" Liberdade de informação
tem a ver com o cidadão, não com o dono do jornal", Roberto Savio, jornalista italiano.
"O Brasil está muito atrasado nesta matéria. Ao oligopólio econômico
corresponde um oligopólio de opiniões, de análise. Então, você não pode
ter uma efetiva liberdade com restrições econômicas tão grandes à
expressão do pensamento, das diferentes correntes, dos diferentes
setores, dos diferentes grupos, dos mais variados. A regulação da mídia é
um passo fundamental para a democratização da sociedade brasileira",
salienta o professor Armando Boito Junior da Unicamp de São Paulo.
Jornalistas disputam espaço em entrevista coletiva (Imagem: Getty Images). Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/blogs/pordentrodasprofissoes/tag/jornalismo/
Os debates sobre a necessidade
de regulação da mídia no Brasil já vêm há muito tempo. Estados Unidos,
França, Reino Unido, Alemanha, Canadá, Espanha e até Argentina, mesmo
contra a força do grande conglomerado de mídia que significava o Clarín, já passaram pelo processo. No Brasil,
quando se fala no assunto, ainda se remete, na maioria dos debates, à
ideia de que haveria um objetivo escondido de controlar a imprensa e
tolher a liberdade de expressão. A ação, contudo, se baseia em questões
legais para garantir justamente o contrário, destacam especialistas.
Como se trata também, todavia, de combater monopólios e oligopólios de
mídia, natural que o debate seja desvirtuado, completam.
Antes
mesmo do anúncio dos novos ministros do segundo mandato da presidente
Dilma Rousseff, a grande imprensa noticiava que Ricardo Berzoini seria
colocado no Ministério das Comunicações para tocar o projeto de
regulação da mídia. A nomeação realmente veio e, logo no início de
janeiro, o novo ministro da pasta declarou que o governo iria apresentar
proposta de regulação no segundo mandato da presidente.
"Já
existem dispositivos, premissas e princípios. É preciso discutir se
está bom, ou não está bom. Claro que nós temos uma conjuntura tensa,
difícil, mas vamos saber conduzir com tranquilidade.
Não temos uma crise institucional. Temos é uma tentativa de fomentar
uma crise política", disse Berzoini à Rádio Brasil Atual no início deste
mês.
Para a advogada Veridiana Alimonti, do Conselho Diretor
do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, por mais que
dificuldades surjam para que o projeto vá à frente, é importante que o
assunto não saia de pauta. Ela explica do que se trataria uma regulação
econômica no setor, que seria a implementada no país conforme
sinalizações do governo, e ainda o que poderia vir a ser uma regulação
de conteúdo, que poderia ser descartada por aqui, mas que ainda assim
seria importante, ela frisa.
"A situação (política) é
complicada, prevê que essa pauta mais uma vez sofra um revés, como já
sofreu no primeiro mandato do governo Dilma. No final do governo Lula,
já tinha um projeto para ser discutido, que a gente não chegou a
conhecer, mas já tinha uma pauta mais elaborada que não foi para frente,
e agora essa situação pode dar mais força para aqueles que sempre estão
presentes para dizer que isso não deve ser feito. Mas não sou eu que
vou descartar a pauta, cabe pressionar para que ela continue na agenda",
destaca.
Veridiana salienta que o discuso de que a regulação dos
meios de comunicação é uma censura, na verdade, é uma inversão do seu
real objetivo, pois é algo que faz parte, principalmente, da
Constituição Federal, mas que ainda não se reflete nas normas
infraconstitucionais (norma, preceito, regramento, regulamento e lei
hierarquicamente abaixo da Constituição Federal) de uma maneira
detalhada.
De acordo com a advogada, o Código Brasileiro de
Telecomunicações, de 1962, que chegou a receber alterações como a de
1967 que trata de limites de propriedade, tem limitações pequenas sobre
concentração de empresas nesse mercado. Limita apenas quantas emissoras
de rádio ou de televisão uma mesma empresa ou uma mesma pessoa pode ter,
não fala em grupo empresarial. Não garante, ainda, um controle da
existência de propriedade cruzada, que é quando uma empresa tem uma
determinada quantidade de diferentes meios de comunicação. A
Constituição também fala da importância de produção independente e
regionalização da produção, mas não há detalhes estabelecendo
porcentagem ou critérios.
