Indústria de carros vende velocidade e potência como sinônimo de sucesso. Por causa disso 33 mil brasileiros morrem todo ano em acidentes com automóveis. É preciso enfrentar o “feitiche do voo” sobre quatro rodas e construir outra visão de mobilidade, que priorize pessoas e não os automóveis
Em São Paulo, segundo o
Detran, 93% das mortes no trânsito são causadas por homens. A
sensibilidade masculina atende ao apelo do glamour da velocidade das fábricas
de automóveis de maneira muito mais expressiva, do que a feminina (deixa-se
convencer mais fácil)
por Sérgio Avelleda na Revista Piauí e Outras
Palavras – Sociedade e Trânsito que
Mata Brasileiras/os
Imagem no site Outras Palavras
Participei da
administração pública da cidade de São Paulo como secretário de Mobilidade entre
2017 e 2018. No rol das atribuições formais do cargo, uma me chamou a atenção
logo que assumi: autorizar ou não o fechamento de ruas para o trânsito de
veículos. Eram muitos os pedidos que chegavam. Fiquei curioso para saber a
origem de tantas solicitações. Descobri que boa parte delas vinha de agências
de publicidade, com o propósito de utilizarem o espaço para a gravação de
filmes de propaganda. Quando um assistente me informou que a maioria dos
pedidos era para gravar comerciais de automóveis, lembrei que não se vê anúncio
de carro (na televisão ou em redes digitais) que tenha trânsito. O veículo
destinado a encantar os consumidores está frequentemente rodando, soberano
(único), por ruas vazias. Publicidade não costuma rimar com realidade – a
pessoa compra o automóvel e quando sai da concessionária para no primeiro de
muitos engarrafamentos que encontra pelo caminho. Penso que esse tipo de
anúncio mereceria uma reprimenda do Conar (Conselho Nacional de
Autorregulamentação Publicitária), uma vez que se assemelha ao que chamam de
“propaganda enganosa”.
Mas, não é apenas
essa falsa realidade que a indústria automobilística utiliza para vender seus
carros-chefes (top’s de linha). Há também o uso da velocidade elevada como
atrativo para a comercialização dos veículos. Atributos como potência, torque
(força) e capacidade de chegar a 100 km/h em um átimo (fração de segundos) são
sempre evidenciados em propagandas de automóveis pelas fábricas. Vende-se carro
para que se corra muito com ele.
Nos anos 1980, uma
poderosa representante americana dessa indústria instalada no país, usava a
imagem de um astro do automobilismo nacional para vender a versão esportiva de
um de seus modelos. O piloto ligava o veículo e dizia: “Quando ouço o motor,
sinto o desempenho, a raça.” Em outro anúncio da mesma montadora, sua picape se
deslocava velocíssima, saltando no solo, enquanto um helicóptero a sobrevoava,
até que o carro dava um cavalo de pau, ao som de uma trilha típica de
blockbuster (campeão de venda) de super-herói. Puxando pela memória, alcanço a
propaganda de uma concorrente daquela fábrica, na qual uma canção dizia que o
coração bate mais alto dentro de um veículo de tal marca, que media forças com
um jatinho. Também me vem à mente o comercial de uma montadora europeia
gabando-se que um de seus automóveis passava de 0 a 100 em 8,2 segundos, e que
sua velocidade final era de 220 km/h. “Os outros não fazem nem sombra”,
concluía a peça publicitária da montadora européia.
Essa mesma
indústria, que reforça o tempo todo o atributo de aceleração, potência e
velocidade máxima de seus produtos, é a grande fomentadora das competições
esportivas entre carros. São elas que ajudam a referenciar o “voo” sobre quatro
rodas como sinônimo de ousadia, habilidade e, acima de tudo, sucesso.
A minha geração, a
de nascidos nos anos 1970, foi embalada pelas vitórias de brasileiros na fórmula
um (F1) nas manhãs ensolaradas – ou chuvosas – de domingo. De fato, o glamour
ao redor das corridas nos contagiava. Queríamos ir ao fliperama gastar nossas
fichas em simuladores de GPS ou passar tardes nos videogames também simulando
velocidade, ultrapassagens, recordes e – imagine – acidentes! Os mais velhos vão se
recordar dos autoramas e das disputas para estabelecer os mais rápidos naquelas
pistas de brinquedo.
