A frágil
democracia brasileira é sequestrada ao mesmo tempo pelo Centrão e pelos
rentistas (grande capital). Margem do Executivo é limitada e tende a encolher.
Só há uma resposta possível: sacudir o tabuleiro viciado da política, por meio
de mobilização cidadã (nas ruas e espaços públicos), com os movimentos sociais
brasileiros
por Cândido Grzybowski*
no blog Sentidos e Rumos** e OutrasPalavras
– Sociedade e Reconstrução
Brasileira Pós-ditadura 64 e Golpe 2016
Não foi necessário
muito tempo para o Centrão mostrar a sua capacidade de encurralar a democracia
que foi re-conquistada com Lula e a complexa frente formada para a vitória
eleitoral de 2022. Trata-se de uma espécie de maioria parlamentar no Congresso
Nacional sem nenhum compromisso com a democracia enquanto tal, mas que se
articula em torno à primazia de interesses pessoais, paroquiais (seus redutos
eleitorais) e de bancadas corporativas, acima de qualquer compromisso
programático e partidário brasileiro. São parlamentares que agem, se articulam
e votam sempre em busca de vantagens. Nunca se pautam pelo bem comum ou aportam
algo a ele. Foram fiéis bolsonaristas enquanto convinha. Agora são
lulistas enquanto convier. Mas não dá para menosprezar seu poder no Congresso
Nacional.
O mal político,
uma espécie de câncer de sete vidas, vai mudando de posição, conforme as
conjunturas, para garantir que nada de essencial mude. Até parece que está no
próprio DNA de nossa República. Como Arena – Aliança Renovadora Nacional
(que ironia na ditadura de 1964!) – foram forças de apoio à ditadura militar no
que se manteve como Parlamento expurgado e manietado pela Ditadura Militar e
seus Atos Institucionais. Seu líder, o Sarney, até se tornou o presidente da
Nova República, em 1985, marcando o fim da ditadura militar (outra ironia que
nossa história nos pregou, pois Sarney como civil, foi mais sórdido que muitos
militares!).
Mas, como Centrão
se conformou pela primeira vez no processo que gerou a Constituição Democrática
de 1988, a base constitucional que temos até hoje. Com grandes virtudes e
conquistas de direitos constitucionais, diga-se de passagem (Uf, novamente o
Ulysses Guimarães e frente política). Mas também com o câncer da
governabilidade conciliadora embutido nela. Como já afirmei muitas vezes, temos
uma jovem democracia encurralada e até aqui não soubemos encontrar brechas de
saída democrática que não seja o “brete” estreito e sofrido do curral … do
Centrão no Congresso Brasileiro em pleno 2023 (século XXI).
Desde então, o
Centrão tem mantido os governos federais que se sucederam como reféns de seus
interesses. A proliferação de partidos e o troca-troca partidário são as
maneiras de acomodar interesses que são, acima de tudo, nada republicanos e
democráticos. Acontece, sem dúvida, alguma renovação em termos de pessoas e até
de métodos de agir, mas sempre cobrando favores para si ou seus redutos
eleitorais e financiadores. É um modo de ser e agir que muda para nada mudar.
Sem dúvida, não são todos os membros eleitos do Parlamento que, sob nomes
partidários diversos e mutantes, acabam compondo o Centrão. Existe claramente
uma esquerda e uma direita, mas minoritárias. É Centrão que aglutina a maior
bancada, com poder de veto em iniciativas de leis e mudanças no Congresso
Nacional. Como governar em tal situação? Eis o desafio para quem comanda o
Poder Executivo Federal.
É importante que
fique claro algo próprio de democracias: as disputas acirradas nos Parlamentos
são partes constitutivas do método democrático de fazer governo. Esta é,
inclusive, sua virtude maior em contraposição a qualquer autoritarismo. Na dúvida,
sempre existe o Poder Judiciário autônomo, como garantia da ordem
constitucional vigente, para dirimir dúvidas e impasses em termos legais. O
Executivo é um grande poder propositivo e operativo, mas para mudanças mais
significativas depende de leis debatidas e votadas pelo Parlamento (ou
Congresso Nacional), assim como da aprovação do próprio orçamento federal para
executar as políticas propostas.
Mas, se temos
Centrão e aquela profusão de siglas partidárias (20 siglas partidárias no
Congresso Nacional), sem compromisso democrático e programático real, onde está
a sua origem? A lei estabelece regras, mas quem vota e tem poder instituinte e
constituinte somos nós, cidadanias com direito ao voto. Nós delegamos,
pelo voto, poder a todos os membros do Parlamento, assim como ao Presidente e
Vice-Presidente. Somos nós, os milhões com direito ao voto – votando ou
nos abstendo – que fazemos nossas escolhas e conferimos mandatos de tempo
definido. Sempre é possível a renovação, assim como a reeleição, mas sempre através
do voto dado por eleitoras e eleitores.
