As decisões
políticas acerca da internet e a concentração econômica do setor têm matado o
caráter livre originário da rede criada por Tim Berners-Lee
Por Marina Pita* da Intervozes na Carta Capital - Sociedade e Inclusão
Digital
Paul Clarke / Wikimedia Commons
Tim
Berners-Lee, criador da World Wide Web, segue na luta para que a internet seja
usada em todo seu potencial criativo, solidário e transformador
Uma das belezas de a Rede Mundial de Computadores (World Wide Web) ter
se consolidado em tão poucos anos é que seu criador, Tim Berners-Lee, segue
vivo e trabalhando para que a internet alcance seu potencial
transformador.
Berners-Lee está vivo, tem 61 anos e tem deixado bem registrado o que
pensa sobre as mudanças de orientação da rede. Entre as características que ele
defende é que a Web deve permanecer aberta. Mas, infelizmente, essa é uma
batalha que ele – e nós – estamos perdendo para interesses corporativos e
ausência de um Estado eficaz em defender os interesses de grande parte da
população.
O que Berners-Lee fez, em 1989, foi juntar a ideia de hipertexto com as
ideias de Protocolo de Controle de Transmissão e Sistema de Domínios e Nomes e
daí nasceu a Web, uma rede, uma teia, em que os assuntos vão se interligando,
criando os mais diversos percursos de conhecimento possíveis. Infinitos.
Esta Web já não é realidade para muitas pessoas. Para boa parte do mundo “em desenvolvimento”,
a internet é o Facebook, conforme aponta pesquisa, e isso não
está acontecendo simplesmente apenas porque as pessoas são tragadas para o
“livro das caras”, mas como resultado de uma escolha política e que deve se
acentuar ainda mais no próximo período.
No caso do Brasil, o incentivo à política de massificação do acesso à
conexão por meio da rede móvel reforçou e segue a reforçar o poder que
fabricantes de smartphones, ou “espertofones” (mercado onde há
acentuado duopólio) têm de escolher os aplicativos vencedores para serem
embarcados por padrão, de fábrica.
Para se ter uma ideia do valor que sair embarcado de fábrica tem para
uma plataforma digital, em janeiro de 2016, a Bloomberg teve acesso a
documentos indicando um acordo entre Google e Apple, em 2014, em que a gigante
online pagou 1 bilhão de dólares à Apple para se manter como buscador padrão
nos iPhones.
Quando a navegação na Web se dá predominantemente por aplicativos – como
é o caso dos sistemas operacionais móveis, até por conta da limitação de tela e
desconforto de teclar – a chance de o usuário fugir dos apps “vencedores” é
muito menor. Perdem os produtores de conteúdo que não têm recursos para criar
seus próprios apps. Perde a diversidade e perde a economia do Brasil: a
expectativa era de que, em 2016, o mercado global de aplicativos móveis
atingisse 51 bilhões de dólares em receita bruta, em todas as lojas de
aplicativos, de acordo com pesquisa da App Annie.
Vale lembrar que quando, durante a primeira gestão Dilma Rousseff, foi
lançada a política de incentivo fiscal para o comércio de espertofones, houve
uma tentativa de impor contrapartida aos fabricantes. Um dos principais debates
era o embarque de aplicativos nacionais para obtenção da isenção fiscal
proposta.
A indústria obviamente se contorceu e chiou o quanto pôde, e o governo
foi recuando até que a política, em vez e aperfeiçoada por meio do diálogo com
os diversos setores interessados, simplesmente desidratou. Nenhuma outra
política de peso, do tamanho que este segmento econômico (e em ascensão)
requer, foi apresentada para sustentar o desenvolvimento e crescimento do
mercado de apps brasileiros. Contentamo-nos em deixar esta parcela da
nossa economia escoar para os países com liderança tecnológica.
