“MP e Judiciário terão que ser passados a limpo. Não podemos mais fazer o que a gente fez”, quando existe uma constituição e uma sociedade
Membro
do Ministério Público Federal desde 1987, subprocurador da República e
ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff durante dois meses,
Eugênio Aragão é hoje um dos mais duros críticos dos procedimentos
adotados pela Operação Lava Jato que, em vários casos, ultrapassaram as
fronteiras da legalidade, como foi o caso da escuta da presidenta da
República autorizada e divulgada para a imprensa pelo juiz Sérgio Moro.
Em entrevista ao Sul21,
Eugênio Aragão define a Lava Jato como “uma das operações mais
tortuosas da história do Ministério Público. “A gente sente claramente
que os alvos são escolhidos. Há delações claras em relação a outros
atores que não pertencem ao grupo do alvo escolhido e que simplesmente
não são nem incomodados. Em relação aos alvos, a operação chega a ser
perversa e contra a dignidade da pessoa humana”, critica.
Para
Eugênio Aragão, o Brasil vive uma onda de fascismo maior talvez que a
vivida no período da ditadura militar e o Judiciário e o Ministério
Público tem responsabilidade por isso: “O Judiciário tem um problema
muito sério: é o poder mais opaco de todos, não tem transparência
nenhuma e é muito alienado quanto ao déficit de acesso à Justiça que
existe no Brasil. Parece que vive em outro mundo”. O ex-ministro
acredita que foram cometidos graves erros no recrutamento de atores
importantes nas instituições do Judiciário. “A maioria dos ministros do
STF têm uma dificuldade muito grande de enfrentar a opinião pública”,
exemplifica.
Aragão
critica o discurso que afirma que tudo está podre, tudo está corrupto,
assinalando que esse é, historicamente, o discurso de todo governo
fascista. E reafirma suas críticas ao juiz Sérgio Moro, dizendo que ele
está ultrapassando os limites do Direito Penal. “É uma volta às
Ordenações Filipinas, na medida em que expõe as pessoas como troféus do
Estado, fazendo-as circular pelas ruas com baraços e pregão para que
todo mundo possa jogar tomates e ovos podres em cima delas. Isso é o que
ocorria na Idade Média”.
Sul21: Como o senhor definiria o momento político e social que o Brasil está vivendo hoje?
Eugênio Aragão:
Nós estamos sentados sobre os escombros daquilo que foi nosso sonho de
construir um estado democrático de direito inclusivo, socialmente justo e
solidário. Temos que pensar com toda a seriedade as causas disso que
aconteceu e não nos perdermos apenas na denúncia do golpe, que de fato
ocorreu. Na última semana, o presidente Temer confessou com todas as
letras que o afastamento da presidenta Dilma não se deu por razões de
crime de responsabilidade, mas sim para forçar uma mudança de programa
de governo. Essa declaração é de um caradurismo enorme, pois a
presidenta Dilma foi eleita em uma campanha da qual ele fez parte. Ele
não pode querer derrubar a presidente para impor um novo programa que
nem diz respeito aquilo que a maioria dos eleitores aprovou.
Não
se trata de uma questão de ter simpatia ou não por Dilma, mas sim de
ter consciência e entender a seriedade do que está por vir aí. Parece
que a maioria da população brasileira está num estado de torpor e de
estupefação em função da rapidez dos acontecimentos, e não está
entendendo direito o que aconteceu e está acontecendo. Penso que é muito
importante fazermos essa reflexão sobre onde erramos, para permitir que
essas pessoas que hoje estão no poder assaltassem a democracia do jeito
que assaltaram.
Sul21: O senhor já tem algumas hipóteses acerca da natureza desses erros?
