Foto - DAVI RIBEIRO
Por Thais Paiva - Sociedade e Liberdade
“A criança é estimulada a compreender outros pontos de vista, descentrar de sua perspectiva, compreender uma segunda e, em geral, construir uma terceira perspectiva que articule as várias envolvidas no embate”, explica. Isso permite um pensamento mais amplo e flexível, capaz de questionar e de produzir respostas, ao invés de apenas obedecer e executar o que outro determina. “Em uma escola democrática, a obediência - intelectual e moral – se dá por compromisso, por responsabilidade, no sentido dado pela participação do sujeito na decisão. Não é uma obediência cega”, conclui a profa. Ligia M. L. de Aquino.
Uma frase escrita a lápis pelas mãos de alguém recém-alfabetizado chama
a atenção de quem passa pelo mural de recados do pátio central da
Escola da Prefeitura de Guarulhos (EPG) Manuel Bandeira, localizada na
região metropolitana de São Paulo. “Podemos traser liginhas de
elástico”, lê-se em um cartaz que leva o título “Precisamos conversar”.
Se o domínio da ortografia revela-se incerto, o mesmo não se pode dizer
das intenções dos autores. “Eles querem mais elastiquinhos para fazer de
pulseira, sabe?”, explica a diretora Solange Turgante.
A demanda é a primeira de uma lista que deve se avolumar com o passar
dos dias e que será debatida na próxima assembleia escolar – reunião de
alunos, professores, gestores e funcionários, de onde saem as decisões
que viram regra para toda a escola. “Do cartaz, surge a maioria das
pautas que debatemos depois juntos para chegar a um consenso. Por
exemplo, se alguém reclama ali que tem muito papel higiênico jogado no
chão do banheiro, na próxima reunião nós sentamos e discutimos isso para
ver o que está acontecendo e o que pode ser feito”, conta a diretora.
Solange chegou à direção da escola em 2013 e, inspirada por projetos
como o da Escola da Ponte, Emef Amorim Lima e Projeto Âncora, veio
decidida a criar uma escola democrática. Logo percebeu que o objetivo só
seria alcançado se houvesse a ampliação da participação dos alunos e
pais nas decisões da escola. Foi assim que debater e reivindicar se
tornaram palavras-chave da rotina da Manuel Bandeira, que atende alunos
da Educação Infantil e do Ensino Fundamental I.
Além das assembleias-gerais, a escola organiza, uma vez por bimestre, o
Conselhinho, um colegiado formado por representantes das turmas,
eleitos pelos próprios colegas, que levam as decisões de cada classe
sobre determinada pauta para os gestores. “A ideia é que as crianças
tivessem mais autonomia e fossem protagonistas de seu estudo,
aprendizagem”, conta. As pautas debatidas abrangem desde o material
adquirido pela escola até as atividades pedagógicas a serem realizadas.
Um modelo que se aplica a todas as turmas, do Maternal ao 5º ano.
A pouca idade dos alunos, longe de ser um empecilho, foi encarada como
propícia para trabalhar a representatividade e outros valores
democráticos. “Tem muita gente que diz ‘como assim, eles, tão pequenos,
vão criar as próprias regras?’ Mas a verdade é que quando são eles que
criam, acabam obedecendo mais, porque partiu do comprometimento deles”,
diz Solange. Quando a turma não consegue chegar ao consenso, o conflito
também é levado para a reunião. “Eles contam que metade da turma quer
isso e a outra metade aquilo, e dialogando a gente tenta encontrar uma
solução.” Já foram decididas dessa maneira a aquisição dos brinquedos do
parque, as barracas que iria ter na festa junina e até mesmo o modelo
de avaliações.
“No ano passado, eu fui escolhido representante”, conta Maykon Reynan
Fernandes Cavalcanti, de 10 anos, sem conseguir esconder o orgulho.
“Então eu perguntava para todo mundo da sala o que eles queriam
melhorar, quais eram as sugestões ou que queriam aplaudir. Aí, anotava
tudo e levava para o conselho”, explica o menino, que ainda não se
decidiu se vai se candidatar para a vaga esse ano. “Eu gostava, era bem
legal, mas também dava trabalho. Tudo que acontecia de errado meus
colegas chamavam ‘Maykonnn, está acontecendo isso e isso’”, lembra.