Vivemos
bombardeados por diversas mensagens enaltecendo a velocidade como se fosse um
elemento formador do caráter e, especialmente, da masculinidade (aquela de ser
mais homem). As questões de gênero e a violência no trânsito estão intimamente
ligadas a isso.
O discurso do
glamour da velocidade sempre foi muito mais dirigido aos homens do que às mulheres.
Automóveis foram concebidos para homens para serem adquiridos por outros homens
(estereotipo de masculinidade). Um estudo recente mostra que as mulheres são
mais propensas a mortes e ferimentos quando estão dentro dos veículos do que os
homens. Os carros são desenhados para serem mais eficientes na proteção a eles
(motoristas) do que a elas (acompanhantes).
Em
São Paulo, segundo o Detran, 93% das mortes no trânsito são causadas por
homens. A sensibilidade masculina atende ao apelo do glamour da velocidade de
maneira muito mais expressiva do que a feminina (deixa-se convencer mais fácil).
A grande maioria das mulheres não enxerga automóveis como elementos de poder.
São simples instrumentos de transporte (o ir e vir). Homens, inebriados pela
publicidade tóxica e enganosa da indústria de veículos, são induzidos a comprar
carros e a potencializar sua masculinidade através da velocidade e da
agressividade.
Nos dias de hoje,
as redes sociais se tornaram as grandes impulsionadoras do culto à velocidade
(são mais procuradas que a televisão). Uma delas monetiza e permite monetização
por meio da exaltação da velocidade e até de crimes de trânsito – como se fosse
a coisa mais natural do mundo.
Já denunciei
vários vídeos com esse conteúdo. Em um deles, o indivíduo desce a serra vindo
de Campos do Jordão em direção a São Paulo ultrapassando diversos automóveis
irregularmente e em alta velocidade, guiando um veículo de marca alemã. Na Rodovia
Carvalho Pinto, o contumaz criminoso de trânsito ultrapassa os 230 km/h e chega
a disputar um racha com motocicletas. Todas as denúncias que fiz sobre essa
postagem foram ignoradas pela plataforma digital que divulga esse vídeo na
internet.
Ela tem também
diversos vídeos de crimes de trânsito cometidos
na Estrada dos Romeiros (SP), onde há tráfego de ciclistas e pedestres. Em vez
de tomar providências, a plataforma prefere seguir ganhando dinheiro com
publicidade e permitir que os criminosos de trânsito participem dos lucros,
incentivando um comportamento que é a maior causa de mortes entre jovens no
planeta (surreal). Não por coincidência, as empresas desse segmento gastam
fortunas em lobbies na administração pública estadual e principalmente federal,
para evitar a regulação de suas atividades.
O consumo de
cocaína é considerado um ilícito no Brasil. Logo, não esperamos encontrar uma
loja anunciando a comercialização da droga nas esquinas das cidades brasileiras.
Conduzir veículos nas vias públicas nacionais é atividade regulada pelo Código
de Trânsito Brasileiro (CTB). Lá está definido que a velocidade máxima em tais
vias é de 120 km/h. Ou seja, do mesmo modo que consumir cocaína é um ilícito,
guiar acima desse limite também é um ilícito. Contudo, não nos espantamos com o
fato de as concessionárias venderem produtos que podem facilmente ultrapassar
os 120 km/h, atingindo velocidades acima de 200 km/h. Mais do que isso,
naturalizamos que comerciais desses carros enalteçam (super valorizem) essa
possibilidade como elemento sedutor para vendas. Claro que toda vida é valiosa,
porém vale observar que a cocaína mata menos de 100 pessoas por ano no Brasil,
contra 33 mil mortes no trânsito. Objetivamente: qual
droga é mais perigosa? Não é intenção comparar carro com cocaína, mas apenas
observar nossa preocupação extremada e correta com a droga e nosso conformismo
com algo muito mais letal, a violência do
trânsito devido ao excesso de velocidade.
Muitas medidas
poderiam ser adotadas para melhorar a percepção quanto ao risco da velocidade –
e também para conter a exposição a esse risco.
Desde cedo, nas
escolas, as aulas de ciências deveriam demonstrar às crianças que velocidade é
o maior risco no trânsito e nas demais atividades humanas. Aulas de física
deveriam destacar o perigo ao qual um corpo é submetido quando exposto à
velocidade.