Eugênio Aragão:
Acredito que há um leque de erros que até são normais. Quem está
governando, principalmente quando governa sob forte pressão, está
olhando para a sobrevivência diária e, muitas vezes, acaba perdendo a
noção do conjunto de uma crise desse tamanho. Acho que, entre outras
coisas, houve escolhas erradas de pessoal e uma articulação muito falha
com o parlamento. Acredito também que poderíamos ter feito muito mais
para atender os movimentos sociais. Houve muita decepção por parte de
alguns desses movimentos, como o movimento dos sem teto. Eles assistiram
durante as obras da Copa e das Olimpíadas uma verdadeira tragédia de
retirada de bairros inteiros de população de baixa renda. Esse processo
de gentrificação urbana atingiu a população mais pobre em praticamente
todas as capitais. Aqueles que mais deveriam tirar vantagem desses
eventos internacionais acabaram sendo os maiores prejudicados. Esses
erros acabaram diluindo um pouco a nossa base de apoio.
Sul21: Além
desses erros nas esferas do Executivo e do Legislativo, não houve
também uma mudança expressiva no comportamento do Judiciário que
contribuiu para o agravamento do processo da crise?
Eugênio Aragão:
O Judiciário tem um problema muito sério: é o poder mais opaco de
todos, não tem transparência nenhuma por mais que se gabe de
disponibilizar suas decisões na internet. O importante não é publicar a
decisão, mas sim o processo pelo qual se chega a ela. E este processo
não está disponível na internet. Não aparece o advogado prestigiado em
Brasília que pode colocar a mão na maçaneta dos gabinetes dos ministros,
entrar e falar com tapinhas nas costas, coisa que advogados, digamos,
menos aquinhoados do Rio, São Paulo e outras cidades não podem fazer. O
Judiciário é muito alienado quanto ao déficit de acesso à Justiça que
existe no Brasil. Parece que vive em outro mundo.
Isso
também tem muito a ver com as escolhas pessoais. Acho que foram
cometidos graves erros no recrutamento de alguns atores. Nós deixamos
que fossem para o Supremo e para o STJ as pessoas que melhor sabiam
fazer campanha junto a políticos, aqueles que melhor sabiam chegar perto
do círculo de poder central para vender o seu nome. Eu tenho uma ideia
sobre isso que já externei para a presidenta Dilma. O candidato ideal a
um cargo destes não é aquele que está numa verdadeira maratona para ser
indicado. A pessoa que quer muito essa indicação quer muito também por
uma questão de vaidade para o seu currículo pessoal. É como se o cargo
acabasse sendo uma cerejinha glacê em cima do chantili do seu bolinho. A
pessoa que tem esse perfil, quando é submetida a uma pressão muito
grande da opinião pública, por ser alguém que naturalmente gosta de ser
vista bonita, tem medo de queimar o filme dela. Em função disso, tem uma
dificuldade enorme de ser contra-majoritário, de não ceder a esses
apelos das ruas e apelos midiáticos.
É
uma questão de escolha. O ministro ideal para ser escolhido é aquele
que você liga para ele dizendo que pensou no nome dele para ser ministro
do Supremo Tribunal Federal, perguntando se aceitaria e ele responde
pedindo dois ou três dias para refletir e conversar com a família. Esse é
o candidato ideal. Ele não estava batalhando para ser indicado, não
queria achar uma cerejinha para o seu currículo, mas sim querendo ver o
problema em toda a sua extensão. Ir para um lugar como aquele não é uma
festa, não é um congraçamento ou um galardão, mas é ir para uma
trincheira de uma batalha política. Uma batalha para manter íntegra essa
República.
O
meu nome foi cogitado, por duas vezes, para ir para o Supremo. Eu tinha
um receio muito grande em aceitar, pois não estava vendendo uma ideia
pessoal. Nestas duas ocasiões, eu não estava me vendendo como ministro,
mas sim me colocando apenas como uma opção entre várias outras para
tentar fazer algo de diferente. Mas eu nunca fiz campanha mesmo, não fui
visitar deputados, senadores ou ministros. A única coisa que fiz foi
uma conversa na Casa Civil com pessoas que eu conhecia. Coloquei meu
nome à disposição, mas nunca considerei uma possível indicação como um
destino da minha vida. Eu nunca tinha pensado nesta possibilidade até
que o doutor Rodrigo Janot, quando de sua campanha para Procurador Geral
da República, veio com essa história para mim. ‘Eugenio, por que é que
você não tenta ir para o Supremo Tribunal Federal’, disse-me. Na
ocasião, eu pensei em duas coisas. A primeira foi: será que esse cara
está tentando se livrar de mim? Conversei com algumas pessoas que me
disseram: ou você se coloca ou as pessoas que não têm as suas qualidades
vão se colocar. E fui conversando com algumas pessoas que eu conhecia,
mas sem fazer campanha.
