Antes de o mundo científico acordar para os imensos riscos para o planeta provocados pelo crescimento econômico sem limites, a visão desenvovimentista ainda podia ser discutida. Hoje em dia, ela é um anacronismo perigoso, por Jean Marc Von Der Weid
Estamos vivendo no limite de um processo que já
provoca efeitos devastadores em todo o mundo e que promete ampliar seus
impactos até a destruição irreversível das condições de manutenção da
civilização tal como nós a conhecemos, Jean Marc
por Jean Marc Von Der Weid* no
A Terra é Redonda e Brasil 24/7 – Sociedade e Manter a Vida na
Terra
Em março/2023 escrevi dois textos sobre a crise energética e a crise do aquecimento global, sob o título geral de “Tudo o que não discutimos nestas eleições, mas que vai cair sobre nós no curto prazo”. Ambos podem serem lidos no site A Terra é Redonda. Talvez por já ter tratado estes temas com profundidade, não os incluí na série, publicada entre abril e maio/2023, “A armadilha”. Os títulos são: “A crise energética” e a “Crise climática”. Na verdade, não esperava que tivéssemos um impasse tão pesado e tão cedo, com a Petrobras pedindo a concessão de pesquisas, visando explorar petróleo na foz do Amazonas e recebendo uma recusa técnica do IBAMA.
O conflito entre desenvolvimentistas e
ambientalistas, simbolizado nas pessoas de Marina Silva e um renque de políticos
e técnicos do governo, vai ter que ser arbitrado pelo presidente Lula e o
histórico de posições passadas deste último não prenuncia a adoção da solução
correta, a do IBAMA, na minha opinião.
Infelizmente, o corpo político e técnico do governo
assume uma posição dita desenvolvimentista, mas é preciso qualificar este
conceito. Por muito tempo, adotou-se uma visão da economia voltada para a busca
do crescimento econômico como a meta da sociedade, aquilo que eu chamo de
“pibismo”. Nesta concepção, tudo o que favorece o crescimento do PIB é visto
como positivo, independentemente de seus impactos ambientais, sejam eles o
aquecimento global, a contaminação de águas e solos, a destruição da
biodiversidade, entre outros. Antes de o
mundo científico acordar para os imensos riscos para o planeta provocados pelo
crescimento econômico sem limites, tal visão ainda podia ser discutida. Hoje em
dia, ela é um anacronismo perigoso.
Estamos
vivendo no limite de um processo que já provoca efeitos devastadores em todo o
mundo e que promete ampliar seus impactos até a destruição irreversível das
condições de manutenção da civilização tal como nós a conhecemos.
A imensa maioria dos políticos, entretanto, e não só no Brasil, mantém o seu
olhar nos efeitos de suas decisões no curtíssimo prazo, evitando enfrentar os
perigos que vem se acumulando sobre nós, mas que o eleitorado não percebe. Ao
invés de abrir o debate educativo com a sociedade e apresentar os problemas de
forma a ampliar a consciência social da catástrofe iminente, prefere-se
privilegiar o “mais do mesmo” no desenvolvimento econômico. De olho nas
próximas eleições, o governo evita trabalhar as soluções para o futuro, um
futuro que já bate nas nossas portas, e insiste em fórmulas que nos levam mais
celeremente para o desastre.
O verniz “verde” adotado pelo governo Lula, além de
genérico e pouco concreto, não resiste à primeira investida dos interesses
tradicionais do grande capital. Sem programa de governo discutido com a
sociedade antes, durante e depois das eleições, Lula acena com o desmatamento
zero em todos os biomas, com a promoção do uso de energias renováveis e com um
vago plano de reflorestamento das “áreas degradadas”. E só.
E, ao mesmo tempo, discute a intensificação da
exploração de petróleo (e não só na foz do rio Amazonas), o estímulo ao uso de
gasolina e diesel com o barateamento de seu preço, o investimento em produção
de gás de xisto na Argentina, a exploração de potássio em terras indígenas na
Amazônia, a produção de carros populares e o estímulo às formas insustentáveis
de produção agropecuária. São sinais contraditórios e não deixarão de ser
vistos como tal, não só entre nós como no plano internacional.
É possível que o cinismo de dirigentes dos países
que estão insistindo na preservação da Amazônia (um dos poucos casos de questão
ambiental amplamente conhecido do público na Europa, Estados Unidos e Japão)
permita que eles fechem os olhos para a ampliação do uso de combustíveis
fósseis no Brasil, desde que o desmatamento zero seja adotado. É uma incoerência,
onde se seguram as emissões de gases de efeito estufa na Amazônia e,
paralelamente, se aumentam as emissões dos mesmos gases na queima de gasolina,
diesel e gás. Mas como os dirigentes políticos em todo o mundo praticam as
mesmas incoerências, o governo brasileiro pode sair ileso. Mas o planeta pagará
o preço destas incoerências. E todos nós e nossos filhos, netos e bisnetos mais
ainda. Muito mais.
