Meninas de 11 anos não são mães e estrupadores não são pais
“PL da Gravidez Infantil”: Câmara de Deputados ultrapassa limites em ataque aos direitos das mulheres
por João Alves em A Nova Democracia – Sociedade e Congresso Feudal Complica Brasil
Manifestação de mulheres contra o PL do estupro
Ao aprovar, em 12 de junho de 2024, a urgência do Projeto de Lei n. 1904/24 em 23 segundos, sem sequer anunciar o número e ementa do requerimento, a Câmara de Deputados presidida por Arthur Lira ultrapassou limites em ataques aos direitos das mulheres mais pobres. O PL é de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcanti, do Partido Liberal do RJ e, se aprovado, pode condenar até 20 anos de prisão mulheres que realizarem aborto após 22 semanas de gestação. Pena maior que o crime de estupro (que pode chegar a 12 anos em casos de estupro de menor).
Insistindo no ataque, Arthur Lira afirmou no dia 13 de junho que vai indicar uma “mulher moderada” para ser a relatora. O PL 1904/24 foi entregue na Câmara a menos de um mês e já foi aprovado por conta do auxílio de Arthur Lira. Imediatamente após a aprovação, surgiram nas redes sociais as primeiras críticas contra a “PL do Estuprador”. Indignados com a proposta, organizações populares convocaram atos para a noite de 13 de junho e também para os próximos dias.
Atualmente, o Código Penal não respeita o direito das mulheres ao corpo, tipificando o aborto como um crime com pena de um a três anos de prisão. Porém, nos casos de estupro, risco de materno e em casos de anencefalia, o aborto não é considerado crime. Ocorre que a legislação brasileira não obriga que estados e municípios ofereçam o serviço de aborto em clínicas e hospitais públicos. É por conta disso que muitas meninas e mulheres tardam em conseguir acesso aos centros médicos que realizam o procedimento legal.
O que diz o Projeto de Lei?
O interesse do PL 1904/24 não é discutir legislação, nem mesmo discutir saúde pública. A análise do texto traz comprovações importantes:
Na página 2 consta a principal mudança no art. 5º, art. 128 do Decreto-lei nº 2848 de 7 de setembro de 1940 – Código Penal. “Parágrafo único. Se a gravidez resulta de estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, não se aplicará a excludente de punibilidade prevista neste artigo”.
Para fundamentar a mudança, Sóstenes afirma que “os serviços de aborto em casos de estupro foram iniciados no Brasil, em 1989” sublinhando que se deu “por iniciativa da militância a favor do aborto”, citando a gestão de Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo.
Os casos concretos de aborto após 22 semanas de gestação são, todos, de crianças de 10 e 11 anos. O que, por si só, já seria suficiente para comprovar que há um direito ignorado pela justiça brasileira – o de garantir que mulheres (neste caso, meninas) vítimas de estupro tenham acesso ao aborto legal.
O primeiro caso é de um aborto legal feito em uma criança de 10 anos vítima de estupro que estava com quatro meses e meio. A família da jovem tentava, em vão, desde o início acesso ao procedimento legal. O segundo caso é de agosto de 2020, quando uma menina, também de 10 anos, precisou sair de seu estado, Espírito Santo, para ir até a capital de Pernambuco. Lá, os médicos se recusaram a realizar o procedimento e, após insistência da família, um outro médico cumpriu e realizou o aborto legal. O terceiro caso é o que mais repercutiu no período recente: uma menina de 11 anos de Florianópolis precisou comparecer a uma audiência em que a juíza perguntou se ela “aguentava seguir com a gravidez por mais duas ou três semanas para que o feto sobrevivesse”. E, como se não bastasse, como a vítima do estupro poderia ser novamente alvo de seu algoz, a juíza decidiu enviar a menina para uma casa de acolhimento onde, distante da família, grávida, precisou esperar até que, finalmente, fosse realizado.
Não há, no texto do PL, nenhuma menção à desagregação da instituição “família” sob as precárias condições que vivem os pobres no Brasil que naturaliza, diariamente, estupros de menores de idade. Ou mesmo da insuficiência da saúde pública em fazer cumprir aquilo que o Código Penal, desde 1940, prevê.
A grande razão de ser feito o PL está exposta na crítica que faz ao voto de Rosa Weber na ADPF 442 sobre des-penalização do aborto. Ao tratar dos direitos fundamentais dos brasileiros, a ministra do STF afirma que “a Constituição define como brasileiros os nascidos no Brasil … (sic). Aos já nascidos, então, é atribuída a titularidade dos direitos fundamentais.” Sóstenes sustenta que o “direito à vida” está acima de tudo, sendo as bases da sociedade em que vivemos. Ele, finalmente, deixa a máscara cair e afirma que “quando as mulheres tiverem conquistado este direito [ao aborto seguro], já teremos iniciado outro novo processo que irá se estender para muito além da questão do aborto” (!!!). E, na última frase, afirma que “o que, no princípio, parecia ser apenas a defesa ao direito ao aborto em determinadas circunstâncias, termina se revelando como um processo que conduz à des-construção dos fundamentos do Estado de Direito, da liberdade e da civilização moderna”.
O único interesse, aqui, é mostrar a pauta ideológica da extrema-direita obscurantista e que flerta com o conspiracionismo para atacar brutal e diretamente o direito das mulheres mais pobres. O aborto é ilegal para as mulheres pobres, somente. As ricas seguirão tendo acesso às clínicas clandestinas de primeira qualidade que existem em bairros nobres das grandes cidades brasileiras, ou então irão para países onde o aborto é legalizado. Além de ter acesso a acompanhamento psicológico, clínico e pós-operatório. Toda os péssimos políticos de Brasília sabem disso. E sua escolha atingi profundamente as mulheres mais pobres.
Outros ataques às mulheres pobres
O deputado Jeferson Campos, também do PL 1904/24, defendeu a aprovação da urgência, citando que a medida vem de encontro com uma norma do Conselho Federal de Medicina. Ele se refere a outro grave ataque aos direitos das mulheres, que lançou uma resolução –possuindo caráter de orientação aos médicos – de que não utilizem a técnica de assistolia fetal (que consiste em utilizar medicamentos para interromper os batimentos cardíacos do feto antes de retirá-lo do útero) em casos de gestação acima de 22 semanas.
Outros ataques mais recentes em curso são o PL 232/21 de Carla Zambelli que pretende “tornar obrigatório a apresentação de Boletim de Ocorrência com exame de corpo de delito positivo que ateste veracidade do estupro para realização de aborto decorrente de violência sexual”. Mesmo sem a aprovação desse PL, as dificuldades para uma mulher ter acesso ao aborto legal em caso de estupro são imensas e, muitas vezes, não ter em mãos o B.O. já um impeditivo. E nas “delegacias das mulheres” as mulheres pobres são tratadas de forma humilhante e vexatória. Trata-se da continuidade da violência e da violação, desta vez por uma administração pública despreparada para lidar com as pessoas pobres.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou em 2022 o maior número de estupros da série histórica iniciada em 2011: 74.930 vítimas, um crescimento de 8,2% em relação a 2021. Mais de 60% das vítimas de violência sexual têm menos de 14 anos. Ainda que a lei brasileira permite o aborto legal nestes casos, é recorrente os casos em que juízes adiam a decisão até após o limite, obrigando, na prática, as meninas a terem o filho.
Publicado em A Nova Democracia: 14 de junho de 2024
Fonte: https://anovademocracia.com.br/pl-do-gravidez-infantil-camara-de-deputados-ultrapassa-limites-em-ataque-aos-direitos-das-mulheres/
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