Trio se apropria de terras públicas na Amazônia e transforma em pasto
área avaliada em R$ 100 milhões
por Fernanda Wenzel* no The
Intercept – Sociedade e Amazônia
Depredada
Jeferson Rodrigues
e irmãos Delmir e Augustinho Alba lideraram o maior desmatamento contínuo já
registrado na Amazônia. Fotos: Bruno Kelly para o Intercept Brasil
Em colaboração com
O pavilhão de 480 metros quadrados construído
para sediar a feira da agricultura familiar de Castelo dos Sonhos está às
moscas há quase 15 anos. Inaugurada em 2008, a feira só funcionou por sete
meses por falta de açaí, mel, frutas e verduras. O barracão segue desativado,
em contraste com o ritmo frenético de trabalho das madeireiras, o vai e vem dos
caminhões que levam o gado e a soja pela BR-163 e o zum-zum-zum constante das
motosserras operadas por trabalhadores desconfiados, que surgem do meio da mata
quando transitamos pelas estradas de chão às margens da rodovia federal.
“Falta
produto, porque ninguém mais quer plantar. Tem alguns ex-agricultores e
extrativistas batendo prancha em serraria, outros estão no garimpo ou trabalhando
nas derrubadas”, conta ao Intercept um
morador que prefere não se identificar. Afinal, qualquer um que se opõe aos
grandes fazendeiros corre perigo por aqui, onde o dito popular ensina pela
ameaça: “se você não quer vender a terra, tudo bem. A viúva vende mais barato”.
Foi neste
pedaço de chão no sudoeste do Pará, esparramado ao longo da BR-163, entre os
distritos de Castelo dos Sonhos e Vila Isol, onde aconteceu o maior
desmatamento contínuo já registrado na Amazônia. O ranking é da
plataforma MapBiomas Alerta, que, desde 2019, reúne e
valida os alertas de destruição da floresta. O programa concentra diversos
sistemas de monitoramento, como o Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais, e o Sistema de Alerta de Desmatamento, do Imazon.
O
desmatamento identificado pelos satélites tem 6.469 hectares — o
equivalente a 6,5 mil campos de futebol — e a destruição aconteceu em cerca de
quatro meses de 2020 (de fevereiro a maio), ao custo de pelo menos R$ 13
milhões. As terras, hoje nas mãos dos grileiros, estão em uma área pertencente
à União. O que antes era público, de todos os brasileiros, agora engorda o
patrimônio de um trio que pode lucrar mais de R$ 100 milhões com a venda da
área.
Apesar
desse território pertencer a Altamira, a área urbana mais próxima é a de Novo
Progresso, a quarta mais bolsonarista de todo o Brasil no
primeiro turno da eleição presidencial. Com o município, os distritos de
Castelo dos Sonhos e Vila Isol (conhecido como km 1.000) partilham uma mesma
elite econômica especializada no garimpo, na conversão da floresta em madeira,
boi e, mais recentemente, na monocultura da soja.
“A soja
chegou como um câncer, um vício. Não tem mais como sair dela”, contou Marcelo
Reis, chefe do escritório local da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
do Pará.
Localização
de Castelo dos Sonhos e Novo Progresso, além da área desmatada.
O perfil
econômico se reflete no resumido rol de estabelecimentos comerciais instalados
ao longo deste trecho da BR-163, que, além de inúmeras lojas de compra e venda
de ouro, inclui empresas de produtos agropecuários, borracharias e oficinas
para o conserto de tratores e retroescavadeiras, máquinas fundamentais para o
trabalho no garimpo e nas derrubadas.
O ponto de
partida de todas essas atividades é o mesmo: a apropriação de terras públicas.
“A grilagem atua para colocar mais terra no mercado. O que vai ser feito com
essa terra depende do ciclo econômico vigente”, explicou José Heder Benatti,
professor titular do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do
Pará e ex-presidente do Instituto de Terras do Pará.
Nem mesmo
duas forças-tarefas federais contra alguns dos maiores desmatadores da
Amazônia — as operações Castanheira, em 2014, que mirou o grupo comandado
por Ezequiel Antônio Castanha, e Rios Voadores, em 2016, que tentou
desarticular a quadrilha de Antônio José Junqueira Vilela Filho — conseguiram
intimidar os invasores de terras públicas no sudoeste do Pará.