Não é o caso aqui
de entrar mais a-profundadamente nas artimanhas constitucionais que enviesam o
peso dos votos. Não temos distritos eleitorais pulverizados pelo território
nacional, mas temos – no caso da Câmara e do Senado, que conformam o Congresso
Nacional – grandes distritos que são os Estados (no Brasil tem 26 Estados).
Cada Estado da Federação elege um mínimo de 8 deputados federais, como Roraima
e outros pouco populosos, e um máximo de 70, em São Paulo. Todas as bancadas
estaduais ficam dentro de tais limites mínimo e máximo. Em Roraima, em 2022,
menor colégio eleitoral do país, bastaram menos de 46 mil para eleger um
deputado. Na prática é menos que isto, pois só valem os votos válidos, sem as
abstenções ou nulos. Em São Paulo, o maior colégio, para eleger um deputado
federal o quociente foi de mais de 494 mil, na prática menos que isto, mas dá
para ter ideia do tamanho da diferença. Além disto, não importando o tamanho do
colégio eleitoral estadual, cada Estado tem direito a 3 senadores. No caso, 3
para Roraima e 3 para São Paulo. Dada a distribuição extremamente desigual em
tamanho populacional dos Estados, dá para ver a distorção na expressão do voto
da cidadania para um dos poderes maiores e mais representativos da democracia
brasileira: o Congresso Nacional.
Não sei se algum
dia poderemos alterar isto, mas é dentro destas bases constitucionais que
elegemos os congressistas brasileiros. Não dá para negar que são representantes
legítimos, porque eleitos segundo as leis, mas que distorção da vontade das
cidadanias que votam! Todas as múltiplas e diversas cidadanias deste país
acabam mascaradas por regras e poderes nada democráticos, esta é a
verdade. Felizmente, tais regras não valem para a eleição da Presidência
da República, onde decidem os votos majoritários em eleição nacional,
permitindo refletir melhor a composição da diversidade social e política cidadã
do Brasil.
O problema
concreto para governar a partir do Executivo é que se faz necessário compor
politicamente com o Congresso assim conformado. Não indo muito longe e ficando
no período inaugurado pela Constituição de 1988, a conciliação com o Congresso
é uma regra que limita o poder do Governo eleito. E, ainda pior, há o Centrão
fisiológico, onde quase nada se aprova sem ele. O Centrão é, em termos
institucionais, uma baliza delimitadora do que é possível negociar com sucesso
em votações no Congresso.
Não tenho dúvidas
que o desempate, nessas condições de qualquer proposta que tem que passar pelo
Congresso, supõe concessões por parte do Executivo ou, então, uma espécie de
paralisia no Parlamento. Felizmente, nem tudo precisa passar pelo Congresso, ou
seja, pelo Centrão. Mas, se alguma possibilidade existe, ela depende e muito de
nós cidadanias ativas, exercendo nosso papel político, a partir da sociedade
civil, para além do voto em eleições periódicas (majoritárias a cada 4 anos). A
vitalidade da democracia pressupõe, em última análise, o quanto a democracia em
si é ou não uma proposta hegemônica na sociedade. Se o Congresso pressiona por
concessões, nós com debates e ativismo social, ecológico ou econômico, podemos
definir os limites para concessões. É assim que funcionam as democracias: nós
não nos desobrigamos do ativismo contínuo por votar periodicamente. Pelo
contrário, precisamos exercer pressão cidadã para fazer valer o voto
majoritário concedido na eleição do Executivo mor, no caso o Presidente Lula.
Simples e complexo assim.[1]
Mas isto não é
tudo, enquanto limites para a democracia. Temos um sujeito político sem cara
nem voto, mas é de pessoas da classe dos 1%, que se apresenta como “mercado” e
veta tudo que pode significar algo menos para tal classe. Claro, tem um
representante como presidente do Banco Central “autônomo” (melhor dito, não
sujeito à política e à vontade da cidadania), mas com muito poder real para
produzir o impasse total num país como o Brasil. Aí o osso é duro e o ministro
Haddad não parece estar conseguindo grande coisa nas suas muitas conversas
reservadas com aqueles pouquíssimos representantes dos que gostam de se chamar
“mercado”. Que mercado é este que impõe tais limites para a democracia no
Brasil? O Lula tem falado grosso, mas o “mercado” não tem ouvidos, só poder
real de veto, sem voto para tanto. O problema é que retomar o caminho de uma
democracia um pouco mais virtuosa em sua capacidade de promover o cuidado de
gente e da natureza (como venho enfatizando) colide com uma economia voltada
essencialmente à acumulação privada de uma fraçãozinha de gente. Este tal
mercado é um fantasma, mas real. E os lobistas do Centrão são por ele
financiados. Temos que encontrar formas de peitá-lo algum dia. Novamente, uma
questão para a cidadania enfrentar, gerando força política com capacidade de
levar a uma democracia eco-social transformadora que precisamos, que precisa
passar por mudanças profundas na economia.
