Por exemplo, sem fiscalização da Agência Nacional de Mineração, ‘garimpos fantasmas’ legalizam ouro de terras indígenas e áreas protegidas
Lavras
regularizadas, mas inativas, são usadas para acobertar origem ilegal do
minério; entre 2019 e 2020, 6,3 toneladas de ouro produzidas no Brasil vieram
de garimpos que só existem no papel
por Guilherme Henrique no Repórter Brasil
– Sociedade e Governo Federal Não Atua, ao Desmontar Serviços Públicos
Pelo menos 220 lavras de garimpo que registraram produção de ouro em 2019 e 2020 simplesmente não existem. Ou melhor, existem apenas formalmente: estão autorizadas a funcionar e comercializam o minério, mas quem tentar visitá-las só encontrará mata fechada e nenhum sinal de intervenção humana. São os chamados “garimpos fantasmas”, utilizados para acobertar a origem do metal extraído clandestinamente e que se espalham pelo país beneficiados pela falta de fiscalização da Agência Nacional de Mineração (ANM).
Quando um garimpeiro invade uma terra indígena ou
unidade de conservação ambiental, ele só consegue colocar o ouro tirado dali no
mercado se camuflar sua origem. É nesse esquema que entram os “garimpos
fantasmas”, registrando como produção própria o minério dos garimpos ilegais.
“Essa tem sido a forma mais utilizada para
esquentar [legalizar] o ouro extraído de uma área ilegal. Algumas pessoas
também costumam chamar de ‘garimpo laranja’. Esse é um problema que a agência
precisa enfrentar”, reconhece Valdir Farias, ex-chefe da Divisão de
Procedimentos Arrecadatórios da Superintendência da ANM em São Paulo e que hoje
atua como diretor-executivo Fioito Consultoria.
O termo “garimpo fantasma” foi cunhado por
pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, que identificaram a
prática em um estudo feito em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e
divulgado em agosto deste ano. Ao cruzar a origem declarada do ouro com a
geolocalização das lavras de garimpo, os especialistas descobriram, por meio de
imagens de satélite, que muitas delas estavam em uma área de mata nativa, sem
intervenção humana. Outras tinham áreas de exploração superando os limites
legais.
Para Raoni Rajão, professor da UFMG e um dos autores do estudo, é dever
da ANM fiscalizar os garimpos, o que poderia ser feito com um acompanhamento
mais minucioso do Relatório Anual de Lavra, documento que indica a produção de
minérios. “Para isso, é preciso tecnologia. Quando o garimpeiro indicar uma
lavra na venda do ouro, ela deveria ser checada no mesmo momento pela ANM”.
‘Esse [garimpo fantasma] é um problema que a agência
precisa enfrentar’, diz Valdir Farias, ex-superintendente da ANM
Um maior rigor da fiscalização, porém, esbarra na
falta de recursos financeiros e humanos, justifica a agência. “São 35 mil
procedimentos minerários, entre elas as permissões de lavra garimpeira. E nós
temos cerca de 170 fiscais. É muito pouco para fazer uma fiscalização
eficiente”, afirmou à Repórter Brasil Roger
Cabral, atual superintendente de produção mineral da ANM.
Cabral afirma que a agência tem buscado
informatizar os processos para minimizar o problema, tornando a fiscalização
mais inteligente e menos manual. “Temos que saber onde ir, com o auxílio de
imagens de satélite. O Brasil é enorme. Mas, para fazer isso, precisamos de
gente capacitada e recursos”, declarou, reconhecendo que a mudança é lenta.
“Não estamos na era 4.0, mas na 2.0.”
Negócio bilionário em Garimpos Fantasmas de Ouro
De acordo com os pesquisadores da UFMG, 6,3
toneladas de ouro produzidas no Brasil entre 2019 e 2020 tinham como origem
lavras que não mostraram atividade garimpeira, segundo registros de satélite. O
valor representa 13% do total de 49 toneladas do minério que o estudo ligou a
algum tipo de irregularidade.
Apesar de ser somente 4% do total de ouro extraído
nacionalmente, a produção dos garimpos fantasmas movimentou aproximadamente R$
1,2 bilhão nesses dois anos.