Pelo
contrário, em 2019, a região foi palco do “Dia do Fogo”, quando um grupo de
fazendeiros coordenou centenas de incêndios criminosos que tiveram ampla
repercussão internacional. Em 2020, o Greenpeace identificaria um
“esquema novo de desmatamento e negociações de terras” na região, cujo
principal sintoma é justamente a ocorrência “em curto intervalo de tempo”.
Perfil econômico em Novo Progresso é baseado
em lojas de maquinários e compra e venda de ouro
Fotos:
Bruno Kelly
A
responsabilidade por esse dano ambiental — que transformou em fumaça cerca de
3,5 milhões de árvores e uma biodiversidade de mais de 200 espécies por hectare —
recai sobre três homens, segundo o Ibama e a Secretaria de Meio Ambiente do Pará, a
Semas.
O primeiro
é Jeferson de Andrade Rodrigues, multado em R$ 15,4 milhões pelo Ibama e também
pela Semas (ainda sem valor definido) por sua participação no desmatamento.
Natural do Paraná, Rodrigues tem 45 anos e já foi funcionário de duas
agropecuárias em Castelo dos Sonhos.
Atualmente,
trabalha com compra de gado, como mostra sua descrição de perfil no Whatsapp e
os diversos registros de embarque de animais publicados em sua página pessoal
no Facebook. Além de sua fatia de terra no maior desmatamento da Amazônia,
Jeferson também se diz dono de outras quatro áreas que, na verdade, pertencem à
União. Duas delas foram desmatadas em 2021 e estão sendo divididas em lotes,
procedimento que é praxe no manual do grileiro na
busca pela regularização do imóvel junto ao Incra.
O segundo
apontado é o pecuarista Delmir José Alba, de 56 anos. Um homem magro, alto, de
cavanhaque, cuja aparência simples (bermuda, camiseta e boné) contrasta com o
patrimônio, dinheiro e prestígio que sua família detém na região.
Recentemente, patrocinou o mais importante rodeio de
Castelo dos Sonhos, ao lado de outro poderoso fazendeiro — Manoel Alexandre
Trevisan, o Maneca, acusado de envolvimento no assassinato de Brasília,
uma liderança popular, há exatos 20 anos.
Natural de
Santa Catarina, Nego Alba (como o pecuarista é conhecido) veio ao Pará na
esteira de um tio e um irmão que estão entre os primeiros migrantes a se
estabelecerem na região. Pelo menos parte de seu trajeto até Castelo dos Sonhos
pode ser reconstituído a partir das multas ambientais que acumulou pelo
caminho.
Em 1995,
ele tomou a primeira multa ambiental em Conceição do Araguaia, na fronteira do
Pará com o Tocantins. No ano seguinte, a queima de vegetação sem autorização do
Ibama lhe renderia um auto de infração duzentos quilômetros ao norte, no
município paraense de Xinguara. A partir de 1997, todas as multas seriam
lavradas na região da BR-163, entre Novo Progresso e Altamira, onde Nego Alba,
enfim, se estabeleceu. Atualmente, sua ficha junto ao Ibama totaliza 10
penalidades — por desmatamento e queimada ilegal, comércio ilegal de madeira e
descumprimento de embargo, entre outros crimes — que somam R$ 11 milhões
(valores atualizados pelo IPCA). Pouco mais de R$ 20 mil (0,18% do valor total)
constam como quitados no sistema do órgão federal.
‘Se você não quer
vender a terra, tudo bem. A viúva vende mais barato’.
Tanto
Rodrigues quanto Delmir assumiram a responsabilidade pelo maior desmatamento contínuo
em depoimento à Polícia Civil, prestado em junho de 2020.
Augustinho
Alba, pecuarista e irmão de Delmir, é a terceira pessoa responsabilizada pelo
desmatamento que, em 2020, lhe rendeu uma multa de R$ 22 milhões. A cifra milionária não o
intimidou. No ano seguinte, seria autuado em mais R$ 31,3 milhões por seguir com o
desmatamento e impedir a regeneração da floresta.