"É interessante dizer que, quando a
gente fala da regulação dos meios de comunicação, a gente está tratando,
principalmente, de rádio e televisão, que são serviços públicos, de
acordo com a Constituição Federal e com a regulação infraconstitucional.
É uma concessão de serviço público que deve atender a um interesse
público, tanto o rádio quanto a televisão."
A
Constituição Federal veda monopólio e oligopólio nos meios de
comunicação social, e o artigo que estabelece isto é justamente o que
garante a liberdade de expressão na comunicação social. "A estrutura
jurídica do estado democrático brasileiro reconhece que a liberdade de
expressão só consegue ser garantida na comunicação social se não houver
oligopólio e monopólio. Como a gente combate oligopólio e monopólio? Com
regulação. O mercado sozinho, embora alguns acreditem que sim, não
combate a concentração. Ele, muitas vezes, tende, sim, a se concentrar,
se não houver mecanismos de controle em relação a isso."
A
regulação da mídia, então, deve funcionar tanto para estabelecer limite
da propriedade no mesmo meio de comunicação, cadeia de produção ou
diferentes meios, o que já é previsto na legislação de outros países
como Estados Unidos, na Europa e na América Latina, e ainda estabelecer
critérios dentro da própria programação de uma emissora, explica
Veridiana. Não é só garantir que existam diferentes agentes prestando
serviço, mas também que na prestação do serviço existam regras para
garantir a diversidade dessa programação ou, pelo menos, estimular essa
diversidade.
Outra questão que uma regulação econômica da mídia
trataria seria a regionalização da produção. Hoje, no país, grandes
emissoras -- Globo, SBT, Band, Record -- têm concessões só para alguns
municípios, mas se organizam em redes pelo Brasil com afiliadas, que são
outras emissoras, com outros proprietários. Embora sejam emissoras
regionais, elas acabam passando praticamente toda a programação das
grandes. "A regionalização da produção é também uma maneira de fazer com
que a programação da própria emissora seja mais diversa, mostre outras
pessoas, produtores, roteiristas, diretores."
Veridiana aponta
também a questão da complementaridade dos sistemas, que também tem laços
com a Constituição Federal. Esta diz que a radiodifusão tem de observar
o princípio da complementaridade de sistemas, entre sistema privado,
estatal e público. O estatal seriam os canais de poder público que falam
das atividades do poder público, como a TV Justiça e a TV Senado, que
funcionam como uma prestação de contas da atividade do poder público. O
sistema privado, por sua vez, está muito ligado ao sistema comercial,
que é o que se tem no Brasil como hegemônico, e o sistema público tem
relação com emissoras educativas ligadas à pastas do governo como
secretarias de cultura e educação, mas que não fazem prestação de contas
do Estado, têm um caráter diferenciado de programação.
"O ideal
seria que as outorgas fossem divididas entre os três (sistemas), mas o
que a gente vê é a predominância das três partes", aponta a advogada,
falando ainda da necessidade de superar desafios do sistema público de
comunicação brasileiro, que foi estruturado com a criação da Empresa
Brasil de Comunicação, mas que precisa ainda se consolidar em termos de
financiamento e autonomia.
Além desses pontos referentes à
regulação econômica, Veridiana destaca a importância da regulação de
conteúdo, que vem sendo deixada um pouco de lado e que não deveria ser
encarada como censura. "A regulação de conteúdo está longe de ser
censura, a gente já tem regulação de conteúdo na nossa legislação atual,
já tem horário para programas educativos, publicidade. Regulação de
conteúdo não é avaliar previamente o que está sendo transmitido e
decidir se vai ao ar ou não, claro que não. É ter mecanismos para
responsabilizar as emissoras e agentes específicos caso haja alguma
ofensa à legislação, o que, claro, vai se pautar em critérios
democráticos. É também um desvirtuamento do debate dizer que regulação
de conteúdo é censura."
Armando Boito Junior, professor do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, também é favorável
à regulação da mídia, por ser a única maneira de garantir uma efetiva
liberdade de expressão a um regime democrático. O que o Brasil tem hoje,
acredita o professor, é uma exagerada concentração dos meios de
comunicação, onde o mesmo grupo detém diferentes tipos de meios, e
transmite, publica e vende.
