passado.
É o país onde os grandes meios de comunicação
mostraram ao longo dos anos um total desprezo pelas regras de convivência
democrática. É o país onde os EUA puderam infiltrar o sistema judicial com mais
facilidade e eficácia para fazer alinhar a política externa do país com os
interesses norte-americanos no continente e para destruir o tecido económico do
país nalgumas áreas concorrentes com as empresas norte-americanas (construção
civil, aeronáutica e combustíveis fósseis). É, finalmente, o país onde, apesar
de tudo isto, e no aparente funcionamento normal das instituições democráticas,
a popularidade do Presidente, que desceu bastante nos primeiros meses da
pandemia, volta a crescer e o posiciona para um segundo mandato a partir de
2022.
Perante isto, a única saída possível para o Brasil
é, o mais tardar em 2022, poder pôr fim democraticamente ao pesadelo infernal
do bolsonarismo. Apesar de muito dano irreversível ter sido, entretanto, feito,
a saída consistirá em os brasileiros e as brasileiras sentirem política e
psiquicamente que acordaram de um pesadelo, que estão vivos apesar de tantos
entes queridos perdidos e que um novo dia nasce e um novo começo volta a ser
possível. Quais são as condições para isso?
Primeiro, o Presidente e o seu clã devem ser
investigados seriamente e, por tudo o que se conhece, se o forem, concluir-se-á
que há indícios suficientes para serem acusados, julgados e presos. Aliás, no
plano internacional, já foram apresentadas várias queixas-crime no Tribunal Penal Internacional da Haia
contra a pessoa do Presidente Bolsonaro pelo modo como conduziu o país durante
a crise pandémica, queixas por crime contra a humanidade e, no caso dos povos
indígenas, por genocídio, o mais grave deste tipo de crimes.
Segundo, os artífices da grave degradação da
democracia nos últimos anos, os juízes e procuradores do Ministério Público que
conduziram as “investigações” a partir de Curitiba, cometeram tantos e tais
atropelos que devem ser não só irradiados da função judicial que desonraram,
como devem ser julgados, com respeito por todas as garantias processuais, as
mesmas que eles negaram às vítimas da sua macabra manipulação. Particularmente Sérgio Moro, o candidato dos EUA para as
eleições presidenciais de 2022, deve ser definitivamente afastado da vida
política. Como foi possível que um medíocre juiz federal de primeira instância
assumisse jurisdição nacional e se arrogasse o poder de violar as mais
elementares hierarquias do sistema judicial? Que ninguém tenha pena dele, pois
os EUA encontrarão meio de o compensar pelos serviços prestados, nomeadamente
com um cargo internacional.
Terceiro, o ex-Presidente Lula da Silva deve quanto
antes recuperar em pleno os seus direitos políticos em face da diabólica
armadilha judicial-política de que foi vítima e cujos mais grotescos traços
começam a ser conhecidos.
Quarto, as forças políticas de esquerda têm de se
convencer de que estão perante uma situação política excepcional a exigir
comportamentos excepcionais e que discutir neste momento se o PSB (partido
socialista brasileiro) ou o PDT (partido democrático trabalhista) são ou não de
esquerda ou furtar-se a articulações com um amplo leque de forças democráticas
com vista às próximas lutas eleitorais são actos de suicídio político que o
país se encarregará de lhes lembrar nos próximos anos.
O
país do Fórum Social Mundial é hoje um embaraço para todos os democratas e
activistas do mundo que viram no Brasil, no início da década de 2000, o país
líder de uma nova época de mobilizações sociais incisivas e pacíficas guiadas
pela ideia inaugural de que “um outro mundo é possível”
Quinto, os movimentos sociais e organizações da
sociedade civil têm de acordar da sonolência inquietante que lhes foi incutida
pela vida relativamente fácil que tiveram durante os governos de Lula da Silva.
O país do Fórum Social Mundial é hoje um embaraço para todos os democratas e
activistas do mundo que viram no Brasil, no início da década de 2000, o país
líder de uma nova época de mobilizações sociais incisivas e pacíficas guiadas
pela ideia inaugural de que “um outro mundo é possível”.
Estas são as principais condições. As três
primeiras estão nas mãos do poder judicial do Brasil. Há indícios de que os
tribunais superiores se deram conta de que o futuro da democracia depende em
boa medida deles. Cometeram muitos erros no passado recente, foram lassos, se
não mesmo cúmplices, ante flagrantes violações do garantismo processual que é a
razão de ser do sistema judicial numa democracia. Mas há sinais de que serão a
primeira instituição a acordar do pesadelo bolsonarista, e não há neste momento
razões para duvidar de que estarão à altura do encargo histórico que lhes
cabe.
Certamente já se deram conta de que serão as
próximas vítimas, se a ilegalidade continuar à solta e impune. Não devem
deixar-se intimidar por grupelhos extremistas nem pelo gabinete do ódio. Têm alguns bons exemplos no continente
de que os tribunais sabem por vezes assumir a responsabilidade que lhes cabe
num dado momento histórico. Afinal, quem poderia imaginar que o mais poderoso
político da Colômbia, Álvaro Uribe, senador, ex-Presidente do país, responsável
impune por muitos crimes e pela destruição dos acordos de paz com a guerrilha, fosse posto em detenção domiciliária para não obstruir a
justiça que o vai julgar por uma decisão unânime do tribunal supremo?
Boaventura Sousa Santos- director Emérito do Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra
Publicação: 15
de Agosto de 2020
Fonte: https://www.publico.pt/2020/08/15/opiniao/opiniao/saida-brasil-1927866
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O comentário será analisado para eventual publicação no blog