Em nota, a defesa do pecuarista disse
que “não há qualquer correlação entre a área de propriedade do Sr. Augustinho
Alba e a [área] desmatada”. Também afirmou que o desmatamento ocorreu na
propriedade de seu irmão Delmir, (com quem afirma ter rompido uma sociedade) e
lhe foi equivocadamente atribuído pelo Ibama, após um erro na checagem do
monitoramento via satélite.
“Em geral,
cada região tem uma elite local que tem uma relação mais próxima com atividades
de grilagem e desmatamento”, explicou a procuradora Ana Carolina Haliuc
Bragança, que foi coordenadora da Força-Tarefa Amazônia, extinta no ano
passado, do Ministério Público Federal, o MPF. “Isso dificulta as
investigações, pois o mapeamento desses grupos depende de um conhecimento muito
aprofundado das redes locais. Sem falar que eles operam totalmente fora do
sistema, fazendo pagamentos com dinheiro vivo, por exemplo”.
Vista
aérea de Novo Progresso, Pará.
Foto:
Bruno Kelly para o Intercept Brasil
Rodadas
de queimadas
A maior derrubada da Amazônia
aconteceu nos fundos das propriedades de Augustinho Alba (Fazenda Santa
Tereza) e de seu filho, Gustavo de Jesus Alba (fazenda
Bom Jesus). É o que mostra a reconstituição feita pelo Intercept a partir de
imagens de satélites e análises do Center for Climate Crime Analysis, o CCCA, uma ONG que atua
para responsabilizar judicialmente empresas que colaboram para o aquecimento
global, e da Earthrise Media, organização que emprega a tecnologia em prol
da conservação ambiental.
Graças às
imagens de satélite, foi possível reconstituir o passo a passo do desmatamento,
desde os primeiros sinais de exploração madeireira até o plantio da pastagem
para o gado. A história começa há aproximadamente duas décadas, com a abertura
de um sinuoso caminho rumo à floresta, em busca da madeira de maior valor
comercial.
Desmatamento às margens
da BR-163 com grandes propriedades cercadas. Mapa: Júlia Coelho/The Intercept
Brasil | Imagem: ESA Copernicus/Sentinel-2/Earthrise
Trata-se
de uma tradicional estrada madeireira, como explicou Heron Martins, coordenador
do laboratório de análises geoespaciais do CCCA. “Com o dinheiro da venda dessa
madeira, o sujeito vai financiar a própria derrubada, que exige o aluguel de
máquinas e a contratação de mão-de-obra, a compra das sementes de capim e das
primeiras cabeças de gado”.
Após anos
de exploração madeireira, em dezembro de 2019, estradas mais amplas são abertas
para que haja a divisão da área em grandes lotes. Apesar da forte presença de
nuvens nos meses subsequentes, o que atrapalha a visualização pelas imagens de
satélite, em fevereiro de 2020 é possível perceber os primeiros sinais da
derrubada massiva da floresta — etapa que seria concluída em apenas quatro
meses.
Estrada construída
derrubada de madeira no interior da floresta. Mapa: Júlia Coelho/The Intercept
Brasil | Imagem: ESA Copernicus/Sentinel-2/Earthrise
A equipe
da Semas chegou ao local pouco tempo depois, em junho de 2020, quando se
deparou com inúmeras árvores derrubadas (entre elas, espécies protegidas, como
a castanheira) e outras semi-decapitadas, com cortes profundos que avançavam
por até 70% do diâmetro do tronco, prontas para tombarem com a força do vento
ou pela queda de outra árvore por cima delas. “Tem-se a percepção de ser uma
técnica usada para retardar os alertas de desmatamento capturados pelos
sensores remotos, já que após feito esse tipo de corte, as árvores vão caindo
aos poucos, demorando semanas para tombarem”, observaram os fiscais.
Os servidores guardavam a
certeza de que o próximo passo dos grileiros seria atear fogo nos destroços da
vegetação. Por isso, os fiscais da Semas recomendaram que os órgãos públicos
continuassem monitorando a área. Apesar de previsível, o desfecho não foi evitado:
três meses depois, o fogo seria efetivamente usado para finalizar o processo de
“limpeza” e facilitar o crescimento da pastagem.
“Esse caso é bem típico do
processo de derrubada da floresta que ocorre desde os anos 1970 na Amazônia”,
afirma Martins.