Na formação de
condutores, a velocidade deveria ser apresentada como a maior responsável por
lesões e mortes. Poucos motoristas sabem que um pedestre tem quase 90% de
chances de sobreviver quando atingido por um carro a 30 km/h. E que essa chance
se reduz à medida em que aumenta a velocidade do veículo, caindo para 60%
quando o carro está sendo conduzido a 50 km/h! Ou
seja, a sensação de uma pequena variação de velocidade para quem está dentro do
automóvel elimina quase integralmente a possibilidade de sobrevivência de um
pedestre (ou mesmo de um ciclista ou motociclista).
Deveria haver
inspiração na bem-sucedida política adotada na publicidade de cigarros. Há mais
de vinte anos as embalagens desses produtos divulgam fotos chocantes que
alertam os usuários sobre os riscos do fumo, que convenceu muitas pessoas a
deixarem de fumar e está salvando vidas. Semelhante medida deveria ser adotada
no caso dos carros. Junto a qualquer peça de propaganda de carros poderiam vir
imagens de sinistros de trânsito. Essa seria uma forma de a indústria
contribuir para diminuir o uso indevido dos veículos devido ao excesso de velocidade,
algo que provoca tantas mortes e severas sequelas por causa da publicidade das
fábricas de automóveis e o empoderamento absurdo dos motoristas nas propagandas.
Na gestão como
secretário na cidade de São Paulo, determinei que todos os ônibus urbanos,
vinculados à prestação do serviço de transporte público de passageiros,
tivessem suas velocidades limitadas a 50 km/h. Em menos de sessenta dias, mais
de 14 mil ônibus foram parametrizados (regulados) para cortar a aceleração em
caso de ultrapassagem daquele limite. Bastaria uma simples resolução do
Conselho Nacional de Trânsito (Contran) para determinar a parametrização
(regulação) da velocidade máxima dos veículos a serem vendidos no país
destinados ao trânsito em vias públicas. Naturalmente, qualquer um poderia
comprar um carro para alcançar qualquer velocidade desejada, desde que somente
em pistas fechadas (semelhantes a pista de corrida), sem risco a pedestres,
ciclistas ou motociclistas. Trata-se, porém, de uma discussão que nem sequer é
cogitada nos órgãos de trânsito do Brasil. Parece óbvio: nenhum automóvel apto a
ser licenciado para trafegar em vias públicas deveria estar habilitado a
ultrapassar o limite de velocidade máxima previsto no Código de Trânsito
Brasileiro. Do mesmo modo, o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação
Publicitária) deveria ter editado normas para a publicidade de veículos,
proibindo qualquer alusão a potência, velocidade, manobras arriscadas ou
quaisquer outros elementos que induzam a comportamentos ilícitos e perigosos no
trânsito.
Não há dúvida de
que medidas assim exigem coragem da administração pública federal para
enfrentar uma indústria gigantesca, que, como foi descrito anteriormente,
sempre fez da velocidade um elemento de atração para a venda dos seus produtos.
Também não será pouca a resistência de toda uma geração de motoristas alimentada
pelo glamour da velocidade. Mas,
diante da perda de vidas e sequelas as vítimas no trânsito, a tragédia que acontece
cotidianamente no Brasil, qual a alternativa para solucionar esse genocídio?
Vejo muitas
montadoras de automóveis fazendo propagandas sublinhando sua responsabilidade
social. Por que não se reúnem e decidem, em conjunto, limitar a velocidade de
seus produtos, protegendo e salvando milhares de vidas? Até quando o discurso
que se apresenta enaltecido e empoderado conviverá com a realidade da
comercialização de veículos, que são verdadeiras máquinas de matar?
Já passou da hora
de a indústria automobilística e de os governos em todos os níveis de
administração pública se conscientizar de que a velocidade é o principal
elemento causador das mortes e sequelas no trânsito. É preciso que eles ajam
imediatamente, para acabar com a rotina de carnificina nas vias públicas – que
rouba o futuro das vítimas, devasta familiares e envergonha o país.
Publicado
em Outras Palavras: 21/07/2023
Fonte:
https://outraspalavras.net/outrasmidias/o-glamour-da-velocidade-que-vende-e-mata/
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