Há, entretanto, um processo já em curso e que pode
afetar todo o sistema capitalista mundial nos próximos anos de forma
devastadora. Trata-se exatamente do petróleo e, secundariamente, dos outros
combustíveis fósseis. E não estou falando do impacto ambiental, sabidamente
catastrófico, do uso destes combustíveis, mas da iminente indisponibilidade dos
mesmos.
Há muitos anos que se discute o que se apelidou de
“pico” do petróleo. Trata-se do momento em que a expansão do consumo ultrapassa
o nível de renovação das reservas destes insumos. A expressão foi crismada pelo
geólogo americano Marion King Hubert, nos anos 1950. Estudando os índices de
extração e os de descobertas de novos poços nos Estados Unidos, Marion King
Hubert predisse que o pico da produção americana ocorreria em 1970, o que de
fato ocorreu. O mesmo cálculo foi feito por outros dois geógrafos, Colin
Campbell, inglês e Jean Laherrère, francês, em 1998. A previsão era que o pico
mundial da produção do que se chama de petróleo convencional ocorreria em 2008,
o que de fato também ocorreu.
Chama-se de petróleo convencional aquele mais
abundante e facilmente acessível com uma alta relação entre energia obtida em
relação àquela investida na pesquisa de novos poços e na sua exploração,
conhecida por EROI, na sigla em inglês. E é também o tipo de petróleo de melhor
qualidade, identificado tecnicamente como o Brent. É considerado petróleo não
convencional o obtido em águas profundas (golfo de México, Noruega) e ultra
profundas (Brasil) ou do tipo pesado como o da Venezuela (foz do Orenoco). O
petróleo não convencional tem EROI muito mais baixo e um custo de obtenção
muito mais alto.
Todo mundo se lembra da crise financeira de 2008,
cuja mais importante expressão simbólica foi a falência de um dos maiores e
tradicionais bancos americanos, o Lehman Brothers. O controle desta crise
custou trilhões de dólares aos bancos centrais nos Estados Unidos e na União
Europeia. Essa crise foi atribuída ao excesso de exposição do sistema
financeiro nos empréstimos imobiliários do chamado “subprime”.
Entretanto, pouca atenção foi dada ao fato de que o preço do petróleo vinha
subindo ano a ano desde 2002 (19,00 dólares por barril) até 2008 (130,00
dólares na média anual, com um máximo de 150,00 dólares em julho).
Estudos mais recentes indicam que o aumento dos
preços do petróleo foi o que provocou a alta da inflação e das taxas de juros e
a queda do valor dos imóveis, levando os tomadores de créditos imobiliários à
insolvência. Prosaicamente, a explosão do preço da gasolina levou estes
endividados, em uma sociedade onde a mobilidade é essencialmente via
automóveis, a ter dificuldades em pagar suas dívidas quando seus gastos com
combustíveis dispararam em 500% em poucos anos.
Os preços caíram destes patamares elevadíssimos,
mas nunca voltaram aos níveis do final do século passado, longe disso. E eles
só caíram porque ampliou-se a produção do petróleo não convencional, cujos
custos mais altos foram cobertos pela alta dos preços do convencional. Outras
fontes alternativas de “petróleo” também ficaram rentáveis e foram intensamente
exploradas, desde as areias betuminosas até o gás de xisto ou shale gas.
Com a exploração destas fontes, os americanos voltaram a ser autossuficientes
em petróleo, mas com custos muito mais altos não só pelas operações de extração
em si mesmas, como também pela necessidade de liquidificar o produto. Não
entram nestas contas os imensos custos ambientais destas formas de produção.
Mas estas boas notícias não enganam os
especialistas, já que a taxa de identificação de novos poços é baixa e os já em
operação se esgotam rapidamente. Os mesmos Campbell e Laherrère preveem que o
pico de todos os tipos de petróleo, convencionais e não convencionais (incluído
o pré-sal), deverá ocorrer até o fim desta década, mais provavelmente no
entorno de 2025, dada a queda nos investimentos em pesquisa de novos poços
provocada pela crise da COVID. Daqui a menos de dois anos!
O que acontece quando se chega no pico? A oferta de
petróleo vai começar a cair? Não foi assim com o pico do petróleo convencional.
Com um imenso esforço de raspar o fundo do taxo e incrementar as técnicas de
extração para sugar “até a última gota de cada poço”, o que ocorreu foi a
manutenção instável do volume de petróleo extraído no pico. Como não há nenhuma
expectativa entre os cientistas e os donos das grandes empresas de petróleo do
mundo de que novas descobertas de jazidas consideráveis possam acontecer e como
as formas não convencionais estão em esgotamento acelerado, manter o ritmo de
extração no seu ponto máximo significa apenas que há uma equivalente aceleração
do declínio das reservas.