Sul21: Isso foi em que ano?
Eugênio Aragão:
Foi quando a vaga foi ocupada pelo Luís Roberto Barroso e, depois, pelo
Edson Fachin. Foram as duas vagas para as quais o meu nome foi cogitado
pelo governo. Por razões distintas, acabei não indo, mas isso não vem
ao caso. Nunca me senti depreciado por isso. Pelo contrário, continuei
cooperando com esse projeto político porque acreditava nele. Para mim,
não se tratava de uma questão de ir ou não ir para o Supremo ou de um
projeto pessoal. Isso não mudou nada na minha relação com o governo. Na
época, quando os dois nomes foram indicados eu falei para as pessoas que
estavam me apoiando que eram excelentes nomes. Não fiquei com nenhum
tipo de mágoa ou ressentimento por conta disso, o que acontece muito com
pessoas que achavam natural que fossem escolhidas e isso acaba não
acontecendo.
A
verdade é que esse sistema cria naturalmente uma dinâmica de grupo no
Supremo, com ministros que têm uma dificuldade muito grande de enfrentar
a opinião pública. São pessoas que sempre gostaram disso e que
construíram um currículo onde o Supremo Tribunal Federal é o ápice. Isso
é muito comum. Muita gente vai fazer doutorado para coroar o seu
currículo. Doutorado não é coroa de nada, mas sim é uma porta pela qual
você entra no mundo da pesquisa acadêmica. O doutorado não tem nenhum
significado para efeito de embelezamento do currículo. Até porque, em
dois ou três anos, a linda tese que você escreveu provavelmente vai
estar superada e ninguém mais vai querer ler. O que é importante é o que
você vai fazer com o seu doutorado em termos de pesquisa e ensino. É
para isso que ele serve e não para você sentar em cima de sua glória.
Para
mim, o mesmo se aplica no caso do Supremo. O importante não é ir para o
Supremo, mas sim o que você faz com isso. Você vai ser apenas mais um,
acompanhando a manada do povo que está irado no estouro para fora do seu
cercado, ou você vai querer realmente fazer diferença e assumir
posições que, às vezes, podem até te deixar mal com a opinião pública,
mas que você acredita serem profundamente justas dentro da sua
consciência. O ministro Marco Aurélio, que nem foi escolhido pela
presidenta Dilma, é hoje uma das pessoas mais autênticas dentro do
Supremo. Tem o Teori também, que é uma pessoa de grande caráter e de um
trabalho sólido em termos de magistratura. Mas o ministro Marco Aurélio
realmente quer fazer diferença. Ele pouco se lixa em ser minoria, o que
ele quer é fazer aquilo que a consciência dele manda. É um excelente
magistrado. Ainda bem que o Supremo tem pessoas como ele.
Sul21: O
sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, em um recente artigo,
definiu o que se passou no Brasil, do ponto vista jurídico, como o
triunfo de Carl Schmitt (da ideia da primazia do soberano) sobre Hans
Kelsen (que defende o controle judicial da Constituição). O senhor
concorda com essa leitura?