A concentração da navegação em umas poucas aplicações tem ainda razões
de ser. Soma-se a essa narrativa de incentivo puro à internet móvel e à
navegação por dispositivos, o silêncio do governo brasileiro, da Agência
Nacional de Telecomunicações (Anatel) e mesmo do Conselho Administrativo de
Defesa Econômica (Cade) acerca da liberação do tráfego de dados em determinados
aplicativos – por acordos entre as plataformas digitais e operadoras, apesar de o Marco Civil da Internet
(Lei 12.965/14) e sua posterior regulamentação estabelecerem a neutralidade de
rede como um princípio e a obrigação de os responsáveis pela
transmissão, comutação ou roteamento terem o dever de tratar de forma isonômica
quaisquer pacotes de dados.
Não poderia haver distinção por conteúdo, origem e destino, serviço,
terminal ou aplicação, exceto quando requisitos técnicos sejam indispensáveis à
prestação adequada dos serviços e priorização de casos de emergência (por
exemplo, melhorar o tráfego no site da Receita Federal às vésperas do prazo da
declaração de imposto de renda). Ainda, diz a legislação, no caso de
discriminação ou degradação do tráfego, o responsável deve abster-se de praticar
condutas anticoncorrenciais e de causar danos aos usuários.
Em todo o mundo, os planos de dados que liberam a navegação em
determinados aplicativos em detrimento de outros, aplicada por várias
operadoras no Brasil, vem sendo, cada vez mais, classificada como
anticoncorrencial e danosa aos interesses dos cidadãos e consumidores. São
planos que permitem apenas o uso, por exemplo, do Whatsapp quando o pacote
acaba e o usuário não consegue mais navegar na internet.
Em dezembro, a Federal Communications Commission (FCC, o órgão regulador
das comunicações nos Estados Unidos) enviou uma carta à operadora de
telecomunicações AT&T em que informou sua conclusão preliminar de que as
ofertas deste tipo oferecidas naquele país pela operadora ferem o princípio da neutralidade.
E sim, isso aconteceu nos Estados Unidos, onde predomina o princípio do livre
mercado.
Com a eleição de Trump, não se sabe como o processo se desenrolará. Mas,
no Brasil, seja antes ou depois de Michel Temer, não há movimentação por parte
do governo ou das áreas competentes para analisar este tipo de “promoção” de
acordo com a legislação vigente e tomar as medidas necessárias para preservar a
internet aberta e neutra.
Para além dos espertofones, a ausência de uma política de banda larga
fixa
A diversidade de fontes e a riqueza da internet se dá principalmente
quando o usuário está utilizando navegadores e, de preferência, em telas
maiores. Ou seja, com computador e banda larga fixa. As políticas para
ampliação da penetração de ambos são, no entanto, pífias.
Não foi em uma ou duas ocasiões em que os chefes da extinta pasta das
Comunicações elogiaram o modelo de acesso móvel via rádio como o futuro da
conexão no País. Não à toa, o modelo preferido das grandes operadoras de
telecomunicações para conectar um país com estrutural e estruturante lacuna de
infraestrutura.
O resultado é que, no Brasil, a nona maior economia do mundo
considerando o critério do Fundo Monetário Internacional de Produto Interno
Bruto (PIB) nominal, apenas metade (51%) dos domicílios têm acesso à internet,
de acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2015 divulgada em setembro de 2016.
O percentual ficou estável em relação à pesquisa do ano anterior (50%).
Ou seja, pelas regras de mercado atuais, a conexão por banda larga fixa em domicílios
atingiu o teto, apesar de ainda estarmos tão distantes da universalização.
Ainda de acordo com a TIC Domicílios 2015, pela primeira vez o número de
brasileiros que acessam a Web pelo celular superou o de brasileiros que acessam
a internet em computadores. À época, o Centro Regional de Estudos para o
Desenvolvimento da Sociedade da Informação, responsável pelo levantamento
frisou:
“Esta realidade coloca desafios importantes para o desenvolvimento de
habilidades digitais requeridas para a nova economia digital. Entre os usuários
de internet que acessam apenas por telefone celular, a proporção dos que
realizam atividades online, relativas ao trabalho ou a governo eletrônico, por
exemplo, é menor do que aqueles usuários que acessam a rede também por computadores”.