Aliás, o nível destas reservas (de todo tipo de
petróleo) está estagnado desde 1964, sendo que o nível das reservas do petróleo
convencional está estacionado desde 1960! Ao mesmo tempo, a demanda por
petróleo triplicou neste intervalo. Isto quer dizer que as reservas vão sendo
esgotadas cada vez mais rapidamente e aproxima-se um ponto em que,
simplesmente, o volume ofertado vai começar a cair de forma vertiginosa, ao
invés de pouco a pouco se não houvesse essa política de “sugar até a última
gota”.
O impacto de uma crise súbita na oferta de petróleo
não pode ser desprezado quando se sabe que em todo o mundo: praticamente todas
as atividades produtivas, mais de 30% da geração de eletricidade para
aquecimento ou para iluminação, mais de 90% do transporte terrestre, marítimo e
aéreo, dependem deste combustível.
O impacto em termos de desorganização econômica se
desdobraria em desorganização social, em guerras pelo acesso aos recursos
minguantes, em falência de estados, em miséria, fome, doenças. Um cenário de
desolação com os quatro cavaleiros do apocalipse galopando impávidos. Pensem em
multiplicar a crise de 2008 por cem e ainda seria um cenário moderado para o
que pode vir. Lembremos que aquela crise foi debelada, mas que mesmo assim
quase 180 milhões de novos famintos ingressaram no mapa da fome da FAO naquele
ano, que revoltas populares ocorreram em mais de 30 países e que em lugares
mais críticos, como no Oriente Médio e norte da África, vários regimes foram
derrubados.
Crises de corte repentino no acesso ao petróleo
ocorreram em dois países, Cuba e Coréia do Norte, no final do século passado e
são um exemplo do que pode ocorrer em escala planetária. Em ambos, os mais de
10 anos de restrições severas em acesso a bens de consumo essenciais como comida,
roupas e remédios e a serviços como transportes, saneamento e eletricidade só
foram atravessados pelo fato de que se tratava de regimes autoritários e com
forte controle da população.
Se não queremos que este quadro dantesco caia sobre
nós, temos que parar com a tergiversação de curto prazo e nos lançarmos
corajosamente no debate para uma saída rápida da dependência do petróleo.
Desde logo, energias verdes vão ser importantes,
mas a eólica e a solar tem limites e não deixam de ter impactos ambientais,
sobretudo na escala necessária para se constituírem em uma parte significativa
da solução. Seria mais importante um plano de painéis solares urbanos em escala
nacional do que as atuais “fazendas elétricas” que ocupam áreas onde nada mais
pode ser produzido. E deixemos o discurso da bioenergia para os bobos. Mesmo a
cana de açúcar tem um balanço energético no limite do negativo. Enquanto não
houver avanços na produção de biomassa marinha em grande quantidade não se pode
discutir produção de álcool sem que ela substitua produção de alimentos.
Fala-se em hidrogênio verde como uma alternativa
tecnológica perfeita em termos de balanço energético e sustentabilidade, mas
ainda não vi cálculos do potencial em grande escala e dos seus riscos
ambientais.
Enquanto isso, temos que agir para reduzir a
demanda de energia. Reduzir as perdas e desperdícios é um passo importante, mas
apenas arranha o problema. Substituir o transporte individual por transporte
coletivo terá que ser feito e isto significa simultaneamente um investimento na
melhoria dos sistemas urbanos de mobilidade e na restrição ao uso do carro
individual. E vamos esquecer esta abobrinha do “carro popular”. No imediato vai
ser preciso subir e não descer o preço da gasolina e do diesel, subsidiando
setores estratégicos nesta transição: os caminhoneiros, taxistas, huberistas,
entregadores de todo tipo.
E investindo pesado na mudança da matriz de
transporte de cargas com vistas a acabar com o transporte de carga pesada
intermunicipal e substituí-lo por trens, hidrovias e cabotagem. O agronegócio
produzindo alimentos básicos também poderá ser subsidiado durante uma transição
energética nos sistemas de produção rural. Mas o agronegócio exportador não
precisa disso.
O BNDES e a Petrobras deveriam financiar a produção
industrial descentralizada no Brasil, dentro de uma estratégia de encurtar a
distância entre produção e mercado. E este estímulo deveria ser voltado para
produtos essenciais para o bem-estar da população. É muita coisa a ser mudada e
o que apontei não é mais do que exemplos da linha a seguir. Seja como for, é
preciso repensar o papel da Petrobras, e ele certamente não deverá ser o de
perfurador de poços em todo e qualquer ponto do país e produtor de petróleo até
a última gota.
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