Eugênio Aragão:
Com certeza. Eu citei Carl Schmitt várias vezes nos últimos tempos para
falar sobre o que está acontecendo no país. Para ele, a soberania de um
Estado se consubstancia no poder que esse aparato tem de revogar as
suas próprias leis e de criar o Estado de Exceção. É no Estado de
Exceção que o poder nu e cru – aquele monopólio da violência pelo Estado
– melhor se manifesta. A soberania schmittiana é uma soberania da
violência. Já em Kelsen, a ideia de soberania repousa sobre a
prevalência da lei. Para Schmitt, vale a revogação da lei enquanto que,
para Kelsen, vale a prevalência da lei. Kelsen tem alguns problemas de
excessivo formalismo, mas a lei é a representação da vontade popular, da
vontade política da nação, construída através de um sistema democrático
que escolhe aqueles que são os legisladores. A soberania é a nossa
capacidade de escolher aqueles que darão curso à vontade da maioria
política da nação, sem deixar de respeitar a posição das minorias. Isso
no Brasil desapareceu. Hoje, há um total desrespeito em relação ao que
foi acertado na eleição de 2014, vencida pela presidenta Dilma.
Por
mais que a diferença tenha sido pouco, Dilma venceu o segundo turno e
esse projeto era o da maioria da nação. A imprensa sempre representou a
presidenta Dilma de uma forma caricata. Mas quem a conhece, quem
trabalhou com ela, sabe que ela é uma pessoa preocupada, carinhosa e
solidária. Ela tem uma série de virtudes que a mídia nunca apresentou. O
que interessava era apresentar uma pessoa histriônica. A presidenta
Dilma é uma pessoa muito determinada e firme. Por vezes, ela expressa a
opinião dela com uma firmeza que pode chegar a ser entendida por alguns
como uma rudeza. Mas isso é o modo dela. Todos nós temos os nossos
modos. Se as manifestações do ministro Gilmar Mendes não forem rudes, o
que é rude afinal? E alguém dessa grande imprensa já representou o
ministro Gilmar como uma pessoa histriônica e rude?
Escolheram
a mulher Dilma Rousseff para ser a histriônica. É uma imagem falsa que
as pessoas fazem dela. Ela não é isso, não. É apenas uma pessoa muito
firme. E ainda bem que é firme porque diante de tanta chantagem, da qual
foi vítima, para fazer coisas erradas, ela nunca cedeu. Desde o início
do governo dela em 2010, ela botou para correr todo mundo que ela viu
que estava ali querendo se dar bem e não para atender o interesse
público. Nós perdemos muito em qualidade de governança. Naquele triste
dia de 11 de maio, quando ela saiu e entrou o novo governo, a diferença
era gritante. De um lado, a saída da Dilma com as lágrimas de gente de
todas as origens, de índios, sem terra, pessoas de classe média. Depois,
entrou aquele grupo de urubus, homens brancos e velhos vestidos de
preto, assumindo aquele palácio como se fossem donos dele, coisa que
eles não eram, pois o afastamento da Dilma era provisório.
Eles
não levaram um minuto para começar a destruir todo o legado que
pudessem encontrar do PT. E o fizeram de forma perversa e grosseira.
Forçaram a porta, entraram e, de dedo em riste, foram dando esporro na
população inteira, dizendo que tudo estava errado e que iam mudar tudo
para implantar um Estado mínimo. Um Estado mínimo só serve para quem tem
dinheiro. Para quem tem plano de saúde particular e os filhos em
escolas privadas o Estado mínimo não significa grandes mudanças no
estilo de vida, Mas a grande maioria dos brasileiros e das brasileiras
precisa do Estado para que os filhos vão à escola, para que possam ter
um atendimento de saúde, para que possam minimamente ter um transporte
decente, para que possam ter alguma esperança de, algum dia, ter um teto
melhor sobre suas cabeças e talvez um emprego mais digno. Essas pessoas
precisam de um Estado que faça políticas sociais, sim.
Para
esses homens ricos de cabelo branco e ternos pretos que estão lá agora
os programas sociais não valem nada, não lhes dizem respeito. Eles têm
uma completa falta de sensibilidade em relação a isso. Talvez não
avancem o quanto gostariam de avançar, porque sabem que são ilegítimos e
tem medo da reação popular. Se dependesse deles revogariam até a Lei de
Diretrizes e Bases da educação nacional. Mas eles vão tentar fazer isso
progressivamente, como quem toma sopa quente pelas bordas. Não tenha
dúvida disso.
Sul21: Na sua opinião, o país está vivendo hoje um estado de exceção?