Lincoln Dias Felix, também de 10 anos, diz gostar do novo modelo
baseado na representatividade por ser mais prático e resolver as
questões de forma mais direta. Para ele, é mais simples localizar e
falar com o representante de sala do que com os gestores. “Teve um mês
que a gente falou para o representante para ver se nós podíamos sair da
sala sozinho para ir no banheiro. Aí teve a plaquinha de ocupado e
livre. Quando a pessoa ia no banheiro a gente virava a plaquinha e saia
sem precisar pedir para o professor”, conta. Para o professor Rodrigo de
Mendonça Emidio, é esse tipo de atitude que pretende ser estimulado. “A
ideia é que eles sejam preparados para enfrentar o mundo. A gente
precisa formar pessoas que possam tomar suas próprias decisões e gerir
sua própria vida. Então, nesse sentido, essa maneira dá muita
autonomia.”
Professora de Artes na escola, Jaqueline Oliveira lembra do desafio
inicial que foi implementar a gestão democrática. “Mexer na sua prática
sempre causa uma certa insegurança, instabilidade. Mas eu acho muito
válida qualquer proposta que coloque em xeque aquilo já engessado”. Da
maneira como as coisas vêm acontecendo, diz, já são percebidos muitos
frutos, principalmente, no sentido do diálogo. “A gente vê crianças
trazendo coisas que afligem seu universo e que, para nós, adultos,
parecem tantas vezes banais e não percebemos. E conversar sobre aquilo
torna tudo mais leve.”
Pedagogia da escuta
Mas é possível ter uma escola mais democrática atendendo alunos de 0 a 3
anos? O CEI Suzana Campos Tauil, localizado na zona sul da cidade de
São Paulo, é prova que sim. “Apesar de nós não termos a participação
direta da criança, por conta da idade, nós temos a escuta da voz da
criança. A gente leva em conta que todas têm saberes e, mesmo que não
falem, elas nos mostram de diversas formas o que elas querem e o que
precisam”, explica a diretora Márcia de Castro.
Para isso, a instituição desenvolve atividades e estratégias que
possibilitem esta percepção, desde com os bebês até os mais velhos. “Por
exemplo, procuramos comprar os brinquedos que as crianças gostam. Ontem
mesmo veio uma criança aqui e ficou brincando com esse segura-porta em
formato de tartaruga da minha sala. Aí pensei: por que não comprar
vários desses segura-portas para eles brincarem? Eles gostam, estão me
dizendo isso. Então trabalhamos com essa escuta sensível em cima do que
eles nos mostram”, explica Márcia.
Há também rodas de conversa, um exercício de ouvir o outro, dar
opiniões e contar casos. “É tão interessante porque eles trazem
histórias e mais histórias. Então, às vezes, a gente aproveita a roda e
pergunta ‘o que vocês estão precisando? o que a gente pode comprar?’”,
conta a diretora. Foi assim que a equipe descobriu que os pequenos
queriam os pratos e formas de alumínio, usados para brincar nos tanques
de areia, também nos espaços internos.
Toda esta autonomia dada aos pequenos, acompanhada da percepção de que o
espaço pertence a eles, tem se traduzido em uma série de benefícios
como, por exemplo, a capacidade revelada de fazer a leitura de papéis
sociais dentro da escola. “Eles sabem para quem pedir tal coisa,
percebem os movimentos que ocorrem aqui dentro. As crianças nesta idade
são muito capazes. Por isso, vejo que é desde a primeira infância que
construímos a democracia e nas pequenas coisas. Se você não as escuta,
perde esse primeiro exercício de interação com o outro”, diz.
Para Ligia Maria Leão de Aquino, professora da Faculdade de Educação e
do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj), experiências como estas têm o potencial de
desenvolver nos pequenos princípios e práticas solidárias. Além disso,
do ponto de vista cognitivo, possibilitam a apreensão da capacidade de
argumentação, debate e negociação, que pode estar presente desde
situações cotidianas como escolha e partilha de brinquedos e espaços.
http://www.cartafundamental.com.br/single/show/375
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O comentário será analisado para eventual publicação no blog