A partir do estudo da UFMG, o MPF protocolou ações
civis públicas contra as empresas FD’Gold, Ourominas e Carol. As três são
DTVM’s (Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários), companhias
autorizadas pelo Banco Central para adquirir ouro de garimpo. De acordo com o
levantamento, essas empresas comercializaram ouro registrado por 220 “garimpos
fantasmas”, mas que tudo indica ter sido extraído ilegalmente de terras
indígenas e áreas protegidas nos municípios de Itaituba, Jacareacanga e Novo
Progresso, todos do Pará.
As empresas FD’Gold e Carol DTVM não responderam
aos questionamentos enviados pela reportagem. A Ourominas afirmou que possui
“rigoroso controle interno, que permite a identificação e qualificação de seus
parceiros”. Disse ainda que a fiscalização é responsabilidade do poder público
e não “deve ser atribuída à empresa privada”.
Leia a íntegra da nota aqui :
https://reporterbrasil.org.br/2021/11/integra-das-respostas-da-ourominas/
‘Temos cerca de 170
fiscais. É muito pouco para fazer uma fiscalização eficiente’, afirma Roger
Cabral, superintendente da ANM
Em julho, a Repórter Brasil e
Amazônia Real mostraram no especial Ouro do Sangue Yanomami como
o metal extraído ilegalmente da maior Terra Índigena do país, em Roraima, é legalizado no Pará e
posteriormente vendido para grandes empresas – até chegar em
joalherias como a HStern por exemplo.
Pelo Código Penal, vender ouro cuja origem é
fraudada, como aquele registrado por lavras que não possuem vestígios de
exploração mineral, pode ser considerado crime de lavagem de dinheiro ou falsidade
ideológica.
Pequenos garimpos,
surpreenderam como grandes negócios (?)
O pano de fundo para o problema é o regime de
Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), autorização concedida pela ANM para
pequenas explorações de ouro. Beneficiadas por um trâmite simplificado e mais
difíceis de fiscalizar, essas concessões mascaram a mineração ilegal no país
sem que a agência reguladora consiga coibir a atividade. Os “garimpos fantasma”
são registrados nessa categoria.
Existem duas formas de se requerer uma PLG: como
pessoa física ou cooperativa, que devem apresentar apenas um descritivo técnico
de como pretende explorar a área e a licença ambiental emitida pelo órgão
estadual onde a lavra está situada.
O limite de tamanho de uma lavra garimpeira é de 50
hectares para pessoas físicas e de 1.000 para as cooperativas. No entanto, a
ANM não restringe o número de garimpos que cada indivíduo ou cooperativa pode
explorar. No banco de dados da agência, é possível encontrar pessoas e empresas
com mais de 30 lavras ativas.
Para José Jaime Sznelwar,
ex-superintendente de produção mineral da ANM, esse é um dos principais
problemas do regime de PLGs. “É um conceito que está sendo desvirtuado. Uma
pessoa física com 10 permissões deixou de ser garimpeiro, já é um minerador”,
afirmou à Repórter Brasil, complementando que
esses produtores deveriam ser submetidos a processos mais rígidos de controle e
concessão.
‘As
PLGs foram pensadas para serem artesanais, mas os garimpos estão concentrados
nas mãos de poucas pessoas’, diz Raoni Rajão, pesquisador da UFMG
“Há casos absurdos. As PLGs foram pensadas para
serem uma atuação artesanal, pequena. Mas o que nós estamos vendo há alguns
anos é que os garimpos estão concentrados nas mãos de poucas pessoas, algo que
não é benéfico ao setor”, analisa Rajão, da UFMG.
Esse sistema acaba beneficiando os criminosos, que
podem acumular mais PLGs para maximizar os seus lucros e ainda aproveitar a
fiscalização menor sobre esse tipo de concessão. O reflexo disso na prática
pode ser mensurado: o estudo da UFMG mostra que as lavras de apenas seis
indivíduos e cooperativas respondem por 61% do ouro produzido em garimpos com
suspeita de ilegalidade.
Há ainda outra distorção. A lei que criou o
conceito das permissões de lavras garimpeiras é de 1989, e hoje os garimpos já
não são operados de forma artesanal, mas com grandes retroescavadeiras,
que chegam a custar R$ 1 milhão. Muitos deles são de difícil
acesso, sendo necessário o uso de jatos
particulares, cujos pilotos chegam a faturar R$ 200 mil por semana.
Ou seja, o conceito de exploração “artesanal” de garimpos por pessoas físicas é
algo do passado.