Eugênio Aragão: Não
sei se é um estado de exceção. Acho que é muito mais um estado de
engodo. Um estado de exceção significa que as leis, por conta de um
risco iminente à segurança e ao bem estar de todos, podem ser suspensas
temporariamente. Não é disso que se trata. Nós estamos vivendo um estado
de engodo que quer se perpetuar. A palavra golpe tem diversas acepções.
Ela pode significar a derrubada de um governo pela violência, através
de uma ruptura constitucional. Mas a palavra golpe também se aplica
aquela pessoa que perdeu dinheiro investindo num terreno que não existe.
Esse é o golpe do 171. O que estamos vivendo hoje, antes de mais nada, é
o golpe do 171. Houve a tentativa de se mimetizar um impeachment por
crime de responsabilidade quando todo mundo sabia que não era essa a
causa e se comportou de forma extremamente hipócrita.
Houve
a tentativa de dizer que tudo está podre, tudo está corrupto, o que,
diga-se de passagem, é o discurso de todo governo fascista. Hitler,
quando assumiu o poder na Alemanha, também disse que a República de
Weimar era corrupta, podre e acabava com a pureza dos alemães.
Mussolini, quando assumiu, também chegou lá prometendo combater a
corrupção da monarquia. Em 1964, aqui no Brasil, foi o mesmo discurso.
Dizia-se que Juscelino e Jango tinham “assaltado o país”. E agora eles
vêm com esse discursinho de novo com a agravante de que ele é sustentado
por uma casta burocrática altamente remunerada, oriunda dessa mesma
classe média masculina que tomou conta do país, que elabora teorias de
sua cabeça a respeito de organizações criminosas com núcleo disso e
núcleo daquilo. Elaboram constructos mentais para divulgar a ideia de
que está tudo dominado.
Esses
sujeitos estão deixando se usar. Esse discurso do combate à corrupção
serve muito bem para quem quer desconstruir a legitimidade de um
governo, mas na hora em que essa legitimidade está desconstruída, tudo o
que se quer é fazer sumir qualquer tipo de ação contra a corrupção. Por
quê? Porque a corrupção é um crime de controle, ou seja, é um crime que
só aparece quando você investiga. Agora, o novo governo vai fazer de
tudo para cortar as asas das investigações. No fundo, o Ministério
Público, ao aceitar ser instrumento dessa turma, deu um tiro no pé, pois
está se enfraquecendo. Isso vai ser mais rápido do que eles pensam.
Esse discurso do combate à corrupção é para convencer gente de dois
neurônios.
A
corrupção existe em todos os países, em alguns mais, em outros menos. O
que cria a corrupção não é a ganância das pessoas, como afirma o
discurso moralista, mas sim os gargalos disfuncionais dos processos
administrativos. Quando é difícil você obter um resultado que você quer
na sua relação como administrado com a administração, você tende a
querer facilitar esse processo ou a criar algum tipo de atalho por meio
da distribuição de benesses para os funcionários. Isso é uma forma de
descarregar esse processo administrativo pesado. Há economistas que
sustentam que, às vezes, para o desenvolvimento de um país, a corrupção
pode ser até benéfica, caso o Estado em questão seja organizado de uma
forma tão pesadamente burocrática que seus processos de fiscalização e
controle emperram toda a economia.
Para
você acabar com a corrupção, é preciso identificar onde estão esses
gargalos e tratá-los com transparência, impondo uma política de compliance (agir
em sintonia com as regras) clara para a administração. Além disso, é
preciso acabar com as brigas corporativas que dificultam a vida do
administrado. Essa briga, por exemplo, envolvendo Ministério Público,
Polícia Federal, Receita, Defensoria Pública, Ibama e outros órgãos faz
com que o Estado acabe dando ao administrado ordens controversas e
contraditórias, deixando-o sem saber para onde andar. Esse problema deve
ser enfrentado de forma racional, com a cabeça fria, e não fazendo da
corrupção um crime hediondo, o pior de todos os crimes porque toma o que
é nosso, etc., etc. Esse discurso só serve para você estigmatizar
pessoas e arrumar um bode expiatório. Nenhuma sociedade fica bem dentro
de um conflito desses em que você qualifica algumas pessoas como impuras
e outras como puras.