O acompanhamento das imagens de
satélite mostra que o processo de destruição permanece em curso. No início de
setembro, quando estávamos terminando de escrever a primeira reportagem desta
série, imagens de satélite flagraram mais uma rodada de queimadas na área —
provavelmente, para eliminar o que ainda restava de vegetação nativa.
Gif
mostra avanço do desmatamento em área da Amazônia. Gif: Júlia Coelho/The
Intercept Brasil | Imagem: ESA Copernicus/Sentinel-2/Earthrise
Professor
da UFPA e doutor em geografia humana pela Universidade de São Paulo, Maurício
Torres explica que a grilagem de terras se dá a partir de dois processos
distintos. O primeiro acontece no chão e consiste na derrubada da floresta:
“Sem desmatamento, não existe grilagem, porque esse é o principal instrumento
de controle territorial. É isso que o cara vai usar lá na frente para mostrar
que a área é ‘produtiva’. Ou seja, o que um órgão do governo entende como crime
ambiental, os programas de ‘regularização fundiária’ entendem como prova de
ocupação”, explica.
Enquanto
os peões trabalhavam duro na primeira etapa da grilagem, Delmir Alba e Jeferson
Rodrigues agilizavam a etapa burocrática da tomada das terras públicas. E
nenhum papel é tão fácil de ser obtido quanto o Cadastro Ambiental Rural, o
CAR, documento autodeclaratório criado em 2012 para reunir as informações
ambientais das propriedades rurais, mas que acabou subvertido em um
instrumento de facilitação da grilagem de terras.
Em janeiro
de 2020, Rodrigues criou um CAR para sua parcela de terras apropriadas da
União, localizada às margens do Rio Curuá e batizada de Fazenda Vale do Curuá, com 2.420 hectares.
O Intercept entrou em contato com ele, que confirmou possuir uma fazenda
na área desmatada. Sem dar mais explicações, disse que já prestou
esclarecimentos à justiça.
Em março do
ano seguinte, a parcela restante da área (5.803 hectares, quase 6 mil campos de
futebol) passou a constar no sistema do CAR como a Fazenda Nossa Senhora Aparecida, em
nome de Delmir Alba. O Intercept tentou contato com Alba, por meio de seu
perfil pessoal no Facebook e também pela conta de sua esposa, mas não obteve
resposta. Também foi feito contato com dois advogados que já haviam defendido o
pecuarista, mas ambos disseram que deixaram de representá-lo.
Estivemos
na região em agosto de 2022, mas não conseguimos acessar nenhuma das fazendas.
Porteiras impediam a entrada, deixando claro que, agora, essa área tem dono.
Floresta pega fogo
próximo da BR 163, no distrito de Castelo dos Sonhos.Foto: Bruno Kelly para o
Intercept Brasil
‘Não
é qualquer um que tem esse dinheiro’
Existem dois métodos principais
de derrubada nesta região do Pará. Cada um atende a uma especificidade de preço
e, sobretudo, ao uso que se pretende dar à área desmatada.
O primeiro
é o “quebradão”, desenvolvido pelo homem que ficou conhecido como o maior desmatador da Amazônia, Ezequiel Antônio
Castanha. É quando se usa motosserras para cortar apenas as árvores
maiores. À medida que essas vão tombando, “amassam” a vegetação mais baixa. O
processo deixa para trás tamanha tranqueira de galhos, troncos caídos e cipós,
que são necessárias duas levas de fogo para que a área fique completamente
“limpa” e coberta de capim.
O custo
deste tipo de derrubada gira em torno de R$ 2 mil por hectare, incluindo mão de
obra, maquinário e combustível. “É o método mais barato e costuma ser utilizado
por quem faz o desmatamento especulativo e quer gastar o mínimo, porque o
objetivo não é produzir, mas sim vender a terra”, explicou uma fonte ouvida sob
anonimato pela reportagem.
Mesmo que
tenham escolhido apenas esse método, mais econômico, Rodrigues e os irmãos Alba
teriam gasto, em média, R$ 13 milhões para desmatar os quase 6.500 hectares
flagrados pelos satélites. Mas o uso de tratores de esteira (descrito pela equipe da Semas) e o perfil dos desmatadores
(criadores de gado) indicam que o quebradão foi combinado com outro formato,
que usa máquinas pesadas e por isso demanda um investimento de duas a três
vezes maior: a hora do trator custa em torno de R$ 500, o que equivale a uma
diária inteira de um operador de motosserra.