Vale a pena dar
uma olhadinha na nossa volta, na América do Sul, nos governos com propostas
minimamente progressistas. Os problemas que enfrentam são semelhantes, mas do
que sei não posso afirmar que se manifestam do mesmo modo. Pela proximidade
maior, vale a pena acompanhar o caso argentino, com Fernandez Presidente,
totalmente encurralado pelo mercado, de forma particular pelo FMI/BM e os
“fundos abutres” nacionais e internacionais por trás. Ele já anunciou que não
vai buscar a reeleição, pois não vê saídas para o impasse.
O caso chileno é
emblemático, que precisamos avaliar para aprender onde a cidadania errou. Não
vou entrar em detalhes, mas foi o país com a maior insurreição cidadã da região
nestes tempos recentes. Conquistou uma Constituinte Exclusiva, ganhou a maioria
na sua composição, propôs uma fantástica Constituição e… perdeu no voto
majoritário que precisava referendá-la. Isto que tinha eleito um jovem
presidente, o Bóric, vindo da militância, desde o movimento estudantil, contra
tudo o que o ditador Pinochet impôs ao Chile, no que se tornou então o
mais radical experimento neo-liberal da região (ou América do Sul). Pior,
agora, numa nova eleição para redigir outra Constituição, a direita chilena
acabou de ganhar a maioria. Tudo voltou a estaca zero. Tem que ser assim? Não,
mas temos que aprender a nunca deixar de ser vigilantes e ativos como
cidadanias.
O caso da Colômbia
é, talvez, mais parecido ao da gente. A vitória de Petro foi um marco de grande
significado democrático, depois de um século sem governos de esquerda e muita
divisão, até guerrilhas por mais de 50 anos, exército paralelo, produção e
tráfico de cocaína, bases militares dos EUA. A seu modo, a eleição que deu a
vitória a Petro foi empolgante e revigorante. Mas a coalizão política em torno
a Petro não obteve maioria no Congresso. Como Lula, ele soube costurar um apoio
parlamentar, compondo um governo amplo. Mas em nove meses, o centro do programa
que o elegeu – grandes reformas, especialmente na saúde, no trabalho e na
questão agrária – submetido à aprovação no Congresso acabou perdendo. Pior,
perdeu com o votos de partidos com ministros no governo. A reforma na saúde,
financiado pelo setor público, mas, implementada totalmente por prestadores
privados, é a sua proposta mais ousada até agora, mas nem o partido da ministra
da saúde apoiou. Assim, Petro apostou numa remodelação total do seu governo,
demitindo os ministros de partidos infiéis. Agora está decidido a fazer o que
sabe fazer melhor: apelar para a cidadania nas ruas. Sem dúvida, algo ousado,
mas caminho possível e virtuoso em democracias para valer. Veremos em breve o
resultado (será que ou vai, ou cai?).
Aponto isto tudo
que se passa na nossa região (América do Sul) para afirmar que não existe mais
espaço para governos de “progressismo neo-liberal”, como formam muitos dos
governos de esquerda no Continente Americano (América Latina), sobretudo na
primeira década do século, aproveitando o boom das commodities,
provocado pela demanda da China, em fantástica expansão capitalista. Hoje a
situação é outra e isto o Governo Lula já demonstrou que sabe e está jogando
suas cartas, com maestria e reconhecimento, na esfera geo-política (nacional e
internacional).
Mas para dentro,
para nossas emergências e urgências eco-sociais que demandam cuidado com gente
e com conivente com o Centrão e com o fantasma “mercado”? Penso que nós,
cidadanias diversas, podemos não ter resposta, porque nem estamos lá de forma a
decidir. Mas, sim, podemos influir se assumirmos que uma tarefa nossa e que só
nós poderemos desenvolver: a legítima pressão cidadã no chão da sociedade, com
eco lá no Planalto (Administração Federal). Acho que, de algum modo, o Governo
Lula 3 espera isto, depois de tudo que aprontaram contra ele (prisão de 580
dias)… com a total conivência do Centrão nos governos petistas de 2003-2016. O
Golpe contra Dilma e a própria prisão do Lula contaram com o total apoio do
Centrão.
[1] Sugiro examinar
com atenção a série de postagens do jornalista Jean Mar von der Weid, nestes
primeiros meses do Governo Lula. Ele aponta, com muito compromisso e
competência de militante histórico, as grandes questões jogadas no colo da Administração
Federal (Governo ) Lula, que são também questões para nós, cidadanias ativas.
*Cândido Grzybowski,
“Acho que não preciso dar detalhes sobre o tamanho e a
fortaleza do estreito curral em que nossa democracia se debate para não morrer
de vez. Seremos capazes de ruptura?". Quem pergunta é Cândido Grzybowski,
presidente do Conselho de Governança do Ibase, em artigo para o Le Monde
Diplomatique Brasil.
**Título original no blog Sentidos e Rumos :
O Centrão e sua capacidade de encurralar
Publicação
em Outras Palavras: 10/05/2023
Fonte: https://outraspalavras.net/
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