"O
Brasil está muito atrasado nesta matéria. Ao oligopólio econômico
corresponde um oligopólio de opiniões, de análise. Então, você não pode
ter uma efetiva liberdade com restrições econômicas tão grandes à
expressão do pensamento, das diferentes correntes, dos diferentes
setores, dos diferentes grupos, dos mais variados. A regulação da mídia é
um passo fundamental para a democratização da sociedade brasileira",
salienta o professor.
Para ele, os grupos que tentam sustentar a
tese de que a regulação econômica da mídia é contrária à liberdade de
expressão são justamente os grandes meios de comunicação que, por
intermédio do poder econômico e dessa situação de ausência de regulação,
têm condições de expressar seus pensamentos e opiniões em todos os
grandes meios, gerando uma espécie de pensamento único.
"Por exemplo, O Globo, Estadão e Folha,
os estudiosos que acompanham essas publicações costumam evidenciar a
uniformidade das manchetes. São sempre as mesmas, não só dando o fato
mas também emitindo uma opinião, e esse fato e essa opinião são sempre
os mesmos, nos três principais jornais do país. Será que há uma
unanimidade no Brasil sobre quais são os principais fatos a serem
destacados numa manchete, há uma unanimidade no Brasil sobre como
avaliar esses fatos? Eu creio que não", alerta.
Exemplos do vizinho e além
A advogada Veridiana
Alimonti destaca o exemplo da Argentina, que conseguiu, inclusive,
decisões favoráveis no tribunal diante de ofensivas de emissoras contra a
regulação, principalmente do grupo Clarín. Um exemplo é a
divisão do espectro, entre sistema estatal, público e privado. A
Argentina dividiu em três, para que as concessões levem em consideração
de forma igual esses três sistemas. Outro ponto importante foi
estabelecer a criação, em relação à regulação de conteúdo, de uma figura
chamada defensor do público, que seria quem recebe e dá andamento a
denúncias em relação à programação e provoca também a discussão em
relação a esta. Além de outros limites de concentração de propriedade,
tanto nacionais quanto locais.
Na França, existem limites para que
um mesmo grupo não tenha uma emissora de rádio, uma emissora de
televisão e um jornal num mesmo município, por exemplo. A legislação
americana, durante muito tempo, foi bastante restritiva também com
relação à concentração de propriedade dos meios de comunicação. Na
década de 1990, houve uma liberalização e o país passou a discutir
alguns critérios, mas houve limites que proibiam, por exemplo, que uma
empresa tivesse uma emissora de televisão no município e um jornal
também, destaca Veridiana.
"As organizações ao redor do mundo
estabelecem diferentes mecanismos de controle do poder econômico e de
comunicação de grupos empresariais. A gente tem que se inspirar nisso
para aprofundar a nossa democracia, e não ameaçá-la. A regulação
econômica dos meios de comunicação aprofunda a democracia brasileira, ao
trazer mais vozes, ao trabalhar melhor essas concessões, e não o
contrário", conclui a advogada.
Fórum na Tunísia
A
regulação dos meios de comunicação será um dos temas da Carta da Mídia
Livre, principal documento do Fórum Mundial de Mídia Livre que acontece
na Universidade El Manaer, em Túnis, capital da Tunísia, entre os dias
22 e 28 de março.
Bia Barbosa, coordenadora do Intervozes, falou durante o evento ao Portal EBC sobre
a importância de que esta carta seja utilizada para reivindicar um novo
marco regulatório para as comunicações no Brasil. "Nós estamos no meio
da luta por uma nova legislação das comunicações. Essa reivindicação,
sem dúvida, poderá aproveitar a força desse encontro internacional."
Para o italiano Roberto Savio, fundador e presidente emérito da Inter Press Service,
agência internacional de jornalistas colaborativa, a regulação dos
meios é fundamental para criar um sistema mais justo de informação, em
que o cidadão seja parte do processo.
" Liberdade de informação
tem a ver com o cidadão, não com o dono do jornal. Os donos dos meios
falam da liberdade da informação para manterem a liberdade de serem
donos do meio de informação", disse a EBC.
http://www.jb.com.br/pais/noticias/2015/03/24/regulacao-da-midia-aguca-democracia-nao-o-contrario-alertam-especialistas/
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