‘Uma derrubada tão
grande demonstra que há pessoas com muito poder por trás desse desmatamento’.
Nesse
modelo, as máquinas vão derrubando a mata mais baixa, enquanto logo atrás vem
alguém plantando as sementes de capim. Além de exigir apenas uma queima para
ficar pronto, esse processo tem mais chance de passar despercebido pelos
satélites de monitoramento, já que as árvores maiores ficam de pé e acabam
escondendo a derrubada que acontece ao nível do chão. Por garantir mais
rapidamente um pasto de melhor qualidade, esse costuma ser o método escolhido
por quem não quer apenas especular, mas também produzir na terra.
“Uma
derrubada tão grande em um espaço tão curto de tempo demonstra que há pessoas
com muito poder econômico por trás desse desmatamento”, afirmou Martins. “Não é
qualquer um que tem esse dinheiro”, acrescenta Maurício Torres.
O
investimento, no entanto, deverá ser rapidamente compensado, seja pela produção
agropecuária, seja pela venda da área a terceiros. “Se você invadir um
apartamento e morar lá 10 anos sem pagar nada, já vai estar economizando para
caramba, certo? Com a grilagem é a mesma coisa”, compara Paulo Barreto,
pesquisador sênior do Imazon.
O terreno
desmatado pelo trio tem a característica mais cobiçada da região: é plano, o
que aumenta muito o seu valor de mercado. “Isso significa que tem aptidão para
soja”, explicou Maurício Torres.
Segundo
informações colhidas junto a um vendedor de terras da região, o preço do
hectare já desmatado nesta região do Pará pode variar de R$ 10 mil a R$ 35 mil,
em média. No caso da área desmatada pelos Alba e por Rodrigues (plana e próxima
à BR 163), o hectare dificilmente sairia por menos de R$ 20 mil, o que
significa um total de R$ 130 milhões pelos 6,5 mil hectares — mais do que o
dobro do orçamento do Ibama para prevenção e combate a incêndios
em 2022.
Caminhões passam pela BR
163 levando grãos para o porto de Miritituba, no Rio Amazonas.Foto: Bruno Kelly
para o Intercept Brasil
Um
reino no Castelo dos Sonhos
Océu vai ficando mais escuro à
medida que subimos a BR-163 em direção a Castelo dos Sonhos, a ponto de
atrapalhar a visibilidade dos motoristas e irritar a garganta dos viajantes.
Estamos no início de agosto, e a quantidade de fumaça já sinaliza que este
será o pior agosto desde 2010 em relação
ao número de queimadas na Amazônia.
Castelo
dos Sonhos tomou o nome emprestado de uma música do cancioneiro brega, do compositor Walter Basso, que cantava “No meu castelo de
sonhos você é a rainha…”.
A canção
era bastante popular entre os garimpeiros, primeiros ocupantes da região nos
anos 1970. Mas, para a maioria dos habitantes, a vida não é exatamente um conto
de fadas nesta área marcada por conflitos de terra, onde os grandes se
habituaram a esmagar os menores. “Muita gente aqui perdeu as terras e a vida
junto”, contou um morador que preferiu não se identificar.
Para uma
pequena elite, no entanto, a decisão de tentar a sorte no Pará resultou em um
invejável império. Enquanto Augustinho e Delmir cuidavam dos negócios no Pará,
o terceiro Alba, Ivanor, acompanhava tudo à distância, em Santa Catarina, onde
é médico cirurgião. Juntos, os três irmãos construíram um patrimônio de mais 11
mil hectares — o equivalente a quatro arquipélagos de Fernando de Noronha — e
prosperaram com a criação de gado e o cultivo de soja.
O real
tamanho do patrimônio, no entanto, é desconhecido, já que na região é usual
registrar propriedades em nome de terceiros. A Fazenda Santa Tereza, por
exemplo, não está registrada em nome de Augustinho no sistema do CAR, e sim em
nome de sua esposa, Julia Rosa de Jesus. Segundo a defesa do pecuarista, isso
acontece porque a área foi desmembrada, e o processo ainda não foi concluído.
