Kapuscinski, grande repórter polonês, exerceu um modelo de jornalismo que hoje se encontra em vias de extinção: “caminhou pelas rotas quase esquecidas onde se encontrava patente a miséria humana”
Jornalismo, hoje, cruza a maior crise de credibilidade em toda sua história
CAROLINA VÁSQUEZ ARAYA* Diálogos do Sul – Sociedade e Jornalismo Dominado pelo Grande Capital
O modo como a função informativa foi se transformando em
um braço estratégico do poder
econômico global, evoluiu
até se tornar parte da paisagem. O que em alguma época foi um exercício de
risco, de confronto e uma ferramenta útil para a sociedade, hoje parece haver
tomado o partido oposto ao manipular e ocultar verdades que, se forem do domínio
público, seriam capazes de pôr de cabeça para baixo os mais
poderosos. Chama a atenção, no entanto, o cinismo com que se põe de manifesto o
desprezo das grandes cadeias informativas para com as tragédias humanitárias que assolam o
planeta, e como seus conteúdos são aceitos como verdades absolutas.
Fazer um espetáculo da desgraça alheia é, ao que parece,
uma tática capaz de aportar vantagem em termos de audiência e, por conseguinte,
um substancioso incremento na pauta publicitária. O que Kapuscinski,
o grande repórter polonês, considerava fundamental no exercício jornalístico:
“Buscar a verdade entre as pessoas comuns, esquecer-se dos elevados círculos do
poder quando é preciso encontrar respostas. Descrever os detalhes, porque às
vezes neles se encontra a chave de tudo. Fugir da vaidade e da sobre dimensão
do ego como
da própria peste, porque aí se começa a perder a objetividade e o sentido das
coisas. E viajar sozinho, para que a visão de alguém mais não distorça a
percepção pura e direta do repórter”.
Hoje, considera-se isso uma desvantagem competitiva.
Kapuscinski
viajou pelo mundo e não em qualidade de turista, em hotéis de alto luxo. Caminhou pelas rotas quase esquecidas onde
se encontrava patente a miséria humana. E nos relatou seus achados com o
senso posto – incondicionalmente – na proximidade com os seres mais humildes,
os povos mais necessitados. Suas profundas análises poderiam cobrir todo o
conteúdo de um doutorado em ética e
seus ensinamentos seriam capazes de reverter o próprio sentido de uma profissão
que, de honrosa, passou em alguns casos a ser o equivalente do mundo dos sicários (assassinos).
Como forte opositor a todo tipo de conflito armado – em
sua carreira viu muitos e, sobretudo, seus efeitos – este jornalista ganhador
do prêmio Príncipe de Astúrias afirmou alguma vez que "a primeira vítima
da guerra é a verdade”. Ao observar o panorama atual e pondo cada coisa em seu
lugar, é importante dizer que a implantação esmagadora de espetáculo bélico e
sua retórica desumanizante refletem a tendência de um jornalismo elaborado para
e pela hegemonia dos países mais poderosos, garantindo assim a submissão e o
enfraquecimento progressivo das nações consideradas “dependentes”.
Os autênticos profissionais do jornalismo, que vêm
reduzir seu terreno por pressões de poderes fáticos, influência das grandes
corporações, chantagens e ameaças de empresários e políticos e, sobretudo, de
estamentos jurídicos estreitamente vinculados a organizações criminosas e
exércitos corruptos, são perseguidos, como Assange na Inglaterra, perseguido
pelos EUA. As pressões incessantes para calar a verdade e ocultar crimes de
Estados não são coisas unicamente de países do terceiro mundo; o vemos as
grandes cadeias internacionais protegendo decisões espúrias das grandes
potências e convertendo suas agressões em um exemplo de virtudes democráticas.
O jornalismo, hoje, cruza a maior crise de credibilidade em toda sua história.
Kapuscinski exerceu um modelo de jornalismo que hoje se encontra em vias de extinção.
*Carolina Vásquez Araya | Colaboradora da Diálogos do Sul da Cidade da Guatemala.
Publicado no Diálogos do Sul: 1 de nov de 2022
Tradução: Beatriz Cannabrava
Fonte: https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/busca/resultados?q=M%C3%ADdia+global+transforma+crimes+de+pot%C3%AAncias+em+virtudes+democr%C3%A1ticas
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