Alexandre Barbosa, gerente do Cetic.br, demonstrou preocupação com o
tipo de inclusão digital que o Brasil escolheu estimular à época da divulgação
dos resultados: “As atividades de maior valor agregado são justamente as mais
requeridas pela nova economia digital. No entanto, elas pressupõem habilidades
digitais mais complexas, que vão além do uso instrumental das aplicações
corriqueiras como as de rede social ou de envio de mensagens, demandando uma
maior apropriação das novas tecnologias e aplicações", disse.
"Neste sentido, o computador desempenha um papel fundamental para
apropriação efetiva das tecnologias digitais pelos cidadãos — o que fica mais
difícil para aqueles que somente acessam a rede pelo celular. É a partir da
combinação do uso de diversos dispositivos, cada um com suas peculiaridades, e
de aplicativos de maior complexidade que se possibilita o desenvolvimento de
habilidades digitais mais sofisticadas”, completa.
Ao optarmos por incluir os brasileiros no universo digital e de navegação
na Web majoritariamente por espertofones e banda larga móvel, com franquias de
dados caras e extremamente limitadas, estamos escolhendo também um modelo de
desenvolvimento econômico com baixo potencial de produção, programação e
disseminação de conteúdo. É a inclusão digital para o consumo apenas, e não
para a cidadania, para a economia e para o fortalecimento da democracia.
Pequenos como formigas: esforço dos provedores regionais leva conexão ao
interior
Se há algum avanço da banda larga fixa no País, e aí considerando todos
os tipos de conexão, inclusive comerciais, este avanço se deu pelo esforço dos
provedores regionais (também chamados, por comparação às teles, de pequenos
provedores).
Foi este grupo que adicionou 424,9 mil conexões à base, crescimento
líquido de 18,72%, em 2016, acima dos grandes grupos econômicos como Vivo,
América Móvel (controladora da NET e Claro) e TIM, conforme aponta o website de
notícias especializado no tema, Teletime.
O curioso é que os provedores regionais ficarão de fora da farra que se
dará com a aprovação do Projeto de Lei da Câmara 79/2016, que transforma as
concessões de telecomunicações em autorizações e pretende transferir
infraestrutura estratégica da União avaliada em 100 bilhões de reais para o
patrimônio privado das grandes teles.
Como diria Olisnei Nascimento, provedor regional no Amazonas, em sua
participação no documentário Freenet, o governo ajuda só as empresas de capital estrangeiro, enquanto os
pequenos empresários brasileiros, que desbravam as regiões menos lucrativas, e
por isso esquecidas pelo grande capital, mal conseguem acesso a crédito.
E, assim, o potencial da internet, aquele que vislumbrávamos quando o
som da conexão discada cessava – sinal de que já era possível falar com todo o
mundo – vai se desmanchando para dar lugar à vitória do interesse das grandes
corporações.
Com a destruição do caráter aberto e neutro da Web, morre um pouco
também a capacidade de solidariedade dos povos, a cultura e conteúdo
independentes e a democracia. Mas ainda é tempo.
Não vamos deixar a internet morrer e, para isso, precisamos seguir na
luta pela universalização do acesso à conexão de banda larga fixa, pela
neutralidade de rede, pelo acesso a instrumentos de processamento de dados
adequados à realização de funções diversas (como os computadores), mas,
principalmente, pela formulação e construção coletiva – e partindo da sociedade
civil – de uma política de inclusão digital para a cidadania e não apenas para
o consumo. Precisamos abraçar essa tarefa.
Para quem quer ajudar e não sabe como, Berners-Lee dá a dica, em
entrevista para o documentário Freenet: “Façam com que todos conheçam o Marco
Civil da Internet do Brasil, defendam o Marco Civil da Internet brasileiro. Ele
resguarda os princípios da Web”.
*Marina Pita é jornalista, integra o Conselho Diretor do
Coletivo Intervozes e trabalhou como co-roteirista e produtora de conteúdo do
documentário Freenet
http://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/a-inclusao-digital-no-brasil-serve-ao-consumo-e-nao-a-cidadania
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