Em setembro, a ANM autorizou as gerências regionais
nos estados a fiscalizar lavras, com o intuito de combater as ilegalidades.
“Serão nossos olhos e braços para melhorarmos a fiscalização. Não é suficiente,
mas ajuda”, afirmou Roger Cabral, superintendente da agência.
O cenário de descontrole está na mira do MPF. Em
julho, os procuradores dede Itaituba, no Pará, pediram a suspensão de outorga de
novas PLGs na região, onde o avanço do garimpo preocupa as autoridades.
“É preciso um freio de arrumação”, sintetiza Rajão, que defende o cancelamento
de lavras com atuação irregular.
A ANM também está na mira do Tribunal de Contas da
União, que desde 2019 tem apontado deficiências na agência,
como falta de estrutura,
ausência de fiscalização das informações prestadas pelos garimpeiros e atuação
frágil no combate à ilegalidade do setor.
Após pedido do MPF,
o tribunal afirmou, em setembro deste ano, que “realizará fiscalização nos
órgãos pertinentes, a fim de levantar fragilidades e oportunidades de
aprimoramento dos mecanismos de combate à comercialização e à exportação de
ouro de origem ilegal”. A Repórter Brasil tentou
contato com o ministro Marcos Bemquerer, relator do processo, mas ele não quis
conceder entrevista.
Aparelhamento
da Agência Nacional de Mineração
Atualmente, existem 2.765 permissões de lavra
ativas no país, segundo a ANM. E, apesar das preocupações que esse regime de
concessão tem despertado nos órgãos fiscalizadores, funcionários e
ex-funcionários da agência relatam pressão externa para que esse número cresça
ainda mais. O lobby vem de políticos e empresários, especialmente do Pará, que
querem facilitar as concessões de PLGs, contornando os mecanismos de controle,
segundo fontes ouvidas pela reportagem.
“São senadores e deputados que estão em constante
diálogo com membros da diretoria da ANM”, afirma Jaime Sznelwar.
O executivo suspeita que sua demissão da agência, após pouco mais de um ano no
cargo, tenha ocorrido por sua tentativa de frear a outorga de novos garimpos.
Sua exoneração, em
agosto deste ano, foi determinada por Guilherme Santana Lopes Gomes, um dos
integrantes da diretoria colegiada do órgão, indicado ao posto pelo presidente
Jair Bolsonaro por influência de lobistas do setor.Para
a vaga de Jaime Sznelwar, o contratado foi Roger Cabral, um defensor do garimpo
em terras indígenas que diz se basear em informações técnicas. “A mineração
pode conviver [com terra a indígena]. Mas tem muita ideologia, a mídia, as ONGs
que estão interessadas mais na Amazônia do que na proteção dela. Tudo isso está
no jogo”, afirmou à Repórter Brasil.
‘Empresário
chega com político querendo liberar sua PLG. Isso acontece mesmo, mas não vejo
problema’, diz Roger Cabral, da ANM
O novo superintendente confirma que a ANM é alvo de
lobby, mas considera que a pressão “faz parte”.”Às vezes vem o empresário que
entrou com o requerimento. Está ansioso, e a papelada não sai”, diz. Cabral
também confirma a tentativa de intervenção de políticos no processo.
“Empresário chega com político aqui querendo liberar sua PLG. Isso acontece
mesmo, mas não vejo problema. Respeitamos o rito e a documentação, mas a
pressão existe”.
A Repórter Brasil entrou
em contato com a Agência Nacional de Mineração (ANM) para ouvir Lopes Gomes,
mas a agência afirmou que os assuntos “se tratam de pautas esgotadas” e que ele
não vai se manifestar.
Antes tabu, a defesa da exploração de ouro em
terras indígenas, preconizada por Jair Bolsonaro, ganha cada vez mais espaço
dentro da ANM. Segundo fontes ouvidas sob a condição de anonimato, a influência
da Presidência da República está condicionando as decisões da agência – o
diretor-geral Victor Hugo Bicca, que não quis atender a reportagem, não estaria
escutando os demais membros da diretoria colegiada.
Publicado no Reporter Brasil: 30/11/2021
Fonte: https://reporterbrasil.org.br/2021/11/sem-fiscalizacao-da-anm-garimpos-fantasmas-legalizam-ouro-de-terras-indigenas-e-areas-protegidas/
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O comentário será analisado para eventual publicação no blog