Irmãos Alba construíram
um invejável império que inclui áreas de soja e de criação de gado.Foto: Bruno
Kelly para o Intercept Brasil
Há alguns
anos, divergências na condução dos negócios levaram à divisão do reino dos
Alba. A área de Augustinho e de Delmir ficou de um lado da BR — expandida à
força do desmatamento —, enquanto a de Ivanor ficou do outro lado da rodovia.
Augustinho,
Delmir e a esposa deste último, Diene Montagni, forneceram gado para seis
frigoríficos, que exportam para destinos como Hong Kong, Congo, Tailândia
e Estados Unidos. As informações constam nas guias de transporte animal (GTAs)
emitidas por eles entre 2018 e 2021, obtidas pelo Intercept.
O
principal cliente dos irmãos Alba é a empresa Vale Grande, pertencente ao
grupo Frialto. Nego Alba já trabalhou para o frigorífico, fazendo a
ponte entre o abatedouro e os produtores de gado da região. Em 2013, a empresa foi processada pelo MPF por
comprar 5.370 cabeças de gado de áreas embargadas por desmatamento ilegal, e
183 vindas de propriedades da lista suja de trabalho análogo à escravidão.
De acordo
com dados da empresa Panjiva, entre janeiro de 2019 e julho de 2022, as
unidades da Vale Grande em Mato Grosso e Rondônia exportaram 2,2 toneladas de
carne, das quais mais de 50% foram enviadas para os Estados Unidos.
O segundo
maior cliente dos Alba é o frigorífico Redentor, que em 2018 comprou 385
animais de Augustinho Alba. A empresa está em recuperação judicial e não
assinou o TAC da Carne com o MPF, acordo no
qual os frigoríficos que operam na Amazônia se comprometem a não comprar gado
de áreas desmatadas ilegalmente, tampouco com mão de obra escrava. Mesmo assim,
o abatedouro foi recentemente autorizado a voltar a exportar para
China. Em 2019, o Redentor vendeu 108 mil quilos de carne para o
mercado asiático.
Em nota, o
Redentor Foods confirmou que abateu 385 animais da Fazenda Santa Tereza, de
Augustinho Alba e que, no momento da compra, a propriedade cumpria todas as
exigências legais. Já o grupo Frialto, dono do frigorífico Vale Grande,
informou que assinou o TAC da Carne após ser processado pelo MPF e que as
propriedades que não cumprirem os requisitos do acordo serão bloqueadas. A
íntegra das respostas dos dois frigoríficos pode ser lida aqui.
Pecuária
é um dos principais vetores do desmatamento em Novo Progresso, no Pará.Foto:
Bruno Kelly para o Intercept Brasil
Alvo
número 1
O caso de Castelo dos Sonhos é
ilustrativo do que acontece no restante da Amazônia não só pelo roteiro — tirar
a madeira, derrubar a floresta, botar fogo e plantar capim — mas, sobretudo,
pelo cenário. O maior desmatamento de uma área contínua do Brasil aconteceu em
uma terra pública não destinada (ou gleba), como são chamadas as parcelas
pertencentes à União ou aos estados que não foram convertidas em unidades de
conservação, terras indígenas ou propriedades particulares.
Se por lei esses espaços deveriam ser
protegidos e destinados às comunidades locais, à concessão florestal ou à
criação de florestas nacionais, na prática esse território se tornou o alvo
número um dos grileiros: 40% das derrubadas, entre 2013 e 2020, aconteceram nas
áreas públicas não-destinadas, de acordo com o Imazon. E, de 2019 a 2021,
o desmatamento nessas terras aumentou 78%, comparado ao triênio anterior. Ainda
segundo o instituto, “esse aumento de desmatamento é uma evidência da pressão
para que tais áreas sejam privatizadas”.
“O
grileiro vai atrás de uma terra ‘grilável’. Ao contrário das terras
não-destinadas, uma unidade de conservação ou uma terra indígena não são
griláveis, porque já são destinadas e, teoricamente, não podem mais ser
destacadas do patrimônio público para serem incorporadas ao patrimônio privado
do grileiro”, esclareceu Maurício Torres.
O Ibama,
órgão responsável por proteger essas áreas, não respondeu aos questionamentos
do Intercept.
