O colunista Vijay Prashad destaca que governos de países do Hemisfério Sul não aceitam a visão norte-americana sobre a guerra na Ucrânia
por Vijay Prashad* no Brasil 24/7 – Sociedade e Ruptura Socio-Econômica Global
Desde
o início da guerra na Ucrânia, o ministro das Relações Exteriores da Índia, S.
Jaishankar, tem defendido com veemência a recusa de seu governo em ceder à
pressão de Washington. Em abril de 2022, em uma coletiva de imprensa conjunta
em Washington, com o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, Jaishankar
foi instado a explicar a compra contínua de petróleo da Rússia pela Índia. Sua resposta foi
direta: “Vejo que você se refere à compra de petróleo. Se você estiver
analisando as compras de energia da Rússia, eu sugeriria que sua atenção se
concentrasse na Europa (…) Nós compramos alguma energia que é necessária para
nossa segurança energética. Mas suspeito que, olhando os números, provavelmente
nosso total de compras para o mês seria menor do que o que a Europa faz em uma
tarde”.
Entretanto,
esses comentários não impediram os esforços de Washington para trazer a Índia
para sua agenda. Em 24 de maio, o Comitê
Seleto do Congresso dos EUA sobre o Partido Comunista Chinês divulgou
uma declaração sobre Taiwan
que afirmava que “os Estados Unidos deveriam fortalecer o acordo Otan Plus para
incluir a Índia”. Essa declaração sobre essa política foi divulgada logo após a cúpula
do G7 em Hiroshima, Japão, onde o primeiro-ministro
da Índia, Narendra Modi, se reuniu com vários líderes do G7, incluindo o
presidente dos EUA, Joe Biden, e o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskyy.
A
resposta do governo indiano a essa formulação da “Otan Plus” encontrou eco no
sentimento de suas observações anteriores sobre a compra de petróleo russo.
“Muitos americanos ainda têm na cabeça a construção do tratado da Otan”, disse
Jaishankar em uma coletiva de imprensa em 9 de junho.
“Parece que esse é o único modelo ou ponto de vista com o qual eles olham para
o mundo (…) Esse não é um modelo que se aplica à Índia”. A Índia, segundo ele,
não está interessada em fazer parte da Otan Plus, pois deseja manter um grau
maior de flexibilidade geopolítica. “Um dos desafios de um mundo em
transformação”, disse Jaishankar, “é como fazer com que as pessoas aceitem e se
adaptem a essas mudanças”.
Há
duas conclusões importantes tiradas das declarações de Jaishankar. Em primeiro
lugar, o governo indiano, que não se opõe aos Estados Unidos, nem em termos
programáticos como de temperamento, não tem interesse em ser arrastado para um
sistema de blocos liderado pelos EUA (a “construção do tratado da Otan”, como
disse Jaishankar). Em segundo lugar, como muitos governos do Sul Global, ele
reconhece que vivemos em um “mundo em transformação” e que as grandes potências
tradicionais, especialmente os Estados Unidos, precisam “se ajustar a essas
mudanças”.
Em
seu relatório Investment Outlook
2023, o Credit Suisse apontou para
as “fraturas profundas e persistentes” que se abriram na ordem internacional –
outra forma de se referir ao que Jaishankar chamou de “mundo em transformação”.
O Credit Suisse descreve essas “fraturas” de forma precisa: “O Ocidente global
(países desenvolvidos ocidentais e aliados) se afastou do Oriente global
(China, Rússia e aliados) em termos de interesses estratégicos fundamentais,
enquanto o Sul Global (Brasil, Rússia, Índia, China e a maioria dos países em
desenvolvimento) está se reorganizando para buscar seus próprios interesses”.
Vale a pena repetir as palavras finais: “o Sul Global (…) está se reorganizando
para buscar seus próprios interesses”.
Em
meados de abril, o Ministério das Relações Exteriores do Japão divulgou seu Manual
Diplomático 2023 no qual observou que estamos agora no “fim da
era pós-Guerra Fria”. Após o colapso da União Soviética, em 1991, os Estados
Unidos afirmaram sua primazia sobre a ordem internacional e, juntamente com
seus vassalos da Tríade, estabeleceram o que chamaram de “ordem internacional baseada em regras”.
Esse projeto de 30 anos liderado pelos Estados Unidos está agora fracassando,
em parte devido às fraquezas internas dos países da Tríade (incluindo sua
posição enfraquecida na economia global) e em parte devido à ascensão das “locomotivas
do Sul” (lideradas pela China, mas incluindo Brasil,
Índia, Indonésia, México e Nigéria). Nossos cálculos, baseados no FMI
datamappermostram deste ano, apontou que pela primeira vez em
séculos o Produto Interno Bruto dos países do Sul Global ultrapassou o dos
países do Norte Global. A ascensão desses países em desenvolvimento – apesar da
grande desigualdade social que existe neles – produziu uma nova atitude entre
suas classes médias que se reflete na maior confiança de seus governos: eles
não aceitam mais as visões paroquiais dos países da Tríade como verdades
universais e têm um desejo maior de exercer seus próprios interesses nacionais
e regionais.