O
Ministério Público está se achando a pureza em pessoa, quando a gente
sabe que aqui as coisas não são bem assim. A Corregedoria enfrenta
enormes dificuldades. Na época em que fui corregedor só levava bola nas
costas com os malfeitos de colegas. Aqui tem tudo, menos santo. Somos
pessoas como quaisquer outras, com nossas virtudes e nossos vícios, mas
aqui as pessoas se acham acima do bem e do mal, podendo colocar o seu
dedo indicador acima das pessoas. Isso não resolve nada, apenas cria
tensão social, mal estar, ira e até violência entre as pessoas,
inclusive dentro das famílias. Infelizmente é isso que está acontecendo
no Brasil. A culpa por isso é desse tipo de atitude.
O
fascismo se caracteriza pelo uso de argumentos extremamente simplórios
que parecem intuitivos, para pessoas de pouca inteligência. É desse tipo
de argumento que o fascismo se utiliza: “todo o judeu é explorador”,
“todo índio é preguiçoso” e coisas do tipo que vêm acompanhadas por
falácias enormes de modo a que pessoas desprovidas de inteligência
possam cair nesta farsa. O fascismo mobiliza para a violência, ele
mobiliza as pessoas para fora do seu normal. Ele é essencialmente mau e
perverso. Nós estamos vivendo uma onda de fascismo que talvez não
tenhamos visto nem na ditadura militar.
Sul21: O
senhor tem sido um crítico de vários procedimentos adotados pelo juiz
Sérgio Moro e vários procuradores da Operação Lava Jato, como ocorreu
recentemente com a denúncia apresentada pelo procurador Deltan Dallagnol
contra o presidente Lula? Como o senhor definiria o atual estágio da
Lava Jato?
Eugênio Aragão:
A Lava Jato é uma das operações mais tortuosas da história do
Ministério Público. A gente sente claramente que os alvos são
escolhidos. Há delações claras em relação a outros atores que não
pertencem ao grupo do alvo escolhido e que simplesmente não são nem
incomodados. Em relação aos alvos, a operação chega a ser perversa e
contra a dignidade da pessoa humana. Utilizar-se da condução coercitiva
quando não há resistência é de uma violência inominável. Não adianta
usar esse argumento cretino de que isso é feito para evitar prévia
combinação de depoimentos entre os intimados. Se eu sou intimado na fase
pré-processual, posso até calar a boca e voltar para casa. Se eu
quiser, em casa, combino com o resto e volto para a polícia. A condução
coercitiva não impede combinação de depoimento. Isso é uma lenda urbana
que o juiz Sérgio Moro criou. Mas isso não consegue esconder que ele
está ultrapassando os limites do Código do Processo Penal. Neste código,
a condução coercitiva só é prevista para aquele que resiste em
comparecer depois que foi intimado.
Pior
ainda são as conduções coercitivas feitas com a presença da imprensa
que é convocada para o ato, expondo as pessoas. É uma volta às
Ordenações Filipinas, na medida em que expõe as pessoas como troféus do
Estado, fazendo-as circular pelas ruas com baraços e pregão para que
todo mundo possa jogar tomates e ovos podres em cima delas. Isso é o que
ocorria na Idade Média. Não fazemos mais isso. O Estado tem que ser
tímido e recolhido quando ele usa o Direito Penal porque ele não sabe se
está realmente certo de que está fazendo Justiça ou não.
Sul21: Dentro
do Ministério Público, além da sua voz que tem sido bastante enfática
nesta crítica, há uma resistência maior em relação a esses
procedimentos?