Segundo levantamento do Imazon, existem
143,6 milhões de hectares de áreas públicas não-destinadas na Amazônia Legal —
uma área maior que o território de todo o Peru e que representa 30% da região
amazônica. Além das áreas de florestas federais e estaduais formalmente
reconhecidas pelo Serviço Florestal Brasileiro, SFB – responsável pelo Cadastro Nacional de Florestas Públicas –,
o número do Imazon inclui um vasto território sobre o qual simplesmente não há
nenhuma informação a respeito de destinação: não foram reconhecidas pelo SFB
como florestas não-destinadas, mas também não constam nas bases de dados
públicos como território indígena ou quilombola, unidade de conservação,
assentamento ou propriedade privada.
‘Floresta com
gente reage, floresta sem gente não reage’.
Em nota, o SFB informou que o
cadastramento das áreas não-destinadas depende de informações prestadas por
diversos órgãos públicos e que é responsável apenas pela destinação de áreas
para as concessões florestais.
A Funai e
o ICMBio, responsáveis pela destinação de áreas para terras indígenas e
unidades de conservação, respectivamente, não responderam ao Intercept. Já o
Incra, à frente da gestão dos assentamentos da reforma agrária e das terras
não-destinadas — como é o caso da área desmatada pelos Alba e por Rodrigues —
não esclareceu quais suas responsabilidades sobre a área, destacando apenas que
a proteção ambiental compete ao Ibama. A íntegra da troca de emails entre o
Incra e o Intercept pode ser lida aqui.
O Pará é o estado onde a pressão sobre
as áreas não-destinadas é maior. Segundo um relatório do Greenpeace, o
“conhecimento da estrutura fundiária para identificar terras públicas sem
destinação” e então invadi-las é uma das principais estratégias dos grupos
organizados que atuam na região. Segundo a organização, 62% das áreas de
florestas públicas não-destinadas do entorno da BR-163 estão registradas no
CAR, e o desmatamento nesse território aumentou 205% entre agosto 2019 e julho
2020, em comparação com o mesmo período do ano anterior.
Por isso,
a destinação dessas áreas — especialmente para terras indígenas — é apontada
por especialistas como uma das maneiras mais efetivas de evitar a grilagem, e,
por consequência, o desmatamento. “Nessa briga da especulação, é melhor
floresta com gente do que floresta sem gente. Floresta com gente reage,
floresta sem gente não reage”, afirmou José Heder Benatti.
No
sudoeste do Pará, o caminho foi o contrário. Em 2003, uma portaria do governo
federal fez o povo Kayapó perder mais de 300 mil hectares da Terra Indígena
Baú, após mais de uma década de conflitos com posseiros, madeireiros,
mineradores e políticos da região.
Mapa
mostrando parte desafetada da TI Baú, parte que restou e localização do
desmatamento de Jeferson e Delmir.
Nos anos
seguintes à redução do território, até 2008, o Imazon constatou que o desmatamento
aumentou a uma taxa média de 129% ao ano, justamente nessa parcela que foi
retirada dos indígenas. Entre os grileiros que se beneficiaram da desafetação
estão Rodrigues e Delmir.
Para
Maurício Torres, o precedente da TI Baú encorajou os grileiros e estimulou uma
corrida que hoje já não é apenas pelas terras não-destinadas, mas também pelas
áreas protegidas, em especial a Floresta Nacional do Jamanxim — a segunda unidade de conservação mais desmatada do
país segundo o Inpe. “A redução da terra indígena Baú foi obtida por meio de
invasões e de ameaças a indígenas, dizendo que ia haver um massacre caso eles
não fossem atendidos. Esse precedente deixou bem claro que, com violência,
terror e desmatamento, se consegue tudo”.
Esta reportagem
faz parte do projeto Ladrões de Floresta, que investiga a grilagem em terras
públicas da Amazônia e conta com o apoio da Rainforest Investigations Network,
do Pulitzer Center.
*Fernanda
Wenzel-repórter freelancer, cobre temas ambientais,
especialmente Amazônia. Escreve para a piauí, ((o))eco, BBC Brasil, Valor
Econômico, ((o))eco e Revista Globo Rural.
Publicado no Intercept Brasil: 14
de Novembro de 2022
Fonte: https://theintercept.com/2022/11/14/amazonia-desmatamento-pasto-terras-publicas/