Foi
essa reafirmação dos interesses nacionais e regionais no Sul Global que
reavivou um conjunto de processos regionais, incluindo a Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos (Celac)
e o processo BRICS (Brasil-Rússia-Índia-China-África do Sul). Em 1º de junho,
os ministros das Relações Exteriores do BRICS se reuniram na Cidade do Cabo
(África do Sul), antes da cúpula entre seus chefes de Estado, que será
realizada em agosto em Joanesburgo. A declaração conjunta que eles emitiram é
instrutiva: em dois momentos alertaram sobre o impacto negativo de “medidas
econômicas coercitivas unilaterais, como sanções, boicotes, embargos e bloqueios”
que “produziram efeitos negativos, principalmente no mundo em desenvolvimento”.
A linguagem dessa declaração representa um sentimento que é compartilhado por
todo o Sul Global. Da Bolívia ao Sri Lanka, esses países, que constituem a
maior parte do mundo, estão fartos do ciclo de dívida-austeridade impulsionado pelo
FMI e das intimidações da Tríade. Eles estão
começando a afirmar suas próprias agendas soberanas.
É
interessante notar que esse renascimento da política soberana não está sendo
impulsionado por um nacionalismo voltado para dentro, mas por um
internacionalismo não alinhado. A declaração dos ministros do BRICS se
concentra no “fortalecimento do multilateralismo e na defesa do direito
internacional, incluindo os propósitos e princípios consagrados na Carta das
Nações Unidas como sua pedra angular indispensável” (aliás, tanto a China
quanto a Rússia fazem parte do Grupo de Amigos em Defesa da Carta das Nações
Unidas). O argumento implícito que está sendo apresentado
aqui é que os Estados da Tríade, liderados pelos EUA, impuseram unilateralmente
sua estreita visão de mundo, baseada nos interesses de suas elites, aos países
do Sul sob o pretexto da “ordem internacional baseada em regras”. Agora,
argumentam os Estados do Sul Global, é hora de voltar à fonte – a Carta da ONU
– e construir uma ordem internacional genuinamente democrática.
A
palavra “não alinhado” tem sido cada vez mais usada para se referir a essa nova
tendência na política internacional. O termo tem sua origem na Conferência dos
Não Alinhados realizada em Belgrado (Iugoslávia) em 1961, que foi construída
sobre as bases estabelecidas na Conferência Asiático-Africana realizada em
Bandung (Indonésia), em 1955. Naquela época, o não alinhamento se referia a
países liderados por movimentos enraizados no projeto profundamente
anticolonial do Terceiro Mundo, que buscavam estabelecer a soberania dos novos Estados
e a dignidade de seus povos. Esse momento de não alinhamento foi aniquilado
pela crise da dívida da década de 1980, que começou com a inadimplência do
México em 1982. O que temos agora não é o retorno do antigo não-alinhamento,
mas o surgimento de uma nova atmosfera política e de uma nova constelação
política que exige um estudo cuidadoso. Por enquanto, podemos dizer que esse
novo não alinhamento está sendo exigido pelos Estados maiores do Sul Global que
não estão interessados em ser subordinados pela agenda da Tríade, mas que ainda
não estabeleceram um projeto próprio – um Projeto do Sul Global, por exemplo.
Em 1931, a poeta e
jornalista jamaicana Una Marson (1905-1965) escreveu There Will Come a Time [Chegará um momento], um poema
de esperança em um futuro “onde o amor e a fraternidade devem ter pleno
domínio”. As pessoas no mundo colonizado, escreveu ela, teriam que travar uma
batalha contínua para alcançar sua liberdade. Não estamos nem perto do fim
dessa luta, mas ainda não estamos na posição de subordinação quase total em que
estávamos durante o auge da primazia da Tríade, que durou de 1991 até agora.
Vale a pena voltar a Marson, que sabia com certeza que um mundo mais justo viria,
mesmo que ela não estivesse viva para testemunhá-lo:
O que importa se somos como pássaros engaiolados
Que batem seus peitos contra as barras de ferro
Até que gotas de sangue caiam, e em canções de partir o coração
Nossas almas passam para Deus? Essas mesmas palavras,
Na angústia cantada, prevalecerá poderosamente.
Não estaremos entre os felizes herdeiros
Dessa grande herança – mas para nós
A gratidão e o elogio deles virão,
E as crianças ainda não nascidas colherão com alegria
O que semeamos em lágrimas. Una Marson (1905-1965), poeta e jornalista
jamaicana
Publicado no Brasil 24/7: 18 de junho de 2023
Fonte: https://www.brasil247.com/blog/o-surgimento-de-um-novo-nao-alinhamento
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O comentário será analisado para eventual publicação no blog