Eugênio Aragão:
Há outras pessoas que pensam como eu. Pelo fato de eu ter sido ministro
da Justiça durante os dois últimos meses do governo Dilma e de antes de
ter sido vice procurador geral eleitoral, minha voz acaba soando mais
forte. Mas a grande maioria do Ministério Público hoje acha que a Lava
Jato é a última Coca Cola do deserto. Na última semana, o Conselho
Nacional do Ministério Público, que é o órgão de controle da nossa
atividade, premiou a Lava Jato. E se eu me queixar da Lava Jato para um
órgão que previamente premiou essa operação, como é que fica? Como é que
um órgão de controle pode premiar uma operação que está sob severa
crítica pública? Qual a isenção que esse órgão terá na hora que precisar
avaliar representações contra a Lava Jato, se ela já foi premiada? As
pessoas estão perdendo o senso de limite.
Sul21: O
senhor referiu em vários momentos o papel da mídia neste processo
envolvendo a derrubada da presidenta Dilma e a Operação Lava Jato. Como
definiria esse papel?
Eugênio Aragão:
A grande mídia comercial brasileira depende muito das verbas
publicitárias dos governos. Essa mídia comercial está cartelizada
politicamente. Agora estão com o tom de levantar a bola para o governo
Temer fazer o gol e de seguir satanizando o PT e o que significaram os
governos Lula e a Dilma para o Brasil. A nossa sorte hoje é que muitas
pessoas estão deixando de ler esses jornais. Na minha casa, não entra
nem Folha de São Paulo, nem Estadão, Globo ou Correio Braziliense. Eu me
informo através da internet que traz uma enorme variedade de acessos à
informação. Além dos chamados “blogs sujos” eu posso ler a imprensa
estrangeira. Tenho a opção de ler artigos sérios. Para quem tem algum
tipo de discernimento, a opinião de jornais como Folha, Estadão e Globo
não tem o peso que tinha antigamente. Tanto é assim que esses jornais
estão todos atravessando uma crise financeira violenta. Eles não servem
mais nem para se informar sobre coisas básicas. Se eu quero saber se uma
determinada loja abre no fim de semana, eu busco essa informação pela
internet.
Sul21: Ainda
sobre a Lava Jato, há quem relacione essa operação hoje a interesses de
empresas e mesmo governos de outros países em riquezas como a do
pré-sal. Na sua avaliação, há uma espécie de dimensão geopolítica nesta
operação?
Eugênio Aragão:
Não sei. Eu acredito que o Ministério Público pode estar sendo usado,
mas o Ministério Público é tão endógeno na sua visão, tão perdido em
cima do seu próprio umbigo que não sei nem se tem inteligência para
isso. Eles podem estar sendo usados, sabendo ou não sabendo. Não existe
gente preparada em Curitiba com essa estratégia toda para bolar uma
coisa dessas.
Sul21: E quanto ao juiz Sérgio Moro?
Eugênio Aragão:
Também não acredito que ele tenha capacidade para isso. O juiz Sérgio
Moro é uma pessoa extremamente vaidosa que encontrou um nicho para se
exibir à sociedade brasileira. Isso faz parte de um projeto pessoal. Ele
gosta de ter essa cara de mau, de um sujeito inabalável nas suas
convicções, um verdadeiro inquisidor mor. Ele adora fazer esse papel.
Mas esse é um problema que ele tem que resolver com o seu psicólogo.
Sul21: Diante desta conjuntura, qual cenário de futuro é possível prever?
Eugênio Aragão:
Eu acredito que, depois que essa crise amenizar, o Ministério Público e
o Judiciário terão que ser passados a limpo. Não podemos mais fazer o
que a gente fez. Isso colocou o país de cabeça para baixo. Quase um
milhão de empregos já foram perdidos nesta crise. E os desempregados não
são os procuradores da República nem os juízes federais. Você faz uma
operação desse porte, destruindo a economia e está pouco se lixando com o
que acontece porque o seu está garantido no final do mês. Só que se a
economia quebra, o Estado também quebra e aí o Estado não vai mais pagar
a eles o que eles acham que valem. Isso precisa ser repensado
urgentemente. O corporativismo mata a governabilidade no Brasil.
Sul21: Mas será possível que o Ministério Público e o Judiciário se repensem a si mesmos?
Eugênio Aragão: Não sei, não sei, mas se tiver uma Constituinte, a